Jacarés: Campeões de sobrevivência
Com um dos mais perfeitos organismos conhecidos, os jacarés já habitavam a Terra quando os seus primos dinossauros começaram a conquistá-la, há 200 milhões de anos. Depois disso, sobreviveram a todas as tragédias fatais a milhares de espécies.
Antônio Carlos Fon
Especialistas em sobrevivência, eles podem passar meses sem comer, gastando as energias que acumulam durante os períodos de fartura. Para isso, transformam em gordura a maior parte do que comem e possuem um estômago que é o meio mais ácido conhecido entre os vertebrados. Como animais de sangue frio, dependem fundamentalmente do sol para manter a temperatura do corpo; apesar disso, por incrível que pareça, podem sobreviver à neve e ao gelo, diminuindo o ritmo dos batimentos cardíacos e restringindo a circulação do sangue apenas ao coração e ao cérebro.
Vivem em bandos e obedecem a uma rígida escala hierárquica na qual o macho tem cada vez mais privilégios à medida que envelhece, inclusive para acasalar. Com uma vida média de 70 anos, tornam-se mais férteis e potentes sexualmente à medida que o tempo passa. Apesar do aspecto externo, seus órgãos internos têm muito mais a ver com os das aves que com os dos lagartos.
Por isso, não deve causar espanto a possibilidade anunciada agora: de que a caça cruel e em massa pode não ter reduzido o seu número no Pantanal Mato-grossense, estimado entre 6 e 10 milhões de jacarés, mais de 70 para cada quilômetro quadrado daquela região.
Documentadamente, através de fósseis, sabe-se que os crocodilianos surgiram há cerca de 245 milhões de anos, no chamado Triássico Superior, quando os dinossauros começavam a dominar a Terra. Desde então, do Protosuchia do Triássico, um pequeno predador terrestre de não mais que 1 metro de comprimento, ao Eusuchia, subordem à qual pertence a atual família Crocodylidae, eles mudaram muito pouco. As últimas modificações importantes aconteceram há 100 milhões de anos, para melhor adaptá-los à vida na água. As mudanças aconteceram basicamente nas fossas nasais internas, deslocadas diretamente para a garganta, e nas vértebras da cauda.
A primeira lhes permite manter a boca aberta com a garganta fechada por uma válvula, à espera de um peixe desprevenido, enquanto respiram com apenas a ponta do focinho fora da água. A segunda, tornou mais forte e ágil o rabo, usado em movimentos laterais para nadar e como apoio quando pulam para abocanhar os filhotes de uma ave desavisada, que fez seu ninho nos ramos mais baixos à beira da água.
Extremamente sociáveis, vivem em bandos sob uma rigorosa hierarquia, dominada pelo macho mais forte, que procura ampliar sempre sua área, demarcada com o odor das glândulas sexuais. O afortunado macho dominante torna-se cada vez mais potente e fértil à medida que envelhece. O melhor exemplo disso é o lendário Big Jane, um Alligator mississippensis, reprodutor mantido em cativeiro nos Estados Unidos que, aos 80 anos de idade, tinha um harém exclusivo de 25 fêmeas.
Mesmo sem o invejável vigor de Big Jane, contudo, um jovem macho consegue acasalar com um mínimo de seis fêmeas. Sem a presença de um macho dominante, a situação se inverte e uma fêmea pode acasalar com vários machos, garante Huberto Cezar de Moraes Machado, diretor da Coocrijapan Cooperativa dos Criadores de Jacaré do Pantanal.
Em terra, livre em seu habitat, um crocodiliano tem normalmente uma forma de caminhar lenta e majestosa, o corpo completamente afastado do chão, apoiado nas quatro patas, como os mamíferos quadrúpedes. Mas que pode se transformar em um rápido galope de até 17 km/h, nos animais menores, quando persegue uma presa. Uma agilidade insuspeitada para quem o vê boiando imóvel ou esquentando-se ao sol durante horas à beira dágua, um de seus lazeres preferidos.
E não por pura preguiça. Animais ectotérmicos, conhecidos popularmente como de sangue frio, os crocodilianos não possuem mecanismo interno de termorregulação para manter constante a temperatura do corpo. Assim, dependem fundamentalmente do sol e da água para conservar a temperatura corporal ao redor de 35°. E calor para eles é tudo. Aquecem-se ao sol durante o dia e, como a água esfria mais lentamente que a terra, submergem à noite.
