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Obsolescência programada: por que nós morremos?

Quem vive mais tempo tem mais filhos e passa mais genes para frente. Então por que a seleção natural moldou nossos corpos com um prazo de validade?

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 mar 2021, 14h36 - Publicado em 7 ago 2018, 18h37

A teoria da evolução por seleção natural de Charles Darwin é, de longe, o maior ovo de Colombo da história da ciência. Foi preciso um gênio para alcançá-la – mas a ideia, em sua forma final, é tão simples e óbvia que pode ser enunciada em duas ou três linhas. Por isso, antes de começar meu texto para valer, vou fazer algo que já fiz tantas outras vezes desde que sou repórter da SUPER: comprovar o poder de concisão do naturalista inglês explicando sua teoria rapidamente.

Dessa vez vou usar o exemplo mais bobo de todos: o da Biston betularia, uma mariposa típica do hemisfério norte. Originalmente, esses insetos tinham asas brancas com pintas pretas – como um sorvete de flocos. Assim, eles podiam se camuflar nos liquens de cor clara que cobriam os troncos das árvores – e sumir da vista dos predadores.

Aí veio a Revolução Industrial. As chaminés despejaram fuligem na atmosfera, os liquens morreram, as árvores ficaram com os troncos mais escuros, encardidos. As asas brancas, que antes eram vantajosas, se tornaram um problema. Elas se sobressaiam no fundo cor de carvão, e denunciavam a posição das mariposas para quem quisesse almoçá-las.

Essa história só foi boa para algumas poucas e raras mariposas: as que davam o azar de nascer pretas, por causa de alguma mutação genética aleatória. Essa característica, antes indesejável, se tornou a nova camuflagem ideal. Elas sobreviveram, e começaram a ter mais filhotes. Em dois tempos, a população ficou todinha preta.

Quase todo mundo estudou esse exemplo de seleção natural no ensino médio. Ele explica sem delongas como uma característica que surge aleatoriamente em único ser vivo pode, sem querer, se tornar algo desejável e se espalhar. Nunca conheci um estudante que não concordasse com o raciocínio. Dar o próximo passo que é mais difícil: como é que esse mecanismo tão simples e fácil de entender, ao longo dos 4 bilhões de anos que se passaram desde a origem da vida, conseguiu transformar bactérias em animais tão complexos quanto um elefante ou um ser humano?

Bom, eu não tenho espaço aqui para explicar a origem darwinista de cada pedaço e característica do seu corpo agora (para começo de conversa, eu precisaria entrevistar uma meia dúzia de pessoas). Então vou escolher uma pergunta só: como a teoria da seleção natural explica o fato de que nós morremos quando chegamos a uma certa idade? De que praticamente todo ser vivo vem de fábrica com um prazo de validade biológico?

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Pense bem: não é tão óbvio assim. A seleção natural funciona justamente porque seres vivos mais aptos a sobreviver em um certo habitat conseguem ter mais filhos – que carregam o mesmo DNA de seus pais e fazem suas características se propagarem. E um bom jeito de ter mais filhos é simplesmente ter mais tempo para transar. Em outras palavras, a longevidade deveria ser premiada e incentivada pelo mecanismo evolutivo darwinista. O elixir da vida eterna deveria se espalhar feito fogo por aí.  

Bom, a gente sabe que isso não acontece. Já dizia meu avô que, na prática, a teoria é outra.

Para entender o porquê, vamos voltar ao exemplo da mariposa. Imagine uma mariposa preta – do tipo que consegue se camuflar em ambientes poluídos – com um conjunto de características genéticas que faz ela se tornar branca no final de sua vida. Se você achou isso meio estranho, pense bem, porque há um bicho bem mais familiar que passa exatamente pela mesma coisa: o ser humano. Nossos cabelos e pelos perdem a cor com o passar do tempo (em algumas pessoas, isso acontece mais rápido, em outras, menos).

