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A ciência das apostas

Todo mundo quer ganhar. Inclusive os cientistas, que há mais de 500 anos tentam decifrar os jogos de azar.

Por Maurício Horta e Bruno Garattoni
Atualizado em 18 dez 2023, 19h51 - Publicado em 20 dez 2017, 15h38
A ciência das apostas
(Rodrigo Cerci/Superinteressante)

John von Neumann era um gênio indiscutível. Tanto que em 1927, com apenas 24 anos, esse matemático húngaro se tornou o mais jovem professor da Universidade de Berlim. Mas Von Neumann tinha uma cisma: jogar mal pôquer. Resolveu estudar o jogo, e logo concluiu que só a matemática não o salvaria. Porque no pôquer é fundamental saber blefar. Von Neumann mergulhou no tema e, um ano depois, escreveu um artigo científico a respeito: Theory of Parlor Games (“teoria dos jogos de salão”, em inglês). Ele estava inaugurando a Teoria dos Jogos, ramo da matemática que estuda estratégias de competição e cooperação. De início, debruçou-se sobre jogos de “soma zero” – aqueles em que um ganha e outro perde, como no pôquer. Mais tarde, John Nash, outro matemático, estenderia a teoria aos jogos de “soma não zero”, em que todos podem sair ganhando ou perdendo.

Grande parte da fama de Von Neumann veio em 1944, quando ele aplicou a Teoria dos Jogos à economia. Mas sua história por pouco não foi outra. Em 1948, início da Guerra Fria, foi convidado pelos EUA a participar da estratégia de contenção da União Soviética. Então, pensou o impensável: os EUA deveriam jogar uma bomba nuclear sobre Moscou, antes que os soviéticos criassem a sua. Isso porque, num jogo de “soma zero”, não havia possibilidade de cooperação: ou se ganha, ou se perde.

A ideia de Von Neumann não foi adiante, e a URSS fez seu primeiro teste nuclear em 1949. Mas, com o equilíbrio atômico, o jogo mudou: de soma zero, passou a ser de soma não zero. Ou seja: mesmo se atacasse, um dos dois países acabaria aniquilado pela retaliação do outro. Surgia, ali, a doutrina da Destruição Mútua Garantida (ou MAD, da sigla em inglês): se é certeza que os dois vão perder, então melhor nem apostar.

Neumann morreu em 1957, cinco anos antes de a MAD ser colocada à prova, na Crise dos Mísseis em Cuba. Mas a ideia nascida numa reles mesa de pôquer ajudou a compreender a dinâmica de uma guerra nuclear – e, por fim, a evitá-la. A Teoria dos Jogos mostra como, ao se embrenharem na jogatina, os cientistas podem fazer descobertas formidáveis. “As apostas são uma linha de produção de ideias surpreendentes”, afirma o matemático inglês Adam Kucharski, autor do novo livro A Ciência da Sorte (Ed. Zahar). Os jogos de azar inspiraram diversas descobertas científicas. Inclusive uma das mais essenciais: a probabilidade.

O SEGREDO DOS DADOS
No jogo de dados, qualquer número tem a mesma probabilidade de sair, certo? Errado. No século 16, o italiano Gerolamo Cardano descobriu uma lógica oculta. Veja.

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Ao jogar um dado, você pode ter 6 resultados diferentes.

Sua chance de acertar o número é, portanto, de 1 em 6.

Ao jogar dois dados, como é feito nos cassinos, há 36 pares de números possíveis, formando 21 combinações.

O pulo do gato é que algumas somas aparecem mais vezes do que outras.

Apostar no número 2, ou no 12, é a pior coisa: nesse caso, você tem apenas 1 chance em 36 de ganhar (pois apenas duas combinações, 1+1 e 6+6, formam esse resultado).

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Já o número 7 é a melhor aposta: pois seis combinações formam essa soma. Logo, ao escolher o 7, você tem 1 chance em 6 de ganhar.

Suponha que você jogou dois dados. A chance que os dois têm de cair com o número 6 é mero fruto da sorte, certo? A humanidade sempre achou que sim. Até que, no século 16, o polímata lombardo Gerolamo Cardano (1501-1576) resolveu crackear os dados. Ele anotou todas as 36 combinações possíveis e, a partir daí, notou que certas combinações tinham bem mais chance de sair. Cardano não ficou rico. Mas seu estudo foi o pontapé inicial na Teoria das Probabilidades.

O matemático suíço Daniel Bernoulli (1700-1782) foi além. Notou que a maioria das pessoas prefere fazer apostas de baixo risco e baixo retorno a assumir maior risco em jogadas mais lucrativas. Percebeu, então, que a utilidade de uma mesma quantia varia dependendo do quanto a pessoa já tem. Quem tem menos dinheiro prefere evitar o risco (e garantir um pássaro na mão). Já quem tem muito dinheiro tem mais tolerância ao risco. Com base nisso, Bernoulli formulou a Teoria da Utilidade Esperada, que é a base das loterias, da indústria de seguros e dos planos de saúde. Com pequenos pagamentos periódicos, você pode tanto ganhar uma fortuna quanto evitar uma fatura de hospital. Nos dois casos, a lógica é a mesma: uma mistura de probabilidade com comportamento humano. E veio do jogo.

