Livro da Semana: “O Oráculo da Noite”, de Sidarta Ribeiro
Seu cérebro é um lugar diferente à noite: Sidarta Ribeiro narra a longa jornada da humanidade com o sono e sonhos, que passa por dinossauros, povos caçadores-coletores, profecias gregas, Freud e a neurociência contemporânea.
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Há três versos de Lula Queiroga na canção “Noite Severina” que me perturbam há muitos anos: “Pedras sonhando, pó na mina. Pedras sonhando com britadeiras. Cada ser tem sonhos a sua maneira.” Será que as coisas também sonham? Que elas têm pesadelos especificamente com a morte? É uma imagem e tanto: um mundo assombrado, em que até os objetos inanimados temem o anoitecer.
O dia e a noite parecem universais, mas não são. O ciclo fundamental de 24 horas que regula a vida dos seres orgânicos – um ciclo idêntico para cada povo e etnia, que parece tão inevitável quanto a passagem do tempo, – é um fenômeno limitado à superfície da Terra.
No resto da Via Láctea, há muitas manhãs e noites. Planetas em que os dias são mais longos que os anos. Planetas iluminados por dois sóis. Planetas com uma face fixa voltada para sua estrela – em que sempre faz um calor escaldante em um hemisfério e a noite é eterna no outro. Mesmo em nosso pálido ponto azul os dias já foram várias horas mais curtos. A rotação da Terra desacelera com passar dos milênios, conforme a Lua se afasta de nós.
Tão antiga quanto a noite é o sono. Os primeiros seres vivos eram mais simples que as bactérias atuais. Pacotinhos microscópicos de moléculas que interagiam febrilmente. Mas esses protótipos de vida já possuiam uma manifestação ancestral do sono – seu metabolismo era, por definição, sensível ao frio e ao calor, ao claro e ao escuro. Afinal, a noite é fria, