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E se o desastre de Chernobyl não tivesse acontecido?

Teríamos um mundo com mais usinas nucleares – e isso não é necessariamente ruim.

Por Fábio Marton
Atualizado em 11 jul 2019, 16h34 - Publicado em 24 jun 2019, 12h29

Você pega o carro de São Paulo para Belo Horizonte. No caminho, ligeiramente apreensivo, vê o vapor surgir no horizonte. Aos poucos, ficam claros os contornos da usina de Angra 71 (por algum motivo, todas as usinas do Brasil se chamam Angra). Admirado com o portentoso domo e as majestosas torres de condensação, para no acostamento para tirar umas fotos. E nisso aproveita para ler as notícias no celular:

“Redução de gases-estufa supera todas as metas.”

“Organizações indígenas e ambientalistas celebram o cancelamento do projeto da Usina de Belo Monte.”

Quando seu desfrute é brutalmente interrompido por:

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“Tensões entre União Soviética e OTAN põem o mundo à beira da aniquilação atômica.”

Ninguém sabe quantas vítimas Chernobyl fez – o número varia selvagemente de 31 (o dado oficial do governo soviético) a 200 mil (segundo o Greenpeace). Não só há os que morreram, como os que não nasceram. Em países europeus onde o aborto era legalizado, houve uma onda de gestações interrompidas por medo de contaminação nuclear – quando necessário, com autorização judicial. Qual é esse número? Segundo um relatório no Journal of Nuclear Medicine de 1987, citando dados da Agência Internacional de Energia Atômica, entre 100 mil e 200 mil.

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Outra vítima do desatre foi a própria indústria nuclear. “Chernobyl deu à opção nuclear seu golpe final”, afirma o sociólogo Wolfgang C. Muller, da Universidade de Viena e especialista em políticas de energia nuclear. “Após o acidente, o apoio popular para a energia nuclear desapareceu completamente.”

É difícil exagerar o tamanho da onda de choque na opinião pública por conta do desastre de Chernobyl. Tabloides britânicos davam chamadas como a “Nuvem russa da morte” (Daily Mail) e “Nuvem atômica do terror” (Daily Star). No ano seguinte, em retrospectiva, o New York Times falava em uma “História apocalíptica”. No Brasil, a Folha de S.Paulo passou mais de um mês com manchetes diárias sobre Chernobyl na capa.

No ano seguinte ao da tragédia, a Itália simplesmente proibiu a energia nuclear, por meio de um referendo. Mais cedo ou mais tarde, outros seguiram o exemplo – como a Alemanha, nos anos 2000. Finlândia e Holanda tinham planos nucleares que acabaram engavetados. Em países onde havia um debate, como Áustria e Austrália, a conversa terminou num sonoro “nem pensar!”. Nos países que insistiram, como o Brasil, a energia nuclear entrou em operação-tartaruga.

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Foi uma pancada num caído – daí Muller ter falado em golpe “final”. A energia nuclear já tinha péssima reputação. Em 1979, o incidente sem vítimas na usina de Three Mile Island, nos EUA, já havia deixado o mundo em alerta. O governo dos EUA congelou imediatamente a liberação de novos projetos. Sob a influência de Chernobyl, as permissões só começariam novamente em 2012. Várias usinas foram fechadas. Uma delas, em Shoreham, Estado de Nova York, estava pronta e nunca foi aberta. No Brasil, Angra 2, que era para estrear no fatídico 1986, e já enfrentava cortes de orçamento, só sairia em 2000. E a 3, que era para começar em 1984, não está pronta até hoje. Melhor assim, certo? Talvez não. É possível que o mundo tenha perdido com isso.

Econuclear

Porque, para a maioria dos países, fechar uma usina nuclear significa criar várias outras de carvão ou de gás natural. E, se você não está em coma desde 1986, deve entender o que isso significa: aquecimento global. Usinas nucleares não soltam gases-estufa, termelétricas soltam. Segundo o Painel Internacional para Mudança Climática, a geração de energia é responsável por 25% das emissões de gases-estufa.

Vamos reconhecer que o debate sobre os perigos da energia nuclear é feroz e divide ambientalistas. O Greenpeace diz “Nem morto”. Já a Union of Concerned Scientists (“União dos Cientistas Preocupados [com o Ambiente]”), uma das associações mais severas em pedir leis mais duras após Chernobyl, dá o braço a torcer. Sobre usinas nucleares, hoje ela diz: “Sim, por favor, mas com cuidado”.

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Sem Chernobyl, em suma, haveria pressão por mais usinas nucleares desde as primeiras evidências de mudança climática. No Brasil mesmo, elas seriam mais bem vistas do que as hidrelétricas, já que não precisam da destruição de grandes áreas de floresta para existir. Mas não fica nisso.

O colapso da URSS

A geopolítica poderia ter tomado todo outro rumo por causa de Chernobyl. Essa é a teoria de ninguém menos que Mikhail Gorbachev, o último líder da URSS.  Em 2006, no aniversário de 20 anos da catástrofe, ele afirmou: “O derretimento nuclear em Chernobyl foi talvez a causa real do colapso da União Soviética”.

Gorbachev disse isso porque Chernobyl mudou tudo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Os US$ 41 bilhões investidos na recuperação quebraram mais ainda um país que já andava mal. O maior dano para o regime, no entanto, foi outro. Durante a maioria da história soviética, desconfiar do governo foi um risco de vida. 1986 virou isso do avesso: a vida dependia de desconfiar.

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Na tentativa de tornar a União Soviética mais competitiva, de quebrar a burocracia estatal, Gorbachev havia começado as políticas da glasnost (“transparência”) e perestroika (“reestruturação”). Mas sua tentativa de passar pano e ocultar a real extensão do desastre colocou em dúvida suas intenções. E Gorbachev, num clima de raiva e desconfiança, decidiu investir mais pesado na liberalização, reagindo às acusações de falta de transparência por conta de Chernobyl.

Não deu certo. De questionar os problemas do sistema para fazê-lo evoluir, como Gorbachev esperava, as pessoas passaram a questionar o sistema em si – particularmente o Partido Comunista. O premiê perderia o controle. Em agosto de 1991, uma tentativa de golpe seria dada pela linha-dura, para acabar com Gorbachev e suas reformas. O golpe falhou. Mas o país começou a se esfarelar. No Natal do mesmo ano, Gorbachev jogaria a toalha, renunciando. A bandeira soviética foi desasteada e a da Rússia, posta no lugar. Terminava toda uma era da história da humanidade. Sem Chernobyl, isso talvez não tivesse acontecido. E um mundo em que a União Soviética não acabou é assunto para outro “E se…”.

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