Pandemia: era só uma questão de tempo
Muitos cientistas já acreditavam, anos atrás, que o mundo acabaria sendo varrido por algo similar ao coronavírus. Entenda os porquês nesta profética reportagem, originalmente publicada em 2014.
Tudo começa com febre alta, garganta seca e dores de cabeça. Gripe, certo? Vai melhorar. Só que não melhora. Vem o vômito incontrolável, uma diarreia ataca forte e surgem irritações na pele. Uma intoxicação alimentar, certo? Vai melhorar. Só que não melhora. A pessoa começa a sangrar pela pele e alguns de seus órgãos, como os rins e o fígado, começam a falhar. Ela está com ebola. Apavorante, não é? O vírus mata entre 50% e 90% das pessoas que o contraem em questão de dias. E este ano teve o maior surto de ebola da história. Pela primeira vez, o vírus ameaçou deixar a África e atacar outros continentes. Até a conclusão desta edição, havia 3 mil casos da doença, com mais de 1.500 mortes. A Organização Mundial de Saúde estima que 20 mil pessoas sejam infectadas até o final do ano – o que deverá significar 10 mil mortes por ebola. A epidemia está sendo contida e, ao que tudo indica, não haverá uma epidemia global. Mas o caso já é apontado pelos especialistas como um ensaio do que está por vir. Muitos cientistas acreditam que a humanidade irá acabar enfrentando um surto sem precedentes, que irá matar uma parcela significativa da população mundial. A grande dúvida é: como e quando essa grande epidemia vai acontecer? E de onde ela virá?
Já aconteceu antes
Isso não seria exatamente uma novidade. Em 1918, uma mutação do vírus da gripe se espalhou rapidamente pelo mundo e, em questão de um ano, matou pelo menos 50 milhões de pessoas. A gripe espanhola, como ficou conhecida, ceifou mais vidas que a Primeira Guerra Mundial, que aconteceu na mesma época. Na ocasião, ninguém sabia nem o que era um vírus, quanto mais como combatê-lo. Estimativas indicam que 500 milhões de pessoas chegaram a ser infectadas pela gripe espanhola. Um quarto de toda a população mundial na época.
Em 2005, ao estudar um cadáver de uma vítima conservado sob o gelo no Alasca, pesquisadores dos CDC (Centros para Controle e Prevenção de Doenças), nos Estados Unidos, conseguiram recuperar amostras do vírus da gripe espanhola. Ele foi ressuscitado para estudos em laboratório. Dois anos depois, outro grupo de cientistas pegou o vírus recriado e o inoculou em macacos, para entender como a gripe agia. Descobriram algo surpreendente. O vírus fazia o sistema imunológico da vítima disparar – causando danos ao próprio organismo, que levavam à morte. Ou seja: o que matava não era a ação direta do vírus em si. Numa tentativa desesperada de reação a ele, o corpo se autodestruía. Isso explicou por que a gripe espanhola era mais letal para as vítimas jovens, de 20 a 50 anos. Elas tinham o sistema imune mais forte. Quanto maior a altura, maior o tombo.
O ebola ainda não se espalhou pelo mundo porque, diferentemente do vírus da gripe, ele não se propaga pelo ar (apenas pelo contato com secreções e fluidos corporais da pessoa infectada). E porque, ao contrário do HIV, por exemplo, ele mata depressa – o que evita que a pessoa tenha tempo de espalhar a doença para muitas outras. Mas, se ele sofrer uma mutação, e alguma dessas características mudar, a humanidade não terá como escapar de uma epidemia global.
É um pensamento aterrorizante. Por isso, há cientistas trabalhando a todo vapor para tentar evitar que esse cenário se concretize. Mas há uma variável incontrolável nessa história toda. É o que une a gripe espanhola, a aids e o ebola no mesmo pacote de doenças: todas elas são causadas por vírus que originalmente vieram de animais.
A zona das zoonoses
“Esses surtos de doenças estão conectados, um atrás do outro”, afirma o escritor americano David Quammen, autor do livro Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic (“Propagação: infecções animais e a próxima pandemia humana”) . “E isso é o resultado não intencional de coisas que nós estamos fazendo.” São as intervenções humanas na natureza, cada vez mais agressivas, que provocam o surgimento das chamadas zoonoses – a passagem de vírus dos animais para nós. Todas as grandes epidemias começam assim. E não é difícil entender o porquê. Se um vírus está confinado em animais, ele não tem contato com seres humanos. Isso significa que os humanos não desenvolvem qualquer adaptação a ele. Quando o vírus sai dos bichos e vem até nós, estamos despreparados para reagir. Nosso organismo não consegue combatê-lo com a força necessária, ou então age de forma brutal demais, e por isso autodestrutiva (como no caso da gripe espanhola). As zoonoses estão por trás das principais ameaças atuais.
O ebola veio dos morcegos, cuja carne é considerada alimento em alguns países africanos. A aids veio dos chimpanzés, pelo contato entre o sangue de um chimpanzé infectado pelo SIV (um vírus parente do HIV) e o sangue de um ser humano. As gripes suína e aviária surgiram dos porcos e das aves – e seu espalhamento foi facilitado porque criamos enormes quantidades desses bichos, em locais confinados, para matar e comer.
