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Como Seven Nation Army virou o “hino da Copa”?

De onde saiu o hino antigo da Fifa, de que tantos fãs de futebol gostavam – e porque ele foi trocado pela música do White Stripes

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h36 - Publicado em 25 jun 2018, 17h04

A memória afetiva do futebol está de luto: o hino da FIFA – aquela música com jeitão solene e triunfal que embala a entrada das seleções em campo desde a Copa do Mundo de 1994 – foi substituída na Rússia por Seven Nation Army, o clássico instantâneo lançado em 2003 pela dupla de rock raiz White Stripes.

Os jornalistas de plantão não gostaram nada dessa história. No Estadão, o repórter Ciro Gomes comentou: “Passei vontade. A FIFA trocou a tradição do hino pomposo pela aposta em cativar os torcedores a cantarolarem uma melodia mais popular como aquecimento para o jogo”. Questionada pela Folha, a entidade falou que não volta atrás nem para pegar impulso: “a FIFA está extremamente satisfeita com a recepção do público e continuará atrás de iniciativas que ofereçam uma atmosfera mais festiva em estádios da Copa”. 

Na SUPER, o editor Tiago Jokura me chamou na mesa dele, magoado. “Dava uma sensação boa, sabe? Quando tocava aquela música, a gente sabia que era um jogo especial. Que era um jogo de Copa.” Daí ele sugeriu um texto discutindo a mudança. Bem, vamos a ele!

O tal hino da FIFA (que você pode ouvir aqui embaixo) foi composto por um músico alemão chamado Franz Lambert. Ele toca órgão absurdamente bem e já lançou dezenas de álbuns que eu só consigo definir como “música ambiente” – se você já entrou em um elevador na vida, é certeza que ouviu o cara. Ele usa um penteado digno do Richard Clayderman, paletós típicos da banda de apoio do Roberto Carlos e soa como um tecladista de baile da terceira idade.

Ou seja: essa peça não é, em princípio, simbólica. Foi uma encomenda. Acontece que a Copa do Mundo é simbólica, e aí não tem jeito. O seu cérebro associa o som ao sentido. Afinal, música e memória têm tudo a ver há muito tempo. Os 15,6 mil versos da Íliada de Homero eram parte da tradição oral grega. Os trovadores da antiguidade – para usar o termo preciso historicamente, “aedos” decoravam as 720 páginas de poema com auxílio de uma melodia. Da mesma forma, hoje você sabe de cor canções longas como Faroeste Caboclo, do Legião Urbana, ou Diário de um Detento, do Racionais MCs, mas não dá conta de memorizar um parágrafo de livro para uma prova. Tentar se lembrar de palavras sem ajuda dos sons é uma batalha perdida.

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A música também é ótima em trazer o passado de volta – não é a toa que tantas pessoas mantém playlists com as faixas que marcaram cada ano de suas vidas. A ideia, óbvio, é conseguir reviver as sensações e estados de espírito de cada época, e não só os fatos crus. Há muitos experimentos científicos que compravam a força da música sobre a memória episódica.

A justificativa oficial da FIFA para a mudança foi bem simples: “proporcionar mais diversão e entretenimento”. No papel, eles estão certos: White Stripes é um negócio bem mais jovial do que uma trilha estilo Vangelis, cheia de sintetizadores anacrônicos. Eles só esqueceram de combinar com os (fãs) russos – que já tinham se apegado à breguice faz tempo, de tanto ouvir a música no sofá da sala, ansiosos pelo jogo.

 

Mágoas à parte…

…Seven Nation Army, a substituta, é uma canção ótima para finalidades esportivas.

Primeiro de tudo: ela é fácil de lembrar – tão fácil que corre o risco de se diluir permanentemente no imaginário popular. Até hoje não sabemos se existiu mesmo um Homero, um bardo cego e analfabeto, que compôs a Ilíada. Após análises minuciosas, muitos acadêmicos afirmam ser igualmente provável que o poema épico seja uma obra coletiva e anônima, e que seus vários autores tenham se perdido no tempo. Jack White, compositor da nova música da Copa, admitiu, feliz, estar sujeito a um processo parecido: “quanto menos as pessoas souberem de onde ela [a música] veio, mais ela estará incrustada na tradição popular. Quanto mais a autoria da música parecer anônima para o público, mas realizado eu vou me sentir como autor.”

