A genética fracassou?
Os anos 2000 começaram com o anúncio de uma revolução. O código da vida havia sido decifrado. Estávamos prestes a entender as doenças mais misteriosas. E transplantes de DNA dariam conta dos distúrbios mais graves. Mas nada disso aconteceu até hoje. A revolução ainda está a caminho?
Escrever o manual de instruções de uma pessoa. Esse era o objetivo dos cientistas que começaram a mapear e sequenciar o genoma humano, em 1990. Um trabalho duro. A chave para desvendar nosso corpo estava em um código formado por milhares de genes, cada um deles com uma função definida – e completamente desconhecida. Com um mutirão de cientistas e computadores potentes, no entanto, o mundo achou que chegara a hora de entender tudo: por que ficamos doentes, nascemos com cabelos lisos ou crespos, sentimos mais ou menos dor do que os amigos. Entender por que uma pessoa funciona do jeito que funciona.
Seria uma obra revolucionária para a saúde do homem. Saberíamos com antecedência que doenças nos afetariam no futuro. Desligando genes que causam disfunções e ligando aqueles responsáveis pelo conserto, seria mínimo o risco de sofrermos de males hereditários. Acreditando nisso, o mundo comemorou quando o mapeamento do genoma humano foi apresentado em 2000, quase completo. Em coisa de 10 anos, diziam os líderes do projeto, viveríamos melhor. E mais.
Os 10 anos se passaram e o que foi prometido não aconteceu. Seu médico, leitor, ainda não sabe por que exatamente o câncer afeta pessoas saudáveis de repente. Nem prescreve remédios feitos só para você, de acordo com seu genoma. Mas por que a pesquisa genética fracassou em suas promessas? E uma pergunta mais importante: ainda tem chance de dar certo?
Promessa 1
Doenças desvendadas
Se tudo tivesse saído como imaginado, o Projeto Genoma teria desvendado a causa de doenças graves, como diabetes e câncer. O resultado do trabalho seria um manual mesmo: “Os genes BRCA1 e BRCA2 são responsáveis por suprimir tumores. Em caso de mau funcionamento, podem causar câncer de mama”. De posse desse “livro da vida” (termo que os cientistas usavam), médicos saberiam exatamente como nos curar de doenças. E como evitar problemas de saúde que surgiriam no futuro.
Na prática, seria assim: todo mundo teria o genoma mapeado. O médico leria o DNA do paciente e procuraria por algum gene ou mutação capaz de provocar uma doença. Se encontrasse algo preocupante, prescreveria um tratamento que mexesse direto naquele gene. Diabéticos, por exemplo, sairiam com uma receita que regulasse o gene responsável pela produção de insulina. O Projeto Genoma mapearia os botões do corpo que ativam determinados processos – os médicos só precisariam ligá-los e desligá-los conforme necessário.
Mas esse cenário começou a desmoronar logo, assim que os cientistas mergulharam nos dados do genoma. Para começar, eles nem sabiam direito quantos genes teriam de decifrar. A princípio, acreditavam que o total ficava em torno de 300 mil. Depois chegaram ao número de 100 mil. E reduziram para cerca de 25 mil.
Era complicado mesmo estimar o número de genes. Eles estão bem escondidos no corpo. Para encontrá-los, o primeiro passo é olhar dentro das células, no núcleo. Lá estão os cromossomos que herdamos de nossos pais. Os cromossomos guardam o DNA, uma longa cadeia de substâncias químicas. O que os cientistas tinham de fazer era olhar para a espiral do DNA e apontar os pedaços dela que mandam o corpo produzir proteínas. Esses pedaços é que são chamados de genes.
A identificação deu tanto trabalho quanto o que você teria se resolvesse sair cavucando por aí para achar ouro. Ouro mesmo, porque os genes têm a função mais nobre no organismo: produzir proteínas. Tudo o que acontece no seu corpo é regulado pelas proteínas, como a cor do cabelo, a absorção de gordura, o transporte de oxigênio. E esse trabalho é feito de acordo com o que os genes mandam. Eles ordenam, as proteínas executam.
Além de valiosos, genes são raros no DNA. A maior parte da espiral é formada por “DNA lixo”, como eram carinhosamente apelidados os trechos de DNA que não codificavam proteínas. Por isso, os cientistas tinham que vasculhar bem para definir o que era gene e o que era DNA lixo.
