A física dança Tango
O fenômeno do esntrelaçamento é uma das coisas mais estranhas do Universo. Entenda essa dança bizarrae saiba como ela torna possível o teletransporte.
Flávio Dieguez
O foco de luz passeia entre as mesas imersas na penumbra, sublinhando o desenho hipnótico dos passos milimetricamente combinados dos dois dançarinos. Cada movimento, por mais complicado que seja, começa e termina em sincronia exata com o do parceiro, os dois entrelaçados numa só coreografia.
Pode parecer um show de tango, mas é, de fato, a descrição de um fenômeno muito estranho da física – sem exagero, é o recordista absoluto na categoria das idéias incompreensíveis. É chamado de entrelaçamento porque seu efeito é casar, dois a dois, átomos, elétrons ou moléculas, fazendo-os dançar com a mesma concatenação de um par de bailarinos no palco de um cabaré. Se um átomo gira assim, o outro roda assado e vice-versa. Dois átomos entrelaçados já não são duas entidades autônomas, mas uma única criatura bicéfala, da mesma forma que um casal de bailarinos permanece unido pela evolução dos passos na pista de tango. Até aí dá para acompanhar. A questão fica bizarra mesmo se você separa o casal. Ainda que um dos parceiros esteja no Pólo Norte e o outro, digamos, em Buenos Aires, o casal continua colado – o movimento de um é imediatamente copiado pelo outro, sem que eles nem se toquem.
Você pode dizer: “Átomos? Quem liga para os rodopios dos átomos?” Acontece que somos todos feitos de átomos. E o que eles fazem ou deixam de fazer pode ter conseqüências dramáticas na nossa vida. Com todo respeito, caro leitor, que tal se cada átomo do seu corpo for entrelaçado a um átomo livre? Isso significa que uma porção de átomos livres vai passar a se comportar exatamente como os seus átomos. Eles se ligarão uns aos outros assim como os seus átomos estão ligados. O resultado vai ser um tipo de “complemento” de sua própria pessoa – um outro “você”, distinto de você, mas misturado à sua personalidade pelos mistérios do entrelaçamento. Tudo o que você fizer o outro fará ao contrário.
Para todo pensamento seu, o outro terá um equivalente – afinal, os pensamentos, como quase tudo, nada mais são que movimentos microscópicos de partículas do átomo. Digamos que serão dois bailarinos amarrados um ao outro pelo ritmo de uma mesma balada atômica. Nem tente imaginar como pode ser isso: quando a ciência chega a descobertas tão novas assim e os pesquisadores avançam no limite entre o conhecido e o desconhecido, a inteligência não é capaz de compreender perfeitamente o que vem por aí. O melhor é aceitar os fatos com humildade, com o consolo de que os nossos avós também já ficaram chocados com novidades que hoje nos parecem óbvias, como a redondeza da Terra ou a macaquice dos humanos.
Uma coisa é certa: não haveria risco algum para quem praticasse o balé do entrelaçamento humano. Nada afeta os corpos entrelaçados. Ou melhor, o único efeito de uma possível interferência externa é destruir a mistura e devolver a individualidade a cada membro do par. Ou seja, pode ser que, se um bailarino tropeçar, o par se desfaça. E seu outro você ficará independente de você. A experiência fica ainda mais divertida se seu complemento, depois de tornado independente, for mandado para Marte ou até para o outro lado do Universo.
O seu alter ego continuará a ser seu complemento e poderá, ele também, ganhar um complemento no solo marciano (supondo que lá exista um laboratório para recebê-lo). Esse complemento do seu complemento será então uma cópia exata de você, gerada num outro mundo. Um “você” surgirá em Marte, sem que você precise viajar. Isso não deixa de ser uma forma de teletransporte, não de todo diferente do que se usava na nave Enterprise, do seriado de tevê Jornada nas Estrelas.
PARA QUE SERVE?
Delírios à parte, o entrelaçamento é uma realidade mais que palpável, testada com sucesso inúmeras vezes nos últimos anos. Só que ele não envolve pessoas, muito menos bailarinos – apenas pequenas partículas subatômicas, como elétrons e fótons (é difícil demais, embora teoricamente possível, fazer experiências desse tipo com coisas maiores). Quem duvida, é só esperar. Não demora muito, o tango atômico vai invadir lares e escritórios de todos os terráqueos na forma de tecnologias inéditas. Algumas, difíceis até de imaginar, mas com certeza muito práticas e eficientes. Uma delas é a chamada criptografia quântica, cujo objetivo imediato é criar senhas para a internet que sejam impossíveis de violar. As senhas serão construídas na forma de duas seqüências de números, uma entrelaçada à outra. Uma seqüência fica armazenada no seu computador. A outra você usa no dia-a-dia – por exemplo, como assinatura eletrônica para fazer compras na internet.
Como as seqüências estão entrelaçadas, não haverá meio de mexer em uma delas sem que o movimento seja sentido pela outra. Basta um hacker ver a senha “móvel” para alterar a que está guardada, levando ao cancelamento automático da transação. É possível entrelaçar números porque, como tudo que se faz num computador, eles são representados por minúsculas correntes elétricas, dentro da máquina. Ou seja, são elétrons correndo num fio. E elétrons são entrelaçáveis.