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Estádios de futebol de fato são o ambiente ideal para músicas saírem da vida e entrarem para a história. É só pensar um pouco: alguém compôs “ooooooleeeeeeee, ole, ole, olá.” Quem? Vai saber. Escolas infantis também são terreno fértil para músicas de domínio público. A dona aranha subiu pela parede, eu atirei o pau no gato, os escravos de Jó jogaram caxangá. Dificilmente saberemos a origem desses versos, e às vezes eles sequer fazem sentido: “caxangá”, afinal, é um crustáceo e um tipo de chapéu, mas não um jogo. 

Seven Nation Army começou a se infiltrar nos estádios no ano de seu lançamento. Reza a lenda que torcedores da equipe belga Brugge K.V. – bêbados além da conta – ouviram a música em um bar durante o esquenta e caminharam até o estádio cambaleando e cantando. O time levou a melhor sobre o italiano Milan, e aí o coro foi entoado por toda a arquibancada. Os belgas mantiveram o monopólio do grito de guerra até 2006, quando a Roma encarou o Brugge e os italianos, por ironia do destino, ouviram e gostaram da ideia. O feitiço virou contra o feiticeiro. O grito foi adotado pela Itália, virou tema da vitória na Copa de 2006 e daí dominou o mundo – nem os jogos de baseball escapam mais. 

Conclusão? Com ou sem a benção da FIFA, a composição de White já estava predestinada a seu posto. É claro que as idas e vindas da cultura pop são imprevisíveis – se não fossem os belgas, talvez nada disso tivesse acontecido. Mas há outra coisa a se levar em consideração: o que a faixa tem de inerentemente bom. 

Desmontando o som

O White Stripes é (ou melhor, foi) uma dupla. Jack White na guitarra e Meg White na bateria, mais nada. Ter uma banda sem baixista, na maior parte das situações, não é uma boa ideia. Não dá para perceber em um par de fones de celular ruins, mas o baixo é uma espécie de cola que une a percussão ao resto. Sem ele, fica um vazio incômodo no som – a ausência do grave é algo que se sente, não que se ouve. Some o baque no peito da música ao vivo.

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Um estudo feito pela neurocientista americana Laurel Trainor em 2014 demonstrou que o ser humano é instintivamente melhor em marcar o ritmo – e também em perceber algo que está fora do ritmo – quando está ouvindo sons graves. Jack White tinha noção disso – todo músico tem, mesmo que inconscientemente –, então, na hora de gravar Seven Nation Army, espetou a guitarra em um pedal que fazia o instrumento soar mais grave do que ele realmente é. Em outras palavras, transformou a guitarra em baixo. O som grave, retumbante, caiu bem com a bateria tosca, sem frescura. Uma ótima escolha. 

Dá para ir um pouco mais fundo e entender o que, afinal, torna a melodia tão viciante. Para isso eu montei um esquema rápido. Quem jogou Guitar Hero na vida vai entender: o piano ali no canto esquerdo mostra as notas, as setas representam a duração. Se você tiver um tecladinho de brinquedo dando sopa por aí, vale tentar. 

O exemplo do Erasmo Carlos é bom, mas alguns dias depois de montar o gráfico aí em cima, me deparei com outra aparição do riff de Jack White na história da música – essa bem mais óbvia: a 5sinfonia de Bruckner. Ouça no vídeo abaixo, no minuto 21:29, onde a semelhança é mais evidente. O tema é introduzido antes, em 4:35. Quem percebeu a coincidência não fui eu, o crédito é deste artigo do Financial Times. Isso não é uma insinuação de plágio, que fique claro. É bem pouco provável que White tenha tirado a melodia daí conscientemente – todas as fontes confiáveis afirmam que ele bolou a sequência de sete notas sem querer, durante uma passagem de som em Melbourne, na Austrália.

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Um lampejo de criatividade que vai render muitos, muitos, muitos royalties.

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