Descobrir quantos e quais são os nossos genes seria a primeira etapa para desvendar doenças. O raciocínio era baseado em uma equação simples e linear: cada gene produz uma proteína. Se fizéssemos um listão com todos os pares – gene e proteína produzida -, saberíamos exatamente em qual deles seria preciso mexer quando adoecêssemos.
Pena que essa tese estava errada. O mergulho nos dados do genoma mostrou que a história é bem mais complicada. Um gene pode estar ligado à produção de várias proteínas, não de apenas uma. E genes não trabalham sozinhos – interagem uns com os outros, o que resulta em uma nova leva de proteínas (veja mais no quadro à direita). “Ficou claro que há uma complexidade biológica que vai muito além da quantidade de genes que temos no corpo”, diz Nicholas Hastie, diretor de genética humana do Conselho de Pesquisas Médicas do Reino Unido, órgão governamental que promove pesquisas médicas. A ideia de que bastaria interferir em um gene para resolver um problema que surgisse caiu por terra.
Na verdade, ela até ficou de pé, mas só para doenças mais raras. Essas, sim, são causadas por um único gene. Um exemplo é a doença de Huntington, um distúrbio neurológico que aparece entre os 40 e os 50 anos e provoca movimentos involuntários de algumas partes do corpo, como braços e pernas. Com um exame simples de sangue, é possível saber com precisão se alguém vai ou não ter o problema.
Para o resto das doenças, no entanto, é bem mais difícil encontrar uma resposta exata. No caso da obesidade, cientistas já descobriram 40 genes com alguma culpa no cartório. E esse número equivale a apenas 10% dos responsáveis genéticos pelo problema. Ainda é preciso correr atrás dos outros 90%.
Parece muito trabalho, mas pelo menos ainda estamos falando de um terreno conhecido dos cientistas. O pior é que o Projeto Genoma revelou um protagonista nessa história até então menosprezado: o DNA lixo, aquele que não produz proteínas. A pesquisa mostrou por que ele não mete a mão na massa – ele é mais um gerentão dos genes mesmo. “A grande surpresa do Projeto Genoma foi descobrir que o DNA antes considerado lixo é justamente o responsável pela interação entre os genes”, diz Salmo Raskin, geneticista e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Genética, que trabalhou no projeto. Os cientistas começaram uma nova área de estudos, que nem imaginavam que enfrentariam. E perceberam que mapear e sequenciar o genoma não seria o fim de uma maratona. Seria o começo.
As empresas que formam o varejão do genoma.
Qualquer um já pode ter o próprio genoma sequenciado. A Illumina oferece o serviço por US$ 19 500. Para quem não tem tanto dinheiro, a opção é recorrer a empresas como 23andMe, Navigenics e DeCode. Essas não sequenciam o genoma, apenas o vasculham à procura de genes e mutações ligadas a doenças (como comparar o seu DNA com um gabarito e ver se há algo errado ali). Na 23andMe, empresa que informou a Sergey Brin que ele corria o risco de ter Parkinson (e que tem a esposa de Brin como sócia), o serviço custa US$ 499. Nos EUA, essa indústria tem despertado preocupação. Em julho, uma agência do governo divulgou um teste-surpresa que havia feito com essas companhias. O resultado: as empresas deram avaliações diferentes lendo o mesmo genoma, e uma chegou a dar como praticamente certo o diagnóstico de câncer a uma das clientes fictícias. Para evitar abusos como esses, o governo tem conversado com as empresas para criar uma regulamentação para o setor.
Promessa 2
Remédios personalizados
John é um rapaz de 23 anos. Como está com o nível de colesterol alto, seu médico pede que ele se submeta a 15 testes genéticos. O resultado, pronto uma semana depois, traz um alerta: John tem um risco alto de desenvolver doenças do coração. Mas ele pode ficar tranquilo. Estamos em 2010, e a indústria farmacêutica já usou as informações do Projeto Genoma para criar remédios personalizados, capazes de combater especificamente o fator que coloca o corpo de John em perigo. Graças às drogas, o risco de John ter uma doença do coração cai ao mesmo nível do restante da população.
