Brasil: Ciência, tecnologia e outras coisas
Artigo do físico Cylon Gonçalves da Silva sobre a posição do Brasil em ciência e tecnologia.
Cylon Gonçalves da Silva
Um empresário moderno sequioso de tornar-se competitivo, resolveu contratar um cientista para sua empresa. Na manhã que este começou a trabalhar, o empresário chamou seu vice-presidente por volta das 10 e meia, e o convidou para ir ver o que o cientista já teria inventado. O vice-presidente com a moderação de todo vice, ponderou que, tendo o cientista começado a trabalhar às 8, era ainda um pouco cedo e sugeriu: “Vamos dar ao pobre-diabo até o meio-dia, sr.presidente”.
Da ciência e tecnologia hoje, no Brasil, espera-se o mesmo que do Nescafé: que seja instantânea. De fato, ela está mais para leite em pó: desmanchando sem bater. Um dos grandes problemas de nosso país é que, à custa de queremos sempre soluções de tiro único, não aprendemos a incorporar o longo prazo em nosso planejamento e a pensar nas próximas gerações. A isto vem se somar uma profunda ignorância sobre o processo de montagem de um sistema de Ciência e Tecnologia, integrado no sistema produtivo. Voltemos ao pragmático presidente que contratou um cientista. Como bom pai, ele sustenta seus filhos, paga-lhes a escola, alimentação, vestuário, diversões, sem se preocupar com que eles lhe restituam, com juros, as despesas feitas. Ele sabe que o pagamento será feito pelo sustento que seus filhos darão a seus netos, da mesma maneira que, ao manter seus filhos, ele está retornando o recibo de seus próprios pais. Políticos e empresários, em suas vidas privadas, sabem que os investimentos que sustentam a sociedade no longo prazo, de geração, para geração, são precisamente aqueles que não terão para si mesmos outro retorno, sujeito a todas as intempéries da vida, do que morrer cercados por netos bem alimentados e vem educados. No entanto, são poucos os que percebem que um forte componente do investimento em ciência e tecnologia tem a mesma natureza de riscos e respostas. O ruim do longo prazo é que, como já dizia Lord Keynes, estaremos todos mortos.
“Da ciência e tecnologia, hoje no Brasil, espera-se o mesmo que o do Nescafé: que seja instantânea”
Quando a relação de causa e efeito é imediata e transparente, como, por exemplo, o fogo que faz ferver a água, o senso comum pode aceita-lá facilmente. Quando, porém, ela é difusa, complexa e dilatada no tempo, fica difícil aceitar que exista. Ninguém até hoje conseguiu provar rigorosamente que há uma relação de causa e efeito entre investimentos em ciência e tecnologia e bem-estar social. Basta, contudo, uma analise superficial para perceber que o conhecimento; agrega valor aos produtos das economias mais avançadas e que todos os países desenvolvidos possuem um sistema educacional e de pesquisa de alta qualidade.
A base científica e tecnológica dia sistema produtivo de um país é fruto de um processo cumula¬tivo, interdependente e competitivo. Um proces¬so cumulativo segue a famosa curva de crescimento em S. O começo é lento, difícil e, muitas vezes, gerado pela oportunidade e pelo acaso. Depois, vem o crescimento exponencial, fase em que quan¬to mais se tem, mais rapidamente se cresce. Final¬mente, vem a fase de saturação, quando se atin¬gem os limites naturais do processa de crescimen¬to. A interdependência tem múltiplas ramificações.
Para ficar em apenas duas delas, o avanço será tanto mais rápido quanto mais sólidas forem as bases educacionais e a capacidade de intercâmbio do país; é essencial, também, a existência de múltiplas conexões dentro do sistema, entre em¬presas produtoras de insumos e empresas consu¬midoras, entre indústrias de diferentes ramos, mas que crescem com avanços paralelos, como por exemplo, as indústrias de aviação e de micro-eletrônica. Em um processo competitivo, como em Alice no País das Maravilhas, é preciso correr muito para ficar no mesmo lugar. A liderança só se alcança e, sobretudo, só se mantém, à custa de estorço permanente. No Brasil, estamos no co¬meço do processo em muitas áreas. As múltiplas conexões intra e intersetoriais, que garantem os ciclos de realimentação positiva do processo, para todos os efeitos práticos, inexistem. Quanto á competição, é preciso rodar muito para chegar a este estágio.
O pouco que temos de sólido em ciência e tecnologia resulta dos investimentos que vêm sendo feitas principalmente há quase uma geração. Eles permitiram a criação de uma base incipiente de competência que, a par do esforço de industrialização nacional, poderia levar, em algu¬mas décadas, a um sistema auto-sustentado e eficiente de produção e distribuição de riquezas. A crise econômica, a ignorância de nossos econo¬mistas pós-modernos e o processo de desmonte da economia nacional a que se assiste hoje são incompatíveis com a implantação de um sistema que depende de estabilidade de longo prazo para se fortalecer. A visão de curto prazo, que prega a interação com um mítico setor produtivo que deseja resultados antes do meio-dia, terá como conseqüência o esvaziamento progressivo dos avanços já alcançados.
Cyclon Gonçalves da Silva é físico, diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncroton e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)