Diferentemente dos outros répteis vivos, eles possuem um coração semelhante ao dos pássaros, com quatro cavidades, isoladas por uma divisão que separa o sangue arterial, oxigenado, do venoso. Mas os dois tipos de sangue acabam se misturando um pouco, quando as artérias que transportam o sangue do ventrículo esquerdo se comunicam com as do ventrículo direito. Mais fascinante, no entanto, é como o sistema circulatório auxilia na manutenção do calor no organismo.
De acordo com suas necessidades, um crocodiliano pode aumentar ou diminuir o ritmo dos batimentos cardíacos e dilatar ou contrair os vasos sangüíneos. Assim, quando toma sol ele pode acelerar o trabalho do coração e dilatar as artérias, para levar oxigênio e calor a todo o organismo. Quando mergulha na água fria ou nos meses de inverno, ao contrário, reduz o ritmo cardíaco e contrai os vasos da circulação periférica, mantendo o fornecimento de oxigênio apenas entre o coração e o cérebro.
São essas características que lhe permitem resistir por vários dias a temperaturas de até 5 graus negativos como o crocodilo-do-mississippi, que se espalha do sul dos Estados Unidos até as cabeceiras do rio Mississippi, na Carolina do Norte. Ele necessita somente de um pequeno orifício para respirar enquanto hiberna sob uma camada de 1,5 centímetro de gelo. Ou a vários meses de seca, como os jacarés do Pantanal Mato-grossense, enterrando-se na areia para aproveitar os restos de umidade da terra.
Com a chegada das chuvas de verão, refaz-se o ciclo da vida no Pantanal. Em janeiro, época da desova, as fêmeas fazem os ninhos com gravetos e folhas apodrecidas onde colocam, em média, 25 ovos e os fecham com terra e gravetos. É o calor da decomposição desse material que vai chocar os ovos e determinar o sexo dos filhotes: se a temperatura se mantém entre 28 e 30°, nascem fêmeas; entre 31 e 33°, machos. Para evitar os predadores, elas escolhem os espinheiros às margens dos rios e lagoas ou os baceiros, ilhas de vegetação flutuante, para montar seus ninhos.
Os ovos de jacaré são avidamente procurados por dezenas de animais, como lobinhos e porcos-monteiros cães e porcos selvagens do Pantanal. Entre todos os predadores, os mais refinados são os quatis, que por sua vez andam em bandos para proteger os filhotes de outros predadores. Os quatis nutrem pelos ovos de jacaré um apetite e um refinamento de gourmet: partem cinco ou seis ovos, sugam apenas a gema e voltam no dia seguinte para nova degustação. Um prazer que pode lhes custar a vida. Nos 65 a 70 dias de incubação dos ovos, mamãe jacaré estará sempre por perto, atenta a qualquer perigo que ameace os futuros filhotes.
E outra incrível característica dos crocodilianos: eles começam a falar ainda dentro do ovo, nas duas últimas semanas de incubação. É uma espécie de ganido, logo repetido em coro por todos de uma ninhada, se tudo correu bem. Dessa maneira, eles avisam a mamãe que é hora de abrir o ninho, já que os filhotes sozinhos não têm forças para fazer isso.
Mesmo com todos esses cuidados, somente 5% de cada ninhada atingirá a idade de procriar sete anos para as fêmeas e um pouco mais para os machos. Metade nem sequer chegará a sair dos ovos e, do restante, a grande maioria morrerá antes de completar um ano. O índice de sobrevivência pode parecer baixo mas, não fossem os machos dominantes tão ciumentos das fêmeas de seu território, seria suficiente para dobrar a população adulta a cada ano. Para evitar que a taxa de mortalidade seja ainda mais alta, as fêmeas pajeiam zelosamente as ninhadas no primeiro ano de vida, até o nascimento da seguinte, em uma incessante busca de alimento.