As cartas e a vida

Nove décadas depois de John von Neumann ter se debruçado sobre o pôquer, cientistas finalmente começam a colher vitórias no carteado – agora, com um robô. O pôquer é um jogo especialmente difícil para computadores, porque envolve informações incompletas. Diferentemente do que ocorre no xadrez, em que todas as peças estão no tabuleiro, o jogador de pôquer não sabe as cartas do adversário. Então ele precisa decidir no chute, com base na leitura do comportamento do oponente – algo que só humanos sabem fazer. Pelo menos é o que se achava até pouco tempo.

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Em janeiro de 2017, quatro dos maiores jogadores de pôquer do mundo enfurnaram-se por 20 dias no cassino Rivers, em Pittsburgh. Depois de 120 mil mãos jogadas, Dong Kim, Jason Les, Daniel McAulay e Jimmy Chou foram derrotados. O vencedor, que embolsou US$ 1,7 milhão de mentirinha, foi Libratus – um programa desenvolvido por Tuomas Sandholm, da Universidade Carnegie Mellon. Não, ele não é capaz de “ler” o adversário. Mas suas jogadas são tão aleatórias que ninguém consegue prever seus blefes. O Libratus usa três algoritmos diferentes. O primeiro é de “aprendizado por reforço”. Durante meses, o robô jogou trilhões de mãos de pôquer contra si mesmo, na tentativa e erro. Assim, formou um imenso repertório de jogadas. Na hora de enfrentar um adversário de verdade, um segundo algoritmo analisa a partida em curso e escolhe, do primeiro sistema, os cenários relevantes para aquela situação. Normalmente, os jogadores acabam sacando o estilo do adversário com o tempo. Para evitar ser desvendado, todo dia o Libratus aciona um terceiro algoritmo, que zera seus padrões de comportamento. É um adversário infernal.

A ciência das apostas
(Rodrigo Cerci/Superinteressante)

As universidades têm um ótimo motivo para estudar o pôquer. “Ele é um microcosmo perfeito de muitas situações que encontramos no mundo real”, afirma Jonathan Schaeffer, pesquisador de inteligência artificial da Universidade de Alberta, no Canadá. É que todo tipo de negociação se baseia em informações incompletas. Computadores capazes de lidar com isso seriam muito úteis em campos como a cibersegurança, o mercado financeiro e até a medicina.

Mas nem sempre a inteligência humana se volta para fins tão nobres. Às vezes, cientistas só querem, mesmo, vencer no jogo.

Quebrando a roleta

Em 1947, o físico Albert Hibbs e o estudante de medicina Roy Walford largaram temporariamente a Universidade de Chicago e partiram de moto para os cassinos de Reno, em Nevada, com US$ 300 (uns US$ 3.300 em valores de hoje). O objetivo dos jovens de 23 anos era enriquecer com as leis da física. Em tese, a bolinha de mármore que o croupier joga na roleta tem probabilidade idêntica de cair em qualquer uma das 38 calhas. Numa roleta descalibrada, porém, alguns resultados acabam sendo favorecidos. A dupla percebeu que uma de cada quatro roletas estava viciada. Resultado: fizeram a festa nos cassinos Palace e Harold’s, ganhando US$ 114 mil em valores de hoje. Hibbs e Walford fizeram mais uma turnê em Las Vegas – e conseguiram o suficiente para comprar um iate e navegar pelo Caribe por um ano e meio.

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O matemático Edward Thorp, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) deu um passo maior ainda. Queria aplicar a física para crackear não roletas viciadas, mas as em perfeito funcionamento. Por um lado, era impossível prever o resultado exato da roleta, pois a bolinha quica aleatoriamente ao atingir o prato. Por outro, dava para estimar em que parte da roleta a bola pararia, com base na localização, velocidade e aceleração. Só faltava uma máquina que calculasse isso em tempo real. Então, em 1961, Thorp recorreu ao colega Claude Shannon – um pioneiro da tecnologia digital.

Shannon desenvolveu o primeiro computador vestível da história. Tinha o tamanho de um maço de cigarros, botões instalados num par de sapatos e um fone de ouvido. Um observador marcava o ritmo da bola acionando os botões com os dedões dos pés; o computador processava as informações e, por meio de tons musicais, dizia ao jogador em que região da roleta a bola deveria cairia. Após meses de testes, os dois viajaram para Vegas. Deu quase certo: os cabos eram tão delicados que a dupla precisava voltar repetidamente ao quarto do hotel para soldá-los.

