Alguns filhotes desta formiga são de uma espécie diferente da própria mãe
As rainhas das formigas-colhedoras-ibéricas produzem descendentes machos da sua própria espécie – e clonam machos da formiga-colhedora-construtora.

Filho de peixe, nem sempre peixinho é. Pesquisadores descobriram que as rainhas da formiga-colhedoras-ibérica (Messor ibericus) são capazes de se reproduzir da maneira mais ficção científica possível: elas geram machos de uma espécie totalmente diferente, a formiga-colhedoras-construtora (Messor structor).
A revelação, publicada na revista Nature, desafia, ao redor do globo, um dos pilares da biologia: a definição de espécie. “O conceito clássico diz que uma espécie é um grupo de organismos semelhantes, capazes de se reproduzir entre si e gerar descendentes férteis. Mas aqui precisamos de duas espécies distintas para manter o sistema. Isso nos obriga a repensar o conceito”, afirmou Xim Cerdá, ecólogo da Estação Biológica de Doñana, em entrevista ao jornal El País (Cerdá não participou do estudo).
O mecanismo, batizado pelos cientistas de “xenoparidade” — literalmente, “nascimento estrangeiro” — é tão engenhoso quanto estranho. As rainhas de M. ibericus acasalam-se tanto com machos da própria espécie quanto com machos de M. structor, depois, armazenam o esperma dos dois parceiros.
No entanto, o estranho (nessa história que tudo é estranho) é que as duas espécies não são próximas em termos evolutivos. Elas se separaram evolutivamente há mais de cinco milhões de anos. Isso é tempo para caramba: nós, humanos, nos separamos dos nossos primos, os chimpanzés, entre seis e oito milhões de anos atrás, por exemplo.
Em um processo ainda pouco compreendido: as rainhas parecem remover seu próprio DNA de certos ovos antes de fertilizá-los com o esperma de M. structor. Quando esses ovos eclodem, não nascem híbridos, mas sim clones machos de M. structor. Ao mesmo tempo, a mesma rainha pode produzir descendentes normais de M. ibericus, além de operárias fêmeas híbridas das duas espécies, que formam a espinha dorsal da colônia.
Provar essa relação incomum foi um desafio logístico e científico. Equipes lideradas por Jonathan Romiguier, ecólogo da Universidade de Montpellier, passaram anos coletando colônias em estradas agrícolas perto de Lyon, França. Em colônias com até 10 mil indivíduos, raramente havia mais que alguns machos.
No fim, os cientistas reuniram 132 machos de 26 colônias. Metade deles eram peludos – marca registrada de M. ibericus. Os outros eram quase carecas, característica de M. structor. Testes genéticos confirmaram: todos nasceram das mesmas rainhas. Mais surpreendente ainda, tanto os machos clonados quanto os híbridos compartilhavam DNA mitocondrial de M. ibericus, transmitido exclusivamente pela mãe, reforçando que eram descendentes diretos da rainha ibérica.
No laboratório, a espera foi ainda mais angustiante. “Durante dois anos, monitoramos 50 colônias sem ver nascer um único macho”, contou Romiguier à revista New Scientist. “Depois, tivemos sorte. Conseguimos observar o nascimento de machos de M. structor a partir de uma rainha de M. ibericus. Foi a prova final.”
A questão que agora intriga os biólogos é: por que esse sistema existe?
Para M. ibericus, a vantagem é clara. As operárias híbridas, robustas e numerosas, cuidam de todas as tarefas vitais da colônia, da construção de ninhos ao cuidado das larvas. E ao produzir clones de M. structor, a espécie garante que sempre haverá parceiros disponíveis para as futuras rainhas ibéricas – mesmo em locais onde colônias naturais de M. structor não existem. Esse é um tipo de parasitagem sexual.
Já para M. structor, o acordo parece menos equilibrado. A espécie é restrita a áreas montanhosas e isoladas, mas graças ao “transporte” de seus clones pelas colônias de M. ibericus, conseguiu se espalhar por novas regiões da Península Ibérica e além.
“Cada passo nesse jogo coevolutivo faz sentido dentro do arsenal de truques reprodutivos das formigas”, explicou Sara Helms Cahan, ecóloga evolutiva da Universidade de Vermont, em entrevista à Science. “O resultado é fantástico e, por enquanto, extremamente bem-sucedido: uma espécie literalmente carrega outra no bolso pelo sul da Europa.”
Apesar da engenhosidade, o sistema pode ter prazo de validade. Como os machos de M. structor produzidos por clonagem não parecem cruzar com fêmeas de sua própria espécie, é provável que acumulem mutações prejudiciais ao longo das gerações, tornando-se mais frágeis.
Além disso, quando os pesquisadores colocaram as formigas M. structor clonadas pelas ibéricas em uma colônia comum de M. structor, os insetos foram mortos, provavelmente considerados invasores estrangeiros – mesmo compartilhando da mesma aparência (a calvície). Isso porque as formigas clonadas carregavam os feromônios de M. ibericus.
Por ora, no entanto, a parceria floresce. As colônias de M. ibericus continuam a se multiplicar, sustentadas por operárias híbridas e abastecidas por uma fonte aparentemente inesgotável de machos de duas espécies. O grupo musical The Weather Girls já dizia: “está chovendo homens” – aleluia.