Essa história é fictícia. Foi escrita em 1999 por Francis Collins, então diretor do Projeto Genoma e atual diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA. É assim que Collins imaginava que trataríamos da saúde hoje, em 2010. “A revolução genética está a caminho”, dizia no fim do artigo, publicado no periódico The New England Journal of Medicine.
O Projeto Genoma despertou tanta euforia que os cientistas concluíram que logo teríamos um remédio para cada gene ou mutação genética capaz de gerar doenças em nosso corpo. Como aconteceu com John. Poderíamos até nos prevenir com vacinas personalizadas. E recorrer a uma espécie de transplante de DNA, por meio de mudanças no genoma.
O que estava a caminho, no entanto, era uma morte. Aconteceu em 1999. A vítima foi Jesse Gelsinger, um rapaz de 18 anos do Arizona portador de uma doença hereditária rara, chamada ornitina trancarbamilase. O problema é causado pela falta de um gene no fígado e tem como principal característica a dificuldade de eliminar amônia. Normalmente quem nasce com o distúrbio não vive mais de um mês, mas o rapaz sofria de uma forma branda da doença.
Gelsinger foi convidado a participar de estudos conduzidos pela Universidade da Pensilvânia. A ideia dos pesquisadores era transportar o gene que faltava até o fígado do rapaz, usando um vírus de resfriado. Vírus têm a capacidade de inserir seu próprio DNA nas células da pessoa que infectam. Os cientistas quiseram tirar proveito disso – com um vírus modificado, que carregaria o gene tão necessário à vida de Gelsinger. Quatro dias depois de feito o procedimento, Gelsinger teve falência múltipla dos órgãos. A hipótese levantada na época foi de que o sistema imunológico de Gelsinger teria disparado uma resposta muito severa ao vírus.
Foi a primeira morte relacionada à chamada terapia gênica, a linha de tratamento que propõe interferências diretas no DNA. Depois desse episódio, órgãos de segurança passaram a exigir mais cuidados. Investimentos privados em terapia gênica, que cresciam naquele período, minguaram nos anos seguintes. “O incidente marcou uma virada no setor e precipitou um rápido recuo tanto dos investidores como das grandes companhias”, escreveu Paul Martin, professor da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, no livro Living with the Genome.
O susto concentrou as pesquisas nos remédios personalizados. Ainda que não tenham conseguido desvendar as nossas doenças, os cientistas já conseguiram desenvolver drogas específicas para pessoas que possuem mutações. Um exemplo é o Herceptin, lançado pelo laboratório Roche para pacientes com câncer de mama. O remédio funciona só com quem tem uma certa proteína que aumenta a agressividade do câncer. (No Brasil, a droga é distribuída pelo Instituto Nacional do Câncer e por hospitais públicos de Rio de Janeiro e São Paulo.)
É um dos avanços já garantidos pela ciência. Se ainda não dá para montar o quebra-cabeça completo das doenças, pelo menos já encontramos algumas peças. E podemos usá-las a nosso favor. É o que tem feito Sergey Brin, um dos fundadores do Google. Em 2004, ele descobriu que tem uma mutação no gene LRRK2, relacionada à doença de Parkinson. Brin não sabe se desenvolverá a doença. O risco está entre 20 e 80%, o que o coloca numa desconfortável posição entre “fique tranquilo” e “corra para o hospital”. Mas ele já começou a trabalhar com o que pode. Aderiu a bebidas com cafeína e exercícios físicos, fatores que previnem contra o Parkinson segundo estudos. “Eu possuo dicas melhores do que qualquer outra pessoa sobre quais doenças podem me atingir no futuro – e tenho décadas para me preparar para isso”, escreveu Brin em um blog que criou, em um post de 2008.
“Os testes genéticos permitem que a pessoa tenha mais controle sobre seu futuro”, diz Aad Tibben, professor de psicologia da Universidade de Leiden, na Holanda. No caso de Brin, o controle durará décadas. Ele tem 37 anos, e a doença só deve aparecer na velhice, se aparecer. Está aí um dos dilemas éticos que surgiram depois de a euforia baixar. Conhecer a herança genética pode fazer uma pessoa se preocupar por toda a vida com uma doença que pode nem mesmo existir. E inclusive tomar remédios como prevenção, ainda que saudável. “Faz sentido alguém fazer testes para uma doença que só pode aparecer 30 anos depois?”, pergunta Raskin, da Sociedade Brasileira de Medicina Genética.