Dotado de incrível apetite, um crocodiliano pode comer praticamente qualquer coisa viva, de insetos a elefantes e, eventualmente, após longos períodos de privações, até os membros menores do grupo. Récem-nascidos, eles alimentam-se de larvas e insetos; jovens, de peixes, caramujos e batráquios; adultos, são capazes de comer uma tartaruga inteira, inclusive o casco, que o estômago não tem dificuldade alguma em digerir. Afinal, esse órgão é o meio mais ácido conhecido no reino animal, além de possuir uma moela uma parte musculosa no estômago que tritura os alimentos como as aves. E 60% de tudo que come é transformado em gordura, que armazena no corpo para enfrentar os períodos de escassez. Graças a essa previdente poupança, um crocodilo-do-nilo adulto, que chega a medir 6 metros e pesar mais de 1 tonelada, pode passar até dois anos sem comer. Apesar da fama de devoradores de homens que persegue até o nosso tranqüilo jacaré, disseminada principalmente pelo cinema e pelos livros de aventuras, somente três das 27 espécies, o Crocodylus niloticus, o Crocodylus porosus e muito raramente o Alligator mississippensis, conhecidos como crocodilo-do-nilo, crocodilo-marinho e crocodilo-do-mississippi, atacam o homem para devorá-lo.
Espalhados por toda a África, os crocodilos-do-nilo são os principais vilões das histórias e lendas que fizeram a má fama de seus primos em todo o mundo. Mas foi o crocodilo-marinho, disseminado pelas ilhas dos oceanos Índico e Pacífico, o responsável pela mais aterrorizante história conhecida de ataque ao homem. Foi na Segunda Guerra Mundial, quando o avanço do exército inglês levou as tropas japonesas que guarneciam a Ilha de Ramree a tentar uma retirada através dos 30 quilômetros de mangues até a costa da Birmânia, na noite de 19 de fevereiro de 1945. O biólogo inglês Bruce Wright, tripulante de uma lancha militar encalhada no labirinto de manguezais, conta o que foi aquela noite de horror.
Foi a pior noite que qualquer membro das lanchas militares jamais experimentou. Os disparos de rifles em um lamaçal envolto na escuridão, entrecortados pelos gritos de terror dos homens estraçalhados pelos dentes dos enormes répteis e pelo revoluteio dos crocodilos que nadavam em círculos, criavam uma cacofonia infernal. Com a aurora chegaram os abutres, para dar conta do que haviam deixado os crocodilos. Dos 1000 soldados japoneses que entraram nos pântanos de Ramree, só uns vinte foram encontrados com vida.
Para saber mais:
Toda a vida do mundo
(SUPER número 7, ano 4)
Calendário dos animais
(SUPER número 2, ano 6)
A arte de enganar
(SUPER número 10, ano 7)
Pegando jacaré a laço
Há oito anos um grupo de pesquisadores brasileiros estuda o jacaré-do-pantanal. Com resultados surpreendentes
Buscar formas de uso sustentado dos recursos naturais. Ou, trocando em miúdos, de explorá-los sem comprometer sua renovação. Esse é o objetivo do centro de pesquisas da Embrapa no Pantanal. No caso específico do Grupo do Jacaré, uma equipe de três pesquisadores financiados pelo World Wildlife Found, a Conserva-tion International e a Fundação O Boticário , isso significa fazer o censo dos animais nos 140 000 quilômetros quadrados de sua área de atuação, acompanhar a movimentação, taxa de natalidade, crescimento e morte e até o que comem.
Para isso a pesquisadora Zilca Campos já fez plantão por dezenove dias e noites ininterruptos, no meio do mato, à espera do nascimento de uma ninhada e passou semanas medindo, de seis em seis horas, a temperatura de um ninho, para confirmar a influência do calor no sexo dos filhotes. Franzina 1,52 metro de altura, 45 quilos , Zilca laça e domina com facilidade um jacaré muito maior que ela mesma, para colocar-lhe um aparelho de rádio que permita segui-lo pelas lagoas e alagados.
Os resultados podem ser surpreendentes, co-mo o do censo aéreo dos jacarés, que mostra que a espécie não corre risco imediato de extinção. Ao contrário, a caça predatória pode até ter contribuído para o aumento da população, desconfia Guilherme Mourão, coordenador do Projeto Jacaré. É que os caçadores matavam principalmente os animais maiores, machos mais velhos, abrindo espaço para a divisão de seu território pelos mais jovens.
