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Autópsia virtual resolve o mistério da “múmia que grita”

A hipótese original era que a expressão assustadora era fruto de uma mumificação mal feita. Um novo estudo revela um cenário mais sombrio.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 15 ago 2024, 16h54 - Publicado em 15 ago 2024, 14h00

Por quase 90 anos, um mistério paira na arqueologia egípcia: por que a múmia dessa mulher que foi sepultada há 3,5 mil anos tem uma expressão tão assustadora e esquisita? Agora, uma equipe de cientistas acredita ter encontrado uma resposta sobre a “múmia que grita”, o apelido da simpática defunta.

Pesquisadores da Universidade de Cairo usaram técnicas avançadas de tomografia computadorizada e raios-X para fazer uma espécie de “autópsia virtual” na múmia, analisando seu interior de forma não invasiva. E concluíram que a expressão provavelmente não é coincidência: a mulher pode ter morrido agonizando de dor, de tal forma que seu grito ficou eternizado na história quando seu cadáver enrijeceu instantaneamente.

Essa conclusão contradiz uma hipótese anterior de que a expressão da mulher teria sido resultado de um processo de mumificação mal feito.

Quem é a “múmia que grita”?

A múmia em questão foi encontrada em 1935, numa expedição liderada pelo Museu Metropolitano de Nova York. Ela estava sepultada no complexo de templos Deir Elbahari, próximo ao município de Luxor, onde, no Egito Antigo, ficava a importantíssima cidade de Tebas. 

Mais especificamente, ela estava na tumba de Senenmut, um importante oficial que servia aos faraós da 18ª dinastia. Além de ser o arquiteto responsável por várias obras reais, ele possivelmente também foi amante de Hatshepsut, uma das poucas mulheres que assumiram o cargo de faraó por direito próprio no Egito Antigo, com um reinado que foi de 1479 a.C. até 1458 a.C.

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Em câmaras separadas na tumba de Senenmut foram sepultados alguns de seus parentes, incluindo sua mãe, e outras pessoas cujo grau de parentesco com o homem não está claro para historiadores. A “mulher gritando” é uma dessas pessoas encontradas nessa expedição, cuja identidade não é conhecida.

Ela estava em um caixão de madeira, usando uma peruca preta e com dois anéis em formato de escaravelho, de ouro e prata. Mas o que mais chamou a atenção, é claro, é sua expressão facial assustadora.

Desde que foi localizada, especialistas estudam a múmia para tentar entender o porquê do grito. A hipótese mais comum era que seu processo de mumificação não foi feito cuidadosamente: os responsáveis podem simplesmente não ter fechado sua boca na hora de embalsamá-la, eternizando uma careta.

Havia um indício disso: a mulher ainda tinha todos seus órgãos internos. Isso é incomum – no Egito Antigo, os órgãos dos mortos eram cuidadosamente retirados antes da mumificação, com exceção do coração, que era considerado o mais sagrado de todos. Dessa forma, presume-se que o processo de mumificação dela foi feito às pressas, sem seguir os padrões da época, e por isso a boca ficou aberta num “grito”.

Novas descobertas

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O novo estudo, publicado na revista Frontiers in Medicine, usou técnicas de radiografia para estudar o interior da múmia e descobriu vários detalhes sobre ela. O primeiro foi que, apesar de ter sido mumificada há 3,5 mil anos, o corpo da mulher estava surpreendentemente preservado.

Ela tinha 1,54 m de altura e provavelmente havia perdido dentes ainda em vida. “Os dentes perdidos podem ter sido extraídos [por um dentista]”, diz Sahar Saleem, professora de radiologia na Universidade do Cairo e autora do estudo. “A odontologia teve origem no antigo Egito, com Hesy Re sendo o primeiro médico e dentista que se tem registro no mundo”, explica.

Analisando as articulações dos ossos da mulher, que se alteram com o envelhecimento, a equipe estimou que ele morreu com cerca de 48 anos. Os pesquisadores também descobriram sinais de artrite leve nos ossos da múmia.

O mais surpreendente, porém, foram as descobertas sobre o processo de mumificação em si. Não foi localizada nenhuma incisão no corpo, o que já era esperado, porque se sabia que os órgãos internos não haviam sido removidos. 

Mas havia algo interessante: na pele da “mulher que grita” foram encontrados vestígios de embalsamento com olíbano (também chamado de franquincenso) e de óleo de junípero. Esses produtos, ambos vindos de plantas, não eram produzidos no Egito: tinham que ser importados da península arábica ou da costa leste da África, por exemplo. E, por isso, eram caros.

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Além disso, tanto seu cabelo natural como a peruca haviam sido tratados com uma série de óleos, resinas e substâncias caras, como um corante extraído da planta henna. 

Segundo a equipe, o fato de seus órgãos não terem sido retirados é realmente impressionante, já que isso parece contradizer os métodos de mumificação usados na época. Mas, como o cadáver recebeu uma série de substâncias caras e importadas, os pesquisadores acreditam que a hipótese de que o processo foi feito de qualquer jeito, sem dar atenção ao corpo, pode ser descartada. Com isso, a ideia de que ela está gritando simplesmente porque ninguém fechou sua boca perde força.

Por que ela grita?

A “autópsia digital” não revelou uma causa da morte clara. Mas a equipe acredita que sua careta pode ter relação com seus últimos momentos. 

“A expressão facial de grito da múmia pode ser interpretada como um espasmo cadavérico, sugerindo que a mulher morreu gritando de agonia ou dor”, diz Saleem.

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“Espasmos cadavéricos” são eventos raros em que os músculos de uma pessoa enrijecem imediatamente no momento da morte. São diferentes do rigor mortis (ou rigidez cadavérica), o nome dado para o endurecimento natural de um cadáver horas após a morte, porque são instantâneos e com uma rigidez muito mais difícil de ser desfeita.

Em geral, esses espasmos estão associados a mortes violentas, sob intensa dor física ou emoções extremas. (A definição exata do fenômeno, porém, ainda é polêmica entre cientistas.)

Isso leva a uma conclusão sombria: talvez, de fato, a mulher tenha morrido em tanta agonia que seu grito de dor ficou eternizado na história ao ser embalsamado. Assustador.

Ela não é a única múmia que grita, porém. O corpo que historiadores acreditam ser do príncipe Pentawere também tem a boca aberta. Filho de Ramessés III (faraó entre 1194 a.C. e 1163 a.C.) ele é famoso por ter tentado dar um golpe no próprio pai e tomar o trono. O plano falhou e o príncipe foi obrigado a cometer suicídio.

No caso dessa múmia, há vários sinais de que a mumificação foi de fato feita às pressas e sem cuidado (possivelmente como uma espécie de “punição” pela traição ao próprio pai), o que explicaria a boca deixada aberta.

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Além dele, uma múmia feminina, possivelmente de nome Meritamun, também “grita”. Num estudo de 2020, Sahar Saleem, a mesma pesquisadora do novo artigo, analisou a mulher e concluiu que ela provavelmente morreu de ataque cardíaco. Ela pode ter sido mumificada ainda no estado de rigor mortis, ou seja, antes dos seus músculos relaxarem, o que explicaria a expressão.

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