Como Craig Venter passou de vilão dos humanos para Deus das bactérias.
O plano de Venter de ganhar dinheiro com a venda de informações conseguidas com o sequenciamento do genoma pode ter se frustrado. Mas ele conseguiu um lugar de honra na ciência mundial. Depois de deixar a Celera por divergências com outros acionistas da empresa, Venter se lançou em uma empreitada ambiciosa: criar uma vida artificial. Ele conseguiu. Em maio, anunciou ter criado a primeira forma de vida com um genoma produzido artificialmente, uma bactéria. É o primeiro passo para construir organismos muito úteis, que nos ajudem a produzir combustíveis ou combater doenças.
Promessa 3
Fama e fortuna
2000 foi o grande ano da biotecnologia. Com o anúncio de que o genoma estava quase mapeado, investidores colocaram US$ 39,9 bilhões nas companhias do setor – até hoje um recorde. Só nos EUA, o investimento saltou de US$ 8,8 bilhões em 1999 para US$ 32,7 bilhões em 2000.
Nem cientistas nem investidores sabiam naquela época, mas estava se formando uma bolha. “Muitos tinham grandes expectativas sobre as aplicações comerciais dos medicamentos que apareceriam depois do mapeamento e sequenciamento do genoma humano”, diz Monika Gisler, pesquisadora do Instituto Nacional de Tecnologia de Zurique, na Suíça, que estudou o desevolvimento da indústria de biotecnologia. O pessoal só não contava com uma possibilidade: a demora em transformar a pesquisa da genética em produtos.
Em pouco tempo os investidores ficaram impacientes. Companhias que tinham sido beneficiadas com a euforia se viram, de repente, sem dinheiro. Em 2002, a americana Avigen, que pesquisava tratamentos para a hemofilia e tinha sido destaque do The New York Times em 1999, anunciava o corte de 28% dos funcionários para sobreviver – sem receber investimentos, era preciso guardar o dinheiro que ainda existia. (A empresa acabou vendida em 2009, depois de quase falir.)
Para os cientistas, a bolha tinha começado até mais cedo. Duas décadas antes. Em 1982, a Food and Drug Administration (FDA), órgão americano que libera a comercialização de medicamentos, aprovou a primeira insulina humana sintética, feita com uma técnica conhecida como recombinação de DNA. A fabricante era a Genentech, da Califórnia. Esse primeiro produto biotecnológico foi o sinal de que as empresas poderiam ganhar dinheiro com isso.
Quem se aventurou primeiro foi Walter Gilbert, bioquímico que havia ganho um Nobel de Química em 1980 por seu trabalho de sequenciamento de DNA. Em 1986, Gilbert resolveu sair do Conselho Nacional de Pesquisa, um braço da Academia Nacional de Ciências dos EUA, para abrir a própria empresa. Seu plano: criar um catálogo com o código genético de uma pessoa e cobrar taxas de quem quisesse acessar o banco de dados. Os clientes seriam a indústria farmacêutica e a comunidade acadêmica. Mas os investidores ainda não tinham se convencido. Sem conseguir financiamento suficiente, o projeto de Gilbert não foi para a frente. E um Nobel se tornou o primeiro a fracassar na busca por fama e fortuna com o genoma humano.
Ele não foi o único a abandonar o governo para ganhar dinheiro. Em 1998, Craig Venter, ex-pesquisador dos Institutos Nacionais de Saúde, criou a Celera Genomics, uma empresa que desafiou o governo americano: com método de sequenciamento e tecnologias novos, prometia ser a primeira a decodificar o genoma humano. Venter queria patentear os genes mais relevantes, usar os dados para criar remédios e cobrar pelo acesso a seu banco de dados. Por querer dinheiro com a pesquisa, conquistou a antipatia de colegas e chegou a ser apelidado de Darth Venter, uma referência ao vilão Darth Vader.
Mas o plano dele com a Celera fracassou. O governo não gostou da concorrência, acelerou o passo e a corrida acabou em empate. Em junho de 2000, Venter e o líder do Projeto Genoma Humano, que a essa altura era Francis Collins, anunciaram juntos que 95% do genoma humano estava mapeado. Como o projeto público divulgou o mapa genético, a Celera – que em 1999 havia recebido investimentos na bolsa americana de US$ 944 milhões – não tinha mais como cobrar por seus dados. O resultado pode ter sido um grande passo para a humanidade, mas não deve ter agradado aos investidores da companhia.
