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Cientistas , sujeira no jaleco

Fraudes, espionagem, dinheiro corrompendo pesquisas, cobaias humanas... Afinal, o que há de errado com os cientistas?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 30 jun 2002, 22h00

Rodrigo Cavalcante / Mauro Souza

Cientistas sempre renderam boas notícias para jornais e revistas em todo o mundo. Ultimamente, nem sempre nos cadernos de ciência. Uma série de escândalos escabrosos envolvendo pesquisadores de diversos centros de pesquisa nos Estados Unidos e na Europa vêm destronando a velha imagem do cientista como uma espécie de semideus, protegido da mesquinharia dos mortais. Sob os tradicionais jalecos brancos, foi revelado um submundo de espionagem, fraudes, fabricação de dados e disputa por dinheiro – muito dinheiro. Um enredo mais próximo do velho seriado de TV Dallas do que dos documentários da Discovery Channel. “O dinheiro é hoje a principal motivação para fazer ciência”, diz o jornalista americano Daniel S. Greenberg, autor do livro Science, Money, and Politics (Ciência, dinheiro e política, inédito no Brasil).

Desde que publicou, em 1967, o livro The Politics of Pure Science (As políticas da ciência pura, também inédito por aqui), Greenberg se especializou nas promíscuas relações entre dinheiro e pesquisa científica nos Estados Unidos – situação bem diferente do Brasil, onde a falta de verbas é o principal problema. Em seu livro, Greenberg diz que a velha imagem da comunidade científica como um grupo de pessoas empenhadas unicamente em contribuir para o bem-estar da humanidade é coisa do passado. E ele não está sozinho. As mais prestigiadas revistas de ciência do mundo vêm dando cada vez mais espaço para a cobertura de escândalos do mundo acadêmico, preocupadas também com que alguns desses casos terminem respingando na credibilidade de suas publicações. Na revista americana Science, por exemplo, o tema scientific misconduct (imposturas científicas) já ganhou uma seção fixa.

E até mesmo personalidades como Kary Miullis, a bióloga vencedora do prêmio Nobel de Química, em 1993, por desenvolver a Reação em Cadeia de Polimerase (técnica de multiplicação de fragmentos do DNA que inspirou o filme Parque dos Dinossauros), reconheceu recentemente que a mais importante mudança na ciência na passagem do século XX para o século XXI é o fato de que o interesse econômico suplantou o eterno desejo de expandir o conhecimento humano na condução das pesquisas.

Tudo por dinheiro

Em 1955, perguntaram para Jonas Salk, criador da vacina da poliomelite: “Quem é dono da patente dessa vacina?” Salk respondeu: “Ninguém. Você poderia patentear o Sol?” Agora tente lembrar-se de ter ouvido uma resposta parecida de algum cientista famoso por esses dias. Difícil, não? A resposta de Salk lembra uma era de inocência, quando a aventura da descoberta, o reconhecimento dos colegas e do público eram as principais motivações dos cientistas. É claro que ainda existem pessoas com essas motivações, mas o dinheiro parece estar falando mais alto e influencia cada vez mais diretamente o resultado das pesquisas.

Um artigo do New England Journal of Medicine mostrou, há quatro anos, que os pesquisadores que apoiavam o uso de determinadas drogas para o tratamento de doenças cardíacas eram, em sua maioria, ligados financeiramente às companhias produtoras dessas substâncias. Pouco depois, o Journal of The American Medical Association (Jama) analisou diversas pesquisas sobre o efeito do cigarro nos chamados fumantes passivos levando em conta um único fator: se o autor da pesquisa tinha ou não alguma ligação com a indústria de tabaco. O resultado não foi nenhuma surpresa: os que eram vinculados aos fabricantes de cigarro concluíram que as baforadas alheias não faziam tanto mal aos não-fumantes – exatamente o contrário do que pregavam as pesquisas independentes.

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Outro exemplo da polêmica envolvendo conflito de interesses ocorreu na Universidade de Nottinghan, na Inglaterra. Há dois anos, a direção da universidade aceitou 5,4 milhões de dólares da British American Tobacco para financiar um Centro de Pesquisa de Ética nos Negócios – sem nenhum compromisso. A maioria dos cientistas da instituição fez vista grossa para a doação. Menos Richard Smith, professor de Jornalismo Médico na universidade. Como era editor-chefe do British Medical Journal, ele perguntou aos seus leitores pela internet se a universidade deveria ou não devolver o dinheiro. O resultado foi esmagador: 84% responderam que a universidade deveria, sim, devolver a pequena fortuna. Smith perguntou, então, se ele deveria pedir demissão caso a universidade não voltasse atrás. A resposta de 55% dos internautas foi positiva. Hoje, ele trabalha em outra universidade.