Conforme essa mariposa envelhece, ela vai contrastando cada vez mais com as árvores. Se tornando cada vez mais visível, chamativa. E aí ela acaba sendo comida por um predador. Só que tem um problema: na altura do campeonato em que ela fica branca e vira almoço, ela já teve tempo de deixar muitos e muito filhos por aí. Os filhos que ela deixou também carregam os genes da mudança de cor. Eles vão passar exatamente pela mesma coisa no futuro. O ciclo se perpetua, e acaba que a característica nunca some de vez da população.

Esses genes geram a morte por motivos externos, os predadores. Isso é fácil de entender. Agora vamos pegar um exemplo mais pé no chão, dentro do próprio corpo: câncer. Imagine um conjunto de genes que tornem a mariposa mais propensa a ter câncer no final da vida. O mesmo mecanismo da mudança de cor tardia se aplica aqui: ela primeiro tem tempo de se reproduzir e deixar descendentes. Só depois ela morre. Nessa altura, os genes já foram passados para frente, para a próxima geração.

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Moral da história? A seleção natural é cega à velhice. Quanto mais velho você é quando desenvolve um problema, mais filhos você já deixou para trás. Cada parte do seu corpo que se degrada com o passar dos anos – a pele, os rins, a vesícula e todo o resto – se degrada não porque isso foi vantajoso para a seleção natural, e sim porque você passou seus genes para frente antes da seleção natural “perceber” que isso aconteceria (“perceber” aqui vem entre aspas porque a seleção natural não é gente para perceber alguma coisa: ela é apenas um processo estatístico).

O primeiro a notar isso foi o lendário evolucionista britânico J.B.S. Haldane, na década de 1930. Ele sacou que, como a doença de Huntington só afeta suas vítimas depois dos 30, ela não poderia ter sido eliminada das populações humanas pré-históricas pela seleção natural. Afinal, no paleolítico, a expectativa de vida era menor que 30 anos. Todo mundo podia se dar mal numa caçada. Ou levar uma paulada em uma briga tribal. Ou perder uma perna por causa de um ferimento infeccionado. Chegar aos 40 era um milagre.

Já no mundo contemporâneo, em que morrer cedo se tornou consideravelmente mais difícil, todas os problemas que se acumulam no fim da vida podem se manifestar. Cada sutil problema na divisão celular, cada pequena deterioração em um órgão ou tecido. E é o conjunto desses pequenos problemas que chamamos de envelhecimento (ou, com um pouco de bom humor, “morte morrida”).

O zoólogo Peter Medawar – famoso por ser o Nobel brasileiro que no fim não era mais brasileiro – chamou esse fenômeno de acúmulo de mutações (MA), e entre 1946 e 1952 deu a primeira descrição matemática dele. Em 1957, outro evolucionista lendário, George C. Williams, bateu mais um prego no caixão do seres vivos.

É o seguinte: os recursos de um corpo são limitados, e há uma discreta economia biológica para decidir a que funções eles são dedicados. Na teoria, talvez fosse vantajoso para uma capivara ter dentes enormes. Mas para cada punhado de cálcio que fosse dedicado a esses dentões, um pouquinho de cálcio acabaria sendo tirado dos ossos. E dentes grandes não ajudam muita coisa se o resto do corpo for frágil. Esses trade-offs são moderadores da seleção natural. Eles não deixam nenhuma característica sair de controle. 

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Há um trade-off óbvio entre se reproduzir loucamente na juventude e se preservar para viver mais tempo (Keith Richards é a exceção que prova a regra). No geral, animais que dedicarem mais recursos a durar mais tempo serão penalizados em relação aos que dão tudo de si para se reproduzir logo de cara. Afinal, guardar para depois não é vantajoso na natureza selvagem, em que você pode morrer a qualquer momento e a expectativa de vida é sempre baixa. Uma mutação que te ajuda antes e te mata depois é melhor que uma que não faz nada por você agora, mas melhora sua velhice.

E assim, de pouco a pouco, a natureza aprendeu a morrer. E Darwin marcou mais um ponto na biologia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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