Além de cientistas e investidores, farmacêuticas também acharam que o sequenciamento do genoma poderia dar muito dinheiro. Ainda em 1990 a Roche comprou 60% da Genentech, aquela que havia desenvolvido a insulina sintética. Foi uma forma de se preparar para desenvolver os remédios personalizados, que, acreditava-se, chegariam em breve. “Fizemos a compra porque precisavámos absorver o conhecimento que eles tinham nessa área”, afirma Maurício Lima, diretor da Roche no Brasil.
Os negócios não vieram com a rapidez que se esperava. As apostas, no entanto, não foram desfeitas. Walter Gilbert pode não ter conseguido construir sua indústria da genética, mas Craig Venter já enxergou novas oportunidades (leia mais no quadro à direita). E as farmacêuticas ainda acreditam que os remédios personalizados virão. Em 2009, a Roche comprou o restante da Genentech por US$ 46,8 bilhões. As parcerias de laboratórios com empresas de biotecnologia dobraram entre 2005 e 2009. E o investimento em empresas do setor voltou a crescer, ainda que tenha sido no ano passado de apenas US$ 23 bilhões – 41% menos do que em 2000. “Ainda acredito que o sequenciamento do genoma nos trará remédios personalizados e novas ferramentas de diagnósticos”, diz Douglas Fambrough, da Oxford Bioscience Partners, uma empresa de Boston que financia projetos de pesquisa genética.
As novas promessas
A primeira década dos anos 2000 foi um choque de realidade para quem apostou tudo na genética. Mas isso não significa que os esforços foram em vão. Não, a genética não fracassou. Só vai dar muito mais trabalho do que se pensava.
Para quem sofre de doenças como Parkinson, Alzheimer e câncer, as perspectivas ainda dependem de pistas: genes e mutações que comprovadamente influenciam nas panes que nosso organismo sofre. Mas ainda é preciso entender o que os faz agir e como para que possamos criar tratamentos certeiros. Para chegar a essas respostas, institutos no mundo todo pretendem sequenciar o genoma de milhares de pessoas (veja mais no quadro na página seguinte). É o crowdsourcing da genética.
Os custos para sequenciar DNA têm caído graças a novos métodos e ao avanço na tecnologia. O trabalho, que custou US$ 300 milhões a Craig Venter, já era feito por US$ 60 mil em 2009. “Com as tecnologias que têm aparecido, muitas pessoas em países desenvolvidos poderão sequenciar seu genoma dentro de 5 ou 10 anos”, diz John Sulston, Prêmio Nobel de Medicina em 2002 e uma das lideranças do Projeto Genoma no Reino Unido. Esse sequenciamento em massa é decisivo para a ciência. Como sabemos que doenças graves não são causadas por um único gene, precisamos da comparação entre vários genomas para encontrar padrões entre eles. Assim saberemos o que há de comum entre todas as pessoas que possuem diabetes, por exemplo.
“Agora que os custos caíram, podemos começar logo a fase criativa e produtiva”, diz George Church, professor da Escola de Medicina de Harvard e criador do primeiro método de sequenciamento genômico, feito nos anos 80. Church criou o Projeto de Genoma Pessoal, uma iniciativa que está reunindo voluntários dispostos a publicar seu genoma na internet. A ideia é sequenciar todo o genoma de 100 mil pessoas. Os dados ficarão disponíveis na internet, junto com uma ficha médica e fotos com as principais características relacionadas aos genes publicados. Tudo disponível para que gente de todo o mundo use os dados para pesquisas. “A informação pública é importante para que novas ideias venham de diferentes mentes. Não só de médicos especialistas, mas também de cientistas da computação, outras famílias com as mesmas características e educadores”, afirma Church.
Outro programa que pretende aproveitar os custos menores do sequenciamento é o Consórcio Internacional do Genoma do Câncer (ICGC, na sigla em inglês), que vai catalogar todas as mutações do genoma humano relacionadas ao câncer. O objetivo é sequenciar o genoma de 25 mil pessoas, todas com um dos 50 tipos de câncer considerados mais graves.