Mas será possível detectar – e conter –- uma epidemia antes mesmo que ela comece? Alguns cientistas apostam que sim.
Eles estão criando simulações de computador e novas técnicas de diagnóstico para tentar detectar vírus perigosos no mundo animal, antes que cheguem à humanidade. “A ideia é identificar infecções sérias, como a próxima SARS”, diz o epidemiologista Stephen Morse, da Universidade Columbia. A SARS, sigla inglesa para síndrome respiratória aguda grave, apavorou o mundo em 2002. Surgida na China, ela era causada por um vírus que não se espalhava pelo ar, apenas em gotículas de saliva. A partir de novembro de 2002, a doença começou a se espalhar de avião pelo mundo todo, carregada por pessoas infectadas. Chegou a 37 países e só foi contida, em julho de 2003, porque o vírus foi identificado rapidamente, o que permitiu isolar as pessoas contaminadas. Dos 8.273 casos registrados da doença até a contenção do surto, houve 775 mortes. A SARS também veio dos animais: civetas (mamífero africano que parece um gato selvagem), cães-guaxinins e até gatos domésticos que pegaram o vírus de morcegos e o repassaram. Tudo sempre termina nos humanos, um alvo irresistível para os vírus – somos 7 bilhões de indivíduos, a maioria amontoada em cidades, e até o final do século poderemos chegar a 11 bilhões. Isso, claro, se uma grande epidemia não devastar a população.
Os supervírus
Em 2009, pareceu que a humanidade iria viver uma nova catástrofe. Começou a circular, vinda dos porcos, uma versão particularmente perigosa do vírus influenza, o causador de todas as gripes. Os porcos têm uma característica ruim: eles podem ser contaminados tanto pela gripe humana quando pela gripe aviária. Os dois vírus se encontram dentro do porco e podem trocar genes entre si – gerando uma versão mais forte. Foi o que aconteceu. O supervírus se chamava H1N1. E a doença que ele provocava foi batizada de gripe suína. A epidemia surgiu no México, se espalhou pelo mundo e gerou um esforço global de combate (no Brasil, grande parte da população foi vacinada). A doença só foi contida em 2010, quando já tinha matado 300 mil pessoas. Mas 11% a 21% da população mundial foi infectada pelo H1N1. Ou seja: podia ter sido ainda pior. Bem pior.
Ninguém demonstrou isso de forma mais contundente que Yoshihiro Kawaoka, um controverso cientista da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Ele pegou o H1N1 e, em laboratório, induziu-o a sofrer mutações em ritmo acelerado. Acabou criando um supervírus – que é imune a todas as vacinas conhecidas pelo homem. Kawaoka está tentando se antecipar à natureza e criar vírus assassinos, bem como defesas contra eles, antes que as epidemias estourem por aí. Mas e se os vírus escaparem? Ele diz que não há perigo. “O trabalho é feito por pesquisadores experientes em condições apropriadas, com aprovação prévia de um comitê de biossegurança”, disse o cientista ao jornal britânico The Independent.
Mas algo sempre pode dar errado. Recentemente, o governo dos EUA encontrou num refrigerador de laboratório amostras do temível vírus da varíola – que deveriam ter sido destruídas após a erradicação da doença, em 1980. Muita gente, inclusive cientistas, não gosta da ideia de vírus superperigosos guardados em laboratório. Para piorar, a medicina moderna também está criando outra ameaça: bactérias superperigosas. Essas, fora do laboratório.
São cada vez mais frequentes os relatos de infecções hospitalares incuráveis, causadas por bactérias imunes a todos os antibióticos. Só nos EUA, elas já causam cerca de 25 mil mortes por ano, e o quadro tende a piorar. O surgimento dessas superbactérias é resultado de décadas de uso exagerado dos antibióticos. Hoje, damos esses remédios até para os animais, com pouco controle (nos EUA, 80% de toda a produção de antibióticos é consumida por bois, vacas, porcos, galinhas e outros animais criados para abate). O problema é que a exposição constante aos antibióticos está fazendo com que as bactérias criem imunidade a eles.
Durante o século 20, estivemos na dianteira. Agora, as bactérias estão começando a reagir. A humanidade tem tentado reduzir o uso dos antibióticos (no Brasil, por exemplo, agora só é possível comprá-los com receita, que fica retida na farmácia) e criar novas versões deles, mas está perdendo terreno. Nos últimos cinco anos, apenas dois novos antibióticos foram aprovados nos EUA – um ritmo de inovação oito vezes menor do que nos anos 80. Nossas armas estão acabando. Por isso, já se cogita uma estratégia radical: abandonar os antibióticos tradicionais e usar vírus para matar as bactérias. A ideia é encontrar (ou desenvolver) vírus que não façam nada contra células humanas, mas sejam letais para as bactérias. Até, claro, que apareçam superbactérias imunes a eles. Assim é a corrida armamentista da biologia. E da vida.
Aconteça o que acontecer, uma coisa é clara. O sonho ingênuo do século 20, de erradicar todas as doenças infecciosas, acabou. A realidade do século 21 é muito mais dura. É criar todas as armas possíveis para se prevenir contra as próximas epidemias. Mas sabendo que, cedo ou tarde, elas virão.