“Não se trata apenas de casos isolados de conflitos de interesse entre empresas e pesquisa”, diz o jornalista Daniel Greenberg. “É uma mudança no próprio jeito de fazer ciência.” Para provar sua tese, Greenberg cita um estudo realizado pela Research Corporation, fundação americana que promove o intercâmbio de tecnologia das universidades com a indústria. A pesquisa concluiu que, pelo menos nos Estados Unidos, as instituições de pesquisa trocaram o velho modelo educacional por um modelo de negócios, o que termina gerando distorções. Um bom exemplo dessas distorções é a negligência da indústria farmacêutica na pesquisa de drogas para a cura de doenças comuns em países pobres. Um artigo publicado no International Journal of Infectious Diseases revelou que dos 1 223 medicamentos comercializados pelas multinacionais do setor entre 1975 e 1997, apenas 13 foram destinados a doenças tropicais.

E, apesar de reconhecer os benefícios dos investimentos das empresas no financiamento de pesquisas, a própria Research Corporation faz um alerta: como os estudantes estão sendo rapidamente atraídos para trabalhar em pesquisas financiadas pela indústria, não estão sendo treinados como deveriam. Eles passam a se comportar como qualquer empregado de uma grande empresa: tendo a obrigação, inclusive, de manter o sigilo sobre o seu trabalho para garantir que as companhias possam patentear suas descobertas.

O segredo do negócio

Compartilhar dados sempre foi o melhor atalho para o avanço da ciência mas, daqui para a frente, isso será cada vez mais raro. O potencial financeiro de pesquisas no campo da genética, por exemplo, faz com que os cientistas não queiram dividir informações com seus colegas. Uma pesquisa publicada este ano no Journal of the American Medical Association revelou que 47% dos geneticistas que pediram informações aos seus pares para publicar artigos sobre o assunto receberam um enfático “não” como resposta. “O velho modelo da universidade como centro de difusão do saber está comprometido”, diz Corynne McSherry, autora do livro Who Owns Academic Work? (A quem pertence o trabalho acadêmico, inédito no Brasil). “Há uma confusão cada vez maior entre o saber acadêmico, que deveria ser de domínio público, e o saber comercial, da esfera privada.”

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Corynne afirma ainda que é preciso delimitar um espaço para que os financiadores de pesquisas não obstruam informações que deveriam ser de domínio público. “Pesquisas científicas não podem ser tratadas como segredos industriais”, diz Corynne.

Ligações Perigosas

Você acaba de ler um artigo com a descoberta de que o leite materno tem toxinas que podem fazer mal às crianças. Agora experimente lê-lo novamente sabendo que o pesquisador foi financiado por um fabricante de leite em pó. Faz diferença, não faz? Pois é, se depender da maioria das publicações científicas, você não vai ficar sabendo muito sobre os vínculos financeiros que os cientistas têm com as empresas. Ao analisar 61 134 artigos publicados em 1997, pesquisadores das universidades americanas de Tufts e da Califórnia descobriram que apenas 0,5% das revistas especializadas revelaram os vínculos financeiros dos autores do artigo, incluindo contratos de consultoria com empresas privadas ou “detalhes” como saber se o pesquisador é um dos acionistas da empresa que produz o medicamento sobre o qual está escrevendo.

Como nos Estados Unidos estima-se que cerca da metade dos pesquisadores prestam consultoria à indústria e cerca de 8% têm ações em empresas biomédicas, a conclusão é que fica cada vez mais difícil confiar nessas pesquisas. Mesmo as prestigiadas Nature e Science reconheceram que precisavam tomar mais cuidado com a publicação de artigos que ocultassem interesses financeiros.

Ficção científica

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A canadense Karen Ruggiero era considerada uma jovem promissora psicóloga quando fazia suas pesquisas no prestigiado campus da Universidade de Harvard, Estados Unidos. “Ela era trabalhadora, extremamente organizada, enfim, uma perfeccionista”, diz Herbert Kelman, ex-colega da psicóloga. No final do ano passado, Kelman também foi surpreendido quando soube dos métodos “pouco ortodoxos” de trabalho da colega: sem o menor escrúpulo, Karen simplesmente inventava dados que nunca haviam sido coletados em trabalho de campo. “Esse é um comportamento cada vez mais comum nas universidades”, diz Lawrence Rhoades, diretor do Office of Research Integrity (o ORI, escritório de integridade pesquisa), a agência vinculada ao Departamento de Saúde americano que recebe e julga as denúncias de fraudes acadêmicas.

