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Antimatéria

Ela não existe. Mas existe. Mata mais do que bomba atômica. Só que pode salvar o mundo - e, de quebra, nos levar a outros mundos. Conheça a personagem mais bizarra do Universo

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 15 jan 2011, 22h00

Na superfície, há apenas gramados arborizados. No subsolo, entretanto, um imenso laboratório abriga cientistas do governo americano que trabalham sem parar para produzir a força mais destrutiva já vista na história do Universo: a antimatéria. Não, não é o enredo de um filme B de ficção científica. É a mais pura verdade.

O dito laboratório é o Fermilab, em Batavia, uma cidadezinha perto de Chicago. Lá, usando imensos anéis magnéticos que aceleram partículas, o etéreo conceito de antimatéria ganha ares de realidade. Surgem partículas “do avesso”, que praticamente não existem em lugar nenhum do Universo. De quebra, isso mostra que acabou-se o tempo em que valia aquela explicação de escola: “O próton tem carga elétrica positiva e o elétron tem carga elétrica negativa”.

Em 1932, o físico americano Carl Anderson também só conhecia essa versão da história, quando um experimento mudou tudo: ele detectou elétrons positivos. Surgia a primeira confirmação de que, para cada partícula que conhecemos em nosso mundo, havia uma antipartícula – um espécie de versão alternativa dos tijolinhos componentes da matéria sobre os quais aprendemos na escola.

O avanço das pesquisas mostrou que não só o elétron tinha sua versão transformista mas TODAS as partículas – prótons, nêutrons e até seus constituintes, os quarks – possuíam antipartículas. É como se houvesse todo um esquema alternativo para a construção do Universo. Um esquema em que antipartículas dariam origem a antiátomos que formariam antiplanetas e antipessoas… Mas essa idéia foi desprezada pela natureza logo que o Cosmos nasceu. Os astrônomos, para onde quer que olhassem, só viam matéria. A antimatéria havia sido quase que totalmente jogada para escanteio – hoje só aparece uma particulinha aqui, outra acolá, em jatos de energia que vagam pelo espaço (foi analisando esses raios que Anderson encontrou seus pósitrons). Mas não é nada relevante.

E o maior mistério de todos é que não deveria ter sido assim. Logo depois do big-bang, o Universo era energia pura. Boa parte dessa energia se transformou em matéria – por isso você está aqui. Só que, quando energia vira matéria, a teoria diz que iguais quantidades de partículas e antipartículas deveriam ser produzidas.

Mas isso NÃO aconteceu na época do big-bang. Se a explosão que deu origem ao Universo tivesse produzido quantidades iguais de matéria e antimatéria, você não estaria aqui. É que partículas e antipartículas se aniquilam quando entram em contato. O que era matéria e antimatéria vira energia de novo. Não sobraria próton nenhum para contar história. Nunca teria nascido uma estrela (ou planeta ou pessoa) sequer. E o Universo voltaria a ser um monótono mar de energia. Mas, por algum mistério do desconhecido – os físicos duelam até hoje com esse enigma –, há pequenas diferenças entre matéria e antimatéria que fazem com que, a cada milhão de antipartículas surjam um milhão e uma partículas. Com esse ligeiro descompasso, sobraram migalhas de matéria normal. São elas que formam tudo o que você chama de Universo.

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Bem, mas se a antimatéria foi apenas uma idéia que o Cosmos resolveu descartar no início de sua história, por que estamos falando dela agora?

Por duas razões. Primeiro porque, ao ligarmos na tomada nossos aceleradores de partículas, aprendemos, a duras penas, como fabricar antimatéria. Chegamos até a construir átomos inteiros de anti-hidrogênio (compostos de um pósitron girando ao redor de um antipróton) em nossos laboratórios – a primeira vez foi em 1995. E segundo porque há muita gente que acha que é possível desenvolver aplicações práticas usando antimatéria.

Acha não; em alguns casos, tem certeza. Ou você nunca ouviu falar na tomografia por emissão de pósitrons? Pois é. Essa tecnologia médica para visualizar o interior do corpo – também conhecida como “PET scan”, na expressão inglesa – se baseia justamente na geração de elétrons positivos que, ao interagir com o corpo, produzem imagens 3D. Nada mau para partículas que não existem na escola.

Ei, mas, se os pósitrons são antimatéria, por que eles não “explodem” o corpo das pessoas ao entrar em contato com ele numa dessas tomografias? Aí é que está – o fato de que os cientistas estão usando versões positivas dos elétrons significa que eles contêm uma massa e um tamanho tão ridiculamente pequeno quanto o dos elétrons convencionais. Tão pequeno que, do ponto de vista deles, os espaços vazios entre os átomos são enormes. Então eles praticamente passam batido pelas partículas do corpo – os que trombam em alguma coisa resultam em pouquíssima produção de energia. Em suma: ninguém explode.

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A coisa só ficaria séria mesmo se não fossem pósitrons, mas antiprótons – partículas que têm 1 836 vezes mais massa que os pobres elétrons. É quando eles entram na jogada que a porca torce o rabo.