Criação em cativeiro
A venda de peles de jacaré-do-pantanal está proibida desde 1975, devido à ameaça de extinção. Agora ela pode voltar ao mercado
A pedido do Brasil, o Caiman crocodilus yacare consta do Apêndice l, das espécies sob risco imediato de extinção, do governo americano, desde 1975. Com isso a comercialização de sua pele nos Estados Unidos, o maior mercado mundial para peles de crocodilianos, está totalmente proibida. Agora, Huberto Cezar de Moraes Machado está pedindo ao governo que interceda junto ao governo americano para que transfira o jacaré-do-pantanal para o Apêndice 2, o que permitiria a comercialização de peles de animais criados em cativeiro.
Austrália, Estados Unidos e Tailândia são alguns dos países que já criam crocodilianos em cativeiro há décadas. O Pantanal reúne, porém, condições excepcionais para essa atividade: além de uma grande população de jacarés livre em seu habitat natural, para a obtenção de ovos, a região possui um rebanho bovino de 4 milhões de cabeças, com matadouros instalados nas principais cidades, o que garante o fornecimento de vísceras em volume suficiente para a alimentação nos criatórios.
Com o aumento da repressão e a recessão mundial, a caça ilegal caiu em 80% nos últimos quatro anos e, somente no Mato Grosso do Sul, já existem dez projetos de criação de jacarés em cativeiro autorizados pelo Ibama Instituto Brasileiro de Meio Ambiente. Nesses projetos, os ovos são recolhidos e chocados em incubadeiras, para devolução de 10% a seu habitat natural com seis meses de idade, o dobro do que sobreviveriam livres na natureza. Sua liberação, no entanto, deve ser precedida de um período de readaptação de no mínimo 15 dias. Um jacaré criado em cativeiro cresce com o dobro da velocidade do seu irmão livre na natureza e, devido a uma alimentação balanceada, pobre em cálcio, praticamente não desenvolve osteodermes, placas ossificadas na pele que dificultam sua utilização em artigos de couro.
Com isso a pele da Caiman crocodilus yacare considerada de qualidade inferior em relação à do Crocodylus niloticus, Alligator mississippensis e Crocodylus porosus torna-se de muito melhor qualidade, podendo atingir até 50 dólares a unidade no mercado internacional. Além da pele, são aproveitadas a carne, cotada para o mercado europeu em 11 dólares o quilo, e as glândulas sexuais, utilizadas como fixador pela indústria de perfumes finos.
Em dois anos a Cooperativa dos Criadores de Jacaré do Pantanal já tem 40 000 animais em seus viveiros, em Cáceres, Mato Grosso, além de 2 000 peles em estoque. E um projeto de outro grupo pretende atingir a marca de 300 000 jacarés criados em cativeiro em três anos. Segundo a Cites, a convenção internacional para espécies ameaçadas de extinção, 60% das peles de crocodilianos comercializadas anualmente são do gênero Caiman, inclusive de jacaré-do-pantanal. Os dados da Cites, no entanto, não são precisos. Para começar, grande parte dessas peles circula pelo mercado clandestino e as projeções baseiam-se no volume de apreensões.
Um organismo moderno, de 1 milhão de séculos
Órgãos de répteis, mamíferos e aves
O jacaré tem o sistema digestivo característicos dos répteis, o sistema respiratório dos mamíferos e o cérebro e o coração como os dos pássaros. Seus dentes servem para prender e estraçalhar a presa, mas não para mastigar. Por isso o estômago tem uma moela, que tritura os alimentos, como nas aves.
Sem problemas com úlceras
O estômago do jacaré é o meio mais ácido encontrado até hoje entre os vertebrados. A 20 graus Célsius, seu pH chega a baixar a 1,2 o que lhe permite digerir uma tartaruga com casco e tudo
Hibernando sob o gelo
Animal de clima quente, o crocodilo-do-mississipi é capaz de sobreviver à neve e ao gelo. Para isso, reduz a circulação do sangue ao coração e ao cérebro e respira por um orifício, enquanto descansa nas águas mais quentes abaixo da superfície
Sexo, conforme a temperatura
No jacaré e no crocodilo-do-mississipi, a temperatura de incubação, entre 28 e 31 graus, faz nascer fêmeas; entre 32 e 34 graus, machos e fêmeas. Entre os Crocodylinae, machos só nascem entre 31 e 33 graus.