Para conseguir tantos dados, o ICGC contará com representantes em 12 diferentes países. Eles usarão um método de pesquisa diferente: compararão duas células de uma mesma pessoa – uma saudável e uma cancerosa. Ou seja, dois genomas. Na saudável, os cientistas encontrarão o genoma original do paciente. Na cancerosa, o alterado. Dessa forma, os cientistas poderão ter certeza de que tudo o que existe só no DNA da célula doente está relacionado ao câncer.
Será um avanço em relação aos métodos atuais. Hoje as pesquisas comparam genomas de pessoas diferentes. O objetivo é o mesmo: colocar os códigos lado a lado e descobrir o que há de diferente no DNA de quem está doente. O problema é que o genoma de todos no mundo é quase idêntico – 0,01%varia de pessoa para pessoa. Portanto, quando comparamos o DNA de alguém saudável ao de alguém com obesidade na família, por exemplo, todas as diferenças encontradas podem ser simplesmente variações inofensivas do genoma. Não dá para cravar que os trechos divergentes têm relação com a doença.
“Poderemos tratar os pacientes de tipos diferentes de câncer de acordo com suas mutações”, diz Andy Futreal, chefe do projeto no Wellcome Trust Sanger Institute, na Inglaterra, responsável pela área de câncer de mama do ICGC. A expectativa é que o trabalho seja finalizado em 10 anos. O Brasil já realizou um estudo como esse. Em julho, o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, de São Paulo, anunciou ter sequenciado dois genomas de uma mesma pessoa, o de uma célula tumoral e o de um linfócito sadio. O estudo ainda está em andamento.
Se entendermos como o código genético se altera em células diferentes, teremos a chave para descobrir o que dispara processos desejados e indesejados no corpo. Para gente como Craig Venter, a partir de agora podemos esperar os frutos mais importantes da pesquisa genética. “Vamos sequenciar diversos genomas dentro do mesmo indivíduo, a partir de fontes como células sexuais, células-tronco, pré-tumorais e cancerosas”, escreveu Venter em um artigo publicado neste ano na revista científica Nature. “Isso vai possibilitar a escolha de células saudáveis para reprodução, além do entendimento sobre o processo de envelhecimento e de evolução dos tumores.” Assim como Francis Collins registrou em seu artigo de 1999, Venter acredita que as promessas da genética serão cumpridas. Só não tão pra já. “A revolução está só começando”, escreve ele.
Os institutos e projetos que devem acelerar a pesquisa daqui para a frente:
BGI
Instituto chinês, promete se tornar um polo mundial da genética. Quer sequenciar 10 mil genomas por ano, mais do que toda a capacidade dos EUA.
1 000 Genomas
Projeto internacional que vai sequenciar o DNA de 2 500 pessoas em 27 países (a meta inicial era de 1 000).
Biobank
Projeto britânico, quer criar o maior banco de DNA do mundo, com o genoma de 500 mil pessoas. Os voluntários terão seu registro médico acompanhado por toda a vida, para que os pesquisadores estudem suas doenças.
23andMe
A empresa dá desconto no sequenciamento a quem sofre de Parkinson: o preço do serviço cai de US$ 499 para US$ 25. O objetivo é estudar a doença. Interessados podem se cadastrar no site https://www.23andme.com.
ELEMENTO-SURPRESA
As descobertas que frustraram as promessas da genética:
No que acreditavam – Cada gene fabrica uma proteína.
A verdade – Cada gene pode produzir várias proteínas.
No que acreditavam – Os genes agem sozinhos.
A verdade – A interação entre genes pode dar novas funções a células.
No que acreditavam – O DNA lixo não tem função.
A verdade – O DNA antes considerado lixo na verdade regula a interação entre os genes.
No que acreditavam – Proteínas recebem ordens dos genes.
A verdade – Proteínas podem assumir novas funções de acordo com as reações químicas por que passam no corpo, a influência do ambiente em que a pessoa vive e o envelhecimento do corpo.
No que acreditavam – O código genético não muda.
A verdade – O sistema imunológico pode agir sobre os cromossomos ativando e desativando combinações de DNA.
Drawing the Map of Life
Victor K. McElheny, 2010, Basic Books.
Understanding the Human Genome Project
Michael A. Palladino, 2005, Benjamin Cummings.
Living with the Genome
Angus Clarke e Flo Ticehurst, 2006, Palgrave.