Nos grandes aceleradores de partículas, como o Fermilab, nos EUA, e o Cern, na Europa, os cientistas já estão craques em produzir e armazenar antiprótons. Convenhamos, não é um desafio trivial. Como manter uma coisa guardada sem que ela toque o invólucro em que está contida, sob risco de aniquilação total? O segredo é usar campos magnéticos para aprisioná-los. Essas “garrafas magnéticas” já funcionam muito bem, obrigado, de forma que os pesquisadores podem agora se dar ao trabalho de pensar em maneiras de utilizar esses antiprótons. Até agora, o único uso é a aplicação em mais experimentos científicos. Mas há quem sonhe com mais.

A Força Aérea americana, por exemplo, anda gastando milhões de dólares para desenvolver projetos de armas alimentadas por antimatéria – caso vinguem, esses esquemas poderíam dar à luz bombas mais poderosas que as ogivas nucleares. Fala-se também na construção de reatores movidos por ela para a produção de energia elétrica. Faz sentido: um pacote com 10 quilos de antimatéria é capaz de gerar tanta força quanto a Usina de Itaipu trabalhando sem parar por 6 anos.

Entretanto, o uso mais entusiasmante e defendido pelos cientistas para a antimatéria é a construção de espaçonaves capazes de cruzar as vastas distâncias entre as estrelas. Parece coisa do Jornada nas Estrelas, em que a nave Enterprise fazia suas viagens interestelares com um motor alimentado por matéria e antimatéria.

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O segredo é que, quando as duas se encontram, o resultado é um jato de partículas de energia pura. Se fosse possível produzir a aniquilação de modo que o jato fosse conduzido numa dada direção, a espaçonave seria impulsionada com grande força na direção oposta. É mais ou menos como funcionam hoje nossos foguetes químicos tradicionais, mas com uma quantidade de energia muito maior. Não poderia ser mais eficiente: um carro movido a antimatéria, por exemplo, só precisaria de 1 grama de combustível para rodar 10 mil quilômetros.

 

PD-USGOV-NASA

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Caso essa tecnologia pudesse ser empregada num voo espacial, viagens a Marte ou Saturno seriam versões futuristas do que hoje é a ponte aérea Rio-São Paulo. Mas, mais que isso, essa seria a única maneira conhecida de fazer uma nave com propulsão própria atravessar, num tempo razoável (ou seja, menor que o tempo de vida de um ser humano), a gigantesca distância até as estrelas mais próximas – com a tecnologia de hoje, só conseguimos construir naves que levariam 80 mil anos para chegar à nossa vizinha Alpha Centauri, a 40 trilhões de quilômetros daqui.

A conta de luz

Tomando por base os esforços do Fermilab, o físico americano Lawrence Krauss, da Case Western Reserve University, fez as contas de quanto poderia custar, numa estimativa otimista, a produção de antimatéria. “Sendo generosos, vamos supor que, com as tecnologias atuais, poderíamos obter de 10 milhões a 20 milhões de antiprótons por dólar”, diz. “A próxima pergunta é bastante óbvia: quanta energia por esse dólar? Se convertêssemos a massa total de US$ 1 de antiprótons em energia, liberaríamos quase nada: mais exatamente, 1 milésimo de joule, o necessário para aquecer um quarto de grama de água a 1 milésimo de grau Celsius. Isso não é motivo para orgulho.”

É por essa conta que Krauss é extremamente cético a respeito dos futuros planos para a antimatéria. “Até onde eu sei, não ficou mais barato ou fácil produzir antimatéria, e eu acho que provavelmente há fortes razões físicas pelas quais você não pode fazê-la de forma muito mais barata, pelo menos com prótons”, afirma Krauss. “Então, a conclusão é, não há nenhuma grande nova aplicação que eu consiga imaginar e que seja praticável.” Mas nem todo mundo é tão pessimista.

O americano Steven Howe, por exemplo, promete enviar uma missão não tripulada a Alfa Centauri – a estrela mais próxima do sistema solar –, se alguém lhe der apenas 17 gramas de antimatéria. Ele é fundador da empresa Hbar Technologies, que tem por objetivo fomentar aplicações para as antipartículas. Segundo o cientista, não faltam propostas, e a companhia está a todo vapor. Só tem um probleminha: Para obter os 17 gramas que Howe pede, seria preciso pagar a bagatela de US$ 30 quatrilhões. O PIB mundial, em 2007, fechou em US$ 55 trilhões. Teríamos que aumentar em pouco mais de 500 vezes esse valor e então gastá-lo todo no Fermilab.

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Hum… Por enquanto está difícil.

Mas Howe não desanima: “Antimatéria é uma tecnologia na sua infância”, diz. “Acredito que nas próximas décadas ela terá o mesmo impacto na nossa vida que o chip teve nos últimos 40 anos.”

 

Para saber mais
Antimatter: The Ultimate Mirror
Gordon Fraser, Cambridge University Press.

A Física de Jornada nas Estrelas
Lawrence Krauss, Makron Books.

Rumo ao Infinito
Salvador Nogueira, Editora Globo.

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