Outra aplicação prática em estágio avançado de desenvolvimento é o computador quântico, no qual as informações serão gravadas diretamente nos átomos ou nas moléculas, que são milhares de vezes menores que qualquer dispositivo eletrônico existente hoje. Só isso já significa uma economia considerável de espaço, mas o melhor é a velocidade com que essas informações poderão ser processadas, por causa do entrelaçamento. Lembre-se de que, nos computadores comuns, os dados são escritos só com dois símbolos, o zero e o um. Por exemplo: se a eletricidade corre para a esquerda, quer dizer um. Se corre para a direita, significa zero. Para computar, o computador tem que ler, uma a uma, todas as unidades de informação, chamadas bits. Isso toma tempo.
Já o computador quântico poderá criar zeros e uns conforme os átomos girem para a esquerda ou para a direita. E, se os átomos estiverem entrelaçados, basta saber a rotação de um deles, porque a rotação do outro será contrária à do primeiro. À medida que mais átomos são entrelaçados uns aos outros, a economia de tempo cresce desproporcionalmente. Algumas estimativas falam que o computador quântico será algo como 100 trilhões de trilhões de vezes mais rápido que os atuais.
ESQUISITICE QUÂNTICA
Embora a possibilidade do computador quântico esteja relativamente distante – vai demorar ainda uns dez anos –, há pouca dúvida de que ela se tornará realidade. Então, vale a pena entender um pouco melhor o que significa entrelaçar duas partículas atômicas. Como muitas das esquisitices da física contemporânea, o enigma do entrelaçamento está relacionado ao cálculo das probabilidades. O primeiro a chamar atenção para esse assunto foi o austríaco Erwin Schrödinger, que em 1926 bolou uma curiosa experiência, comparando um átomo a um gato. Imagine um gato preso numa caixa contendo um vidro de veneno. Na caixa, há um mecanismo que pode ou não abrir a tampa do vidro, totalmente ao acaso. Se ela abrir, o gato morre. Como saber, depois de um tempo, se o bicho está vivo ou morto, sendo que a caixa está fechada e não se pode ver dentro dela?
A conclusão mais fácil seria dizer, simplesmente, que não sabemos qual é o verdadeiro estado de saúde do gato. Óbvio. Do ponto de vista probabilístico, no entanto, há outra maneira de responder essa pergunta: pode-se dizer que o gato está vivo e morto ao mesmo tempo. Como as duas possibilidades têm chances iguais, a solução do problema é: o gato está 50% morto e 50% vivo. Enquanto ninguém olhar dentro da caixa, ele permanece num estado indefinido entre a vida e a morte.
Schrödinger foi levado a essa conclusão pelos seus cálculos. Mas ele não gostou nem um pouco dela. Só podia estar errada, de tão absurda. Indignado, o filósofo da ciência alemão Karl Popper atacou a interpretação da quântica, dizendo que estavam querendo vender uma ignorância (qual é o estado do gato na caixa) como se fosse uma informa��ão real (a soma das probabilidades do gato morto mais o gato vivo). Albert Einstein, embora reconhecendo que a teoria funcionava na prática, sempre achou que ela estava incompleta.
Acontece que, de lá para cá, ficou claro que as probabilidades são reais, pelo menos no estranho mundo das subpartículas. Um elétron que pode rodopiar tanto para um quanto para o outro lado está na prática rodopiando para os dois. Os cientistas levam isso em conta em seus cálculos, que estão nos aparelhos que usamos todos os dias. Se isso não fosse verdade, os computadores não poderiam funcionar. Calcula-se que quase metade do dinheiro que rola na economia mundial venha da fabricação ou da venda de tecnologias que seguem as regras malucas dessa teoria. É verdade que elas nunca funcionam com objetos grandes como um gato – Schrödinger exagerou no exemplo para enfatizar o absurdo da situação. O fato, porém, é que átomos e moléculas realizam proezas probabilísticas o tempo todo.
Perceba a mudança de visão que a teoria atômica trouxe para a ciência: nossa tendência é achar que, antes de abrir a caixa, não sabemos se o gato está vivo ou morto. Aparentemente, não dá para concluir nada a esse respeito. Mas a física contradiz essa noção intuitiva e diz o oposto: podemos, sim, saber alguma coisa sobre o conteúdo oculto da caixa. Tanto sabemos que podemos até projetar um novo tipo de computador com o que sabemos.
Passada a perplexidade, os cientistas aprenderam a provocar situações como a do gato, só que com átomos. Assim surgiram os entrelaçamentos. Um meio de entrelaçar é obrigar dois átomos a passar por uma espécie de filtro que os separa de acordo com sua rotação: se um átomo gira para a esquerda, vai para um recipiente. Se gira para a direita, vai para outro. Como não se sabe de antemão qual é a rotação de cada átomo – e os recipientes estão fechados –, os dois átomos se encontram numa situação indefinida. É como se fossem dois gatos de Schrödinger: cada um gira para os dois lados ao mesmo tempo. Mas eles estão entrelaçados porque é certo que, se você determinar a rotação de um, a do outro será obrigatoriamente a contrária. Se um gira para a esquerda, o outro certamente rodará para a direita. E, ainda que você leve um deles para Marte, essa conexão se mantém. Sabe-se lá como, mas é o que acontece.
Até hoje, é isso que se conseguiu fazer: criar casais de subpartículas dançarinas e até teletransportá-las por distâncias pequenas. Não é a mesma coisa que recriar pessoas inteiras rodopiando pelo Universo – e é quase certo que jamais se chegue a esse estágio. Simplificados dessa maneira, os fantasmas da física quântica até parecem uma bobagem. Mas é assim mesmo. Todo mistério perde o encanto ao ser decifrado.
Para saber mais
Na livraria:
Entanglement, Amir Aczel, Plume, EUA, 2003