A ciência das apostas
(Rodrigo Cerci/Superinteressante)

O gadget logo foi abandonado, e hoje está exposto no museu do MIT. Thorp, porém, não apostou todas suas fichas na roleta. No início da década de 1950, quatro soldados americanos publicaram um artigo demonstrando que, no blackjack (jogo de cartas conhecido no Brasil como 21), as cartas altas favoreciam o jogador, e as baixas, o dealer. Thorp se interessou, e descobriu algo a mais. Conforme o dealer distribui as 52 cartas do baralho, a proporção de altas e baixas no monte muda. Se forem distribuídas mais cartas baixas, sobrarão mais altas no monte; assim, as cartas vindouras tenderão a favorecer o jogador. Aí, é só elevar as apostas. Thorp publicou suas descobertas em 1962, no livro Beat the Dealer (“vença o dealer”). Nascia a contagem de cartas, técnica até hoje usada por jogadores – e detestada pelos cassinos, que chegam a expulsar contadores.

Em busca de ganhos maiores, Thorp trocou o cassino pela bolsa de valores – em 1969, montou um fundo de investimentos e ficou rico. Mas seus ensinamentos deixaram raízes no MIT. Todo ano, a universidade convida seus estudantes a dar cursos sobre temas livres. Um dos mais influentes foi “How to Gamble if You Must” (como apostar, se for preciso), de 1979. Fez tanto sucesso que deu origem a uma empresa de apostas, a Strategic Investments, com US$ 1 milhão em capital e times de estudantes jogando em diversos cassinos. O time de blackjack do MIT acabou banido das mesas, e a Strategic Investments fechou em 1993. Mas isso não foi o fim.

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O segredo da loteria

Na década seguinte, outro aluno do MIT decidiu encarar o mais imprevisível dos jogos: a loteria. Em 2005, o estudante de matemática James Harvey escolheu esse tema para seu trabalho de conclusão de curso. Naquela época, a Loteria de Massachusetts tinha um problemão: ninguém acertava os seis números da WinFall, a Mega-Sena local. Sem vencedores, o jogo perdeu o encanto. Então a loteria bolou uma novidade: toda vez que o prêmio acumulado atingisse US$ 2 milhões, seria dividido entre quem tivesse acertado três, quatro ou cinco números. A chance de ganhar aumentou, e as vendas de bilhetes também.

Harvey ficou intrigado. Fez as contas e concluiu que havia como ganhar sempre: quando o prêmio acumulava e a regra afrouxada entrava em ação, bastava comprar bilhetes em quantidade suficiente para abocanhar a maior parte do dinheiro – e ter certeza de lucro. Ele reuniu 50 colegas, que juntos compraram 500 bilhetes da loteria. Logo de cara, triplicaram o valor investido. A partir daí, Harvey transformou a loteria em emprego fixo.

Sua maior façanha aconteceu em agosto de 2010. Analisando resultados anteriores, concluiu que a chance de a loteria alcançar os US$ 2 milhões acumulados só se tornava provável depois que o prêmio chegasse a US$ 1,6 milhão. No dia 12 daquele mês, o valor acumulado chegou a US$ 1,59 milhão. Era hora de agir. Os matemáticos do MIT compraram milhares de bilhetes – e lucraram US$ 700 mil. Eles reinvestiram o dinheiro em mais apostas, e continuaram ganhando.

O jornal Boston Globe acabou descobrindo o esquema em 2011. Mas, a essa altura, o time de Harvey e outros dois grupos já tinham gasto impressionantes US$ 40 milhões em bilhetes – e lucrado US$ 8 milhões. Com o escândalo, as regras do jogo acabaram sendo mudadas. Já Harvey trocou de carreira. Hoje, ele trabalha fazendo softwares do Vale do Silício. Algo quase tão lucrativo quanto ganhar no jogo.

O TRUQUE DO VINTE E UM

O matemático americano Edward Thorpe descobriu que, contando as cartas jogadas, é possível aumentar as chances de vencer no blackjack.

O objetivo do jogo 21 (blackjack) é tirar cartas cujos números, somados, deem 21 (ou o mais perto disso).

Os outros jogadores, assim como o dealer, também tentam fazer 21.

Thorpe descobriu que, estatisticamente, cartas altas favorecem o jogador e cartas baixas
favorecem o dealer.

Se houver muitas cartas altas no monte, portanto, você vai se dar bem nas próximas jogadas. É hora de apostar alto.

Se você memorizar as cartas que vão sendo jogadas, tem como deduzir quais ainda estão no monte. Para facilitar, Thorpe inventou um sistema de contagem.

A cada carta:
– 2, 3, 4, 5, 6: adicione 1 ponto
– 7, 8, 9: ignore
– 10, J, Q, K: subtraia 1 ponto

Quanto maior a pontuação, maior a sua chance de se dar bem nas próximas rodadas.

Problema: se o cassino perceber que você está contando cartas, poderá expulsá-lo do jogo.

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