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Quatro é demais: as pessoas que amputam membros por opção

Há que só se sinta completo se falta algo em seu corpo. Para quem tem um transtorno chamado TIIC, mutilar um membro sadio parece a única saída.

Por Maurício Horta
Atualizado em 3 jan 2020, 16h49 - Publicado em 19 Maio 2012, 22h00

“O dia 21 de junho de 1984 foi o dia em que atingi meu sonho, meu Nirvana”, escreveu em suas memórias o australiano Robert Vickers, de 67 anos. “Foi o dia em que renasci em um novo corpo – um corpo com uma só perna.”

Na véspera, faltou ao trabalho, comprou gelo seco e partiu para um depósito abandonado. Lá, imergiu a perna esquerda no gelo e quando se convenceu de que estava irreversivelmente congelada até acima do joelho, ligou para sua mulher. “Quando acordei no hospital, não me preocupava com a perna, pois tinha meu cotoco pelo resto dos dias”, diz.

Vickers tem uma condição extremamente rara – o transtorno de identidade da integridade corporal (TIIC). Em quase tudo, os portadores de TIIC são normais. Levam sua vida com amigos, família, profissão. O único porém é que não se identificam com um corpo inteiro. E, tal como um homem transexual insatisfeito por ter um pênis, os transabled (corruptela de “disabled”, termo inglês para deficiente) sentem um desejo incontrolável de se livrar de um ou mais membros do corpo. Em alguns casos, querem virar paraplégicos.

O transtorno não é reconhecido no DSM, principal manual de psiquiatria. Mas, numa pesquisa de 2004, o psiquiatra Michael First, editor do DSM, identificou 52 portadores do transtorno – 47 deles homens, com idade média de 49 anos. Deles, 9 já tinham se amputado, 6 por conta própria e 3 com cirurgiões.

“A razão mais comumente apresentada para querer uma amputação é o sentimento de que ela corrigiria uma discrepância entre a anatomia da pessoa e seu sentimento de ‘verdadeiro’ eu”, explica First. Em geral, esse sentimento de rejeição ao membro começa na infância ou no início da adolescência. E não se trata de um desejo qualquer. Nem psicoterapia nem medicação mudam a vontade de se livrar de parte do corpo.

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“Nada resolve isso, a não ser a cirurgia”, diz Sean O’Connor, editor do site transabled.org, que reúne informações e depoimentos sobre o TIIC. O’Connor deseja tornar-se paraplégico, mas, enquanto não consegue, simula a deficiência andando de cadeira de rodas. Vickers também já tentou passar por amputado, amarrando sua perna dobrada para andar de muletas por aí. Na primeira tentativa de congelá-la, os médicos não apenas a recuperaram, como também buscaram “consertar” sua cabeça. Com eletrochoques e tudo. “Nenhum tratamento funcionou. Afinal, não era psicótico nem queria aquela perna.”

O que eu fiz dá muita raiva em pessoas que perderam um membro acidentalmente. Mas o que dizer de mim? Só felicidade e nenhum arrependimento.

Robert Vickers, após ter sua perna esquerda amputada.

Dilema médico

Várias foram as tentativas de encaixar o TIIC em transtornos existentes. Um deles é o Transtorno Dismórfico Corporal. A pessoa é obcecada com o que acredita ser um defeito físico: cabelo rareando, assimetria facial, tamanho dos seios. Muitas vezes, parte para cirurgias plásticas, mas fica infeliz com os resultados. E aí faz operação em cima de operação. Mas isso não descreve bem o TIIC. Não é que o paciente se sinta feio nem se ache defeituoso. Só sente que uma parte bem específica do corpo está sobrando.

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Em 1977, o termo “apotemnofilia” foi criado por John Money, que descreveu o caso de duas pessoas que se excitavam sexualmente com a ideia de ser amputadas. “O problema”, diz First, “é que isso está focado exclusivamente na parte sexual da condição e ignora um elemento central: uma identidade desejada.” O que acaba se aproximando mais do TIIC é o Transtorno de Identidade de Gênero – pessoas que se nascem com um sexo, mas se identificam com o corpo do oposto.

Enquanto o TIIC não é reconhecido, seu tratamento é um calvário moral para a medicina. Se as cirurgias de mudança de sexo ainda são polêmicas, apesar de o transtorno de identidade de gênero ser tão conhecido, o que dizer de amputar alguém fisicamente são? Isso não diminuiria sua qualidade de vida?

Não foi o que achava o cirurgião escocês Robert Smith. Em 1997, um paciente o procurou em seu consultório, pedindo-lhe que removesse a parte inferior da perna esquerda. Demorou 18 meses para tomar a decisão, mas Smith cedeu. “Foi a operação mais gratificante que já realizei. Não tenho dúvida de que fiz o correto”, disse numa coletiva de imprensa. Mas, antes de amputar seu 3ª paciente com TIIC, o caso se tornou escândalo no Reino Unido, e seu hospital impediu que continuasse esse tipo de cirurgia.

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A justificativa de Smith é a de que, sem uma amputação segura, o paciente corre o risco de fazê-lo por conta própria. E esse desespero pode chegar a extremos – como no caso de Josh (nome fictício).

Várias foram as tentativas de Josh de arrancar a mão esquerda. Numa, tentou colocá-la sob a roda de um caminhão, mas o macaco falhou; depois, partiu para uma faca serrada, que rompeu nervos, mas não deu conta do osso. Só com uma serra elétrica conseguiu se livrar do membro, que odiava desde os tempos de escola, conforme contou para a revista Newsweek. Depois de treinar o golpe em patas de animais comprados no açougue, sentiu finalmente que seu corpo estava certo. Para não assustar a família, disse que perdeu a mão em um “acidente”.

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