A arbitrariedade do signo: entenda essa “lei de Newton” da linguística
Ferdinand de Saussure percebeu que o som das palavras não tem nada a ver com os objetos a que elas se referem no mundo. Essa observação, porém, é desafiada por estudos recentes que revelam uma sinestesia oculta no vocabulário.
Este é o primeiro texto da série “A vida secreta das palavras”, que está na edição de outubro de 2024 da Super. Fique de olho nos próximos capítulos.
Dê uma olhada nos dois personagens aqui em cima. Um deles se chama Bouba, o outro, Kiki. Quem é quem? Esse é um experimento clássico, realizado pelo alemão Wolfgang Köhler em 1929.
Você provavelmente acertou: afinal, os sons de “b”, “o” e “u” são arrendondados e macios como o balão nº 1, enquanto as letras “k” e “i” são pontiagudas, como o balão nº 2.
Eis dois casos em que o som remete ao significado – é o que crianças fazem quando apelidam galinhas de “cocós”, pássaros de “piu-pius” e cães de “au-aus”.
Esses exemplos, em que as palavras funcionam como onomatopeias, são exceções. Em 1909, o linguista francês Ferdinand de Saussure – a pronúncia é “Sôssir”, com o “r” raspando na garganta – enunciou uma das leis de Newton da linguística: o signo é arbitrário.
Ou seja: não há nenhum motivo para um carro se chamar “carro” e um livro se chamar “livro”. Nada, nos sons dessas palavras, remete a esses objetos. Os bebês em fase de aquisição de linguagem são forçados a montar um dicionário mental na base da observação e do adivinhômetro: se ninguém falar “bola” com uma bola na mão, a criança não terá pistas para deduzir seu significado.
Até existem hieróglifos egípcios que são desenhos das coisas que representam, e alguns ideogramas chineses ainda seguem a mesma lógica – “madeira” é 木, enquanto “floresta” é cinco vezes o símbolo para madeira: 森林.
Mas aqui estamos falando da grafia, não do som: a pronúncia dessas duas palavras chineses é mù e sēnlín. Ambas irrelacionadas e imprevisíveis.
Shakespeare já havia percebido isso em 1562: “O que há em um nome?”, pergunta Julieta – a namorada do Romeu. “Aquilo que chamamos de rosa, se tivesse qualquer outro nome, teria um cheiro igualmente doce.”
Julieta ficaria feliz em saber, porém, que uma série de pesquisas recentes – e não tão recentes – relativizam a máxima de Saussure. Várias forças discretas e não tão arbitrárias assim acabam moldando os signos e os tornam mais previsíveis que um lançamento de cara ou coroa.
Uma delas é a Lei da Brevidade de Zipf, enunciada pelo estatístico George Zipf em 1945. Ele verificou que, quanto mais usada é uma palavra, mais curta ela é.
Vide a listinha de palavras mais frequentes do Português, um oferecimento da Academia Brasileira de Letras: os verbos mais comuns são “ser”, “dizer” e “ter”, e os substantivos são “coisa”, “casa” e “tempo” (na prática, artigos como “um” e “as” e preposições como “e” e “com” são ainda mais numerosos em textos).
É óbvio: a linguagem tem uma finalidade prática e, por isso, acaba otimizada para transmitir mais informação em menos tempo. Essa correlação está verificada em mais de 80 famílias linguísticas.
A Lei de Heaps, por sua vez, mostra como o número de palavras diferentes usadas em um texto varia de acordo com o comprimento do texto. Conforme o texto se torna muito grande, o número de palavras diferentes não cresce no mesmo ritmo: várias delas começam a repetir. É uma versão linguística da lei dos rendimentos decrescentes.
Uma pesquisa mais recente, de 2016, apresentou 45 pares de antônimos (baixo vs. alto, pesado vs. leve etc.) em nove línguas estrangeiras para um grupo de 134 americanos que só falavam inglês.
O resultado é que todos acertaram uma quantidade estatisticamente significativa, acima da esperada para uma escolha aleatória. Eis mais uma evidência de que o signo não é, afinal, completamente arbitrário: nós elegemos alguns sons, de maneira inconsciente e coletiva, porque eles remetem de maneira sinestésica a seus significados.