No caso de Karen, ela não poderá receber, nos próximos cinco anos, um único dólar da bilionária verba destinada à pesquisa pelo governo americano. “Cerca de 85% das denúncias que recebemos estão relacionadas à fabricação de dados”, diz Lawrence Rhoades. Outro caso julgado pelo ORI foi o do neurocientista americano Evan Dreyer. Ele baseou sua pesquisa em uma fictícia sessão de testes em porcos. Assim como Karen, ficará sem mesada para tocar suas pesquisas.

Mas o que leva cientistas respeitados a arriscarem suas carreiras com um comportamento típico de um colegial que tenta enganar o professor? “Talvez seja a pressão por resultados rápidos”, diz Lawrence Rhoades. Essa mesma pressa faz com que até instituições famosas terminem sendo envolvidas. Em novembro de 1999, por exemplo, a tradicional National Geographic foi vítima, sem saber, de uma fraude. A revista publicou a descoberta de um fóssil, na China, que seria o suposto elo de ligação entre pássaros e dinossauros. O paleontólogo Xing Ku, do Instituto de Paleontologia Vertebrada e Paleantropologia de Pequim, e Philip Currie, do Museu de Paleontologia de Alberta, no Canadá, batizaram apressadamente a nova criatura de Archaeoraptor liaoningensis. Passado mais de um ano, um especialista da Universidade do Texas fez uma tomografia computadorizada e descobriu que o fóssil não passava de uma montagem de 88 peças feita por agricultores chineses para faturarem com o contrabando de fósseis.

Intriga internacional

No ano passado, os biólogos japoneses Takashi Okamoto e Hiroaki Serizawa quase causaram um incidente diplomático quando foram acusados pelo departamento americano de espionagem. Eles teriam roubado mostras de DNA do laboratório da Fundação Cleveland, em Ohio, Estados Unidos, para levar o material para o Instituto Riken, no Japão. O problema é que as leis sobre o que é ou não espionagem científica variam de país para país e o caso ainda não foi encerrado. Não é a primeira vez que acusações de espionagem e plágio estremecem a relação entre cientistas e seus renomados centros de pesquisa. O caso mais famoso desse tipo de disputa, no início da década de 80, envolveu o pesquisador americano Robert Gallo e o pesquisador francês Luc Montagnier. Gallo foi acusado pelos franceses de ter roubado sorrateiramente do Instituto Pasteur uma amostra do vírus da Aids, ficando com a glória de ter sido o primeiro a isolar o HIV.

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Cobaias humanas

Uma série de reportagens publicada pelo jornal Washington Post, no ano passado, acusava pesquisadores americanos de fazer experiências de novos medicamentos explorando a vulnerabilidade dos pacientes de países pobres. A indústria farmacêutica Pfizer, por exemplo, foi criticada pelo teste do antibiótico trovafloxacin em crianças com meningite na Nigéria. A Pfizer rejeitou as acusações dizendo que os testes eram “fundamentais para a descoberta de um novo tratamento oral para essa terrível epidemia”– mas não explicou por que faz testes na Nigéria e não em uma de suas sedes em Nova York ou em Londres. Em Uganda, pesquisadores americanos foram criticados por experiências usando placebo em mulheres portadoras do HIV.

Segundo os críticos da pesquisa, se as mulheres tivessem recebido o tratamento convencional poderiam ter filhos não-contaminados pelo vírus. Recentemente, até a comunidade internacional de antropólogos foi criticada. No livro Darkness in El Dorado, o jornalista Patrick Tierney acusou os pesquisadores de fazer experiências com índios ianomâmis sem o consentimento da tribo – além de terem transmitido doenças infecciosas para essas populações.

Mulher e negro não entram

Quantos cientistas negros você conhece? “Provavelmente poucos”, diz a engenheira química Elizabeth Rasekiala. Ela é uma das raras cientistas negras na Inglaterra e vem lutando para diminuir o preconceito racial na comunidade científica – para piorar a situação, uma pesquisa do governo inglês mostrou que crianças negras daquele país têm uma performance medíocre em ciências. Como se não bastassem as acusações de racismo, uma pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa americano, publicada na em dezembro da revista Science, concluiu aquilo que a maioria das cientistas americanas já sabiam: ao terem filhos, suas chances de crescer na carreira acadêmica diminuem. O curioso é que com os homens acontece o contrário: quando se tornam pais, eles têm bem mais probabilidades de ascensão na carreira.

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Infelizmente, o preconceito e o machismo parecem ser uma das últimas coisas que a ciência atual tem em comum com o seu passado.

Para saber mais

Na livraria

Science, Money, and Politics, Daniel S. Greenberg, University of Chicago Press, 2001

Who Owns Academic Work? Corynne McSherry, Harvard University Press, 2001

Na internet

https://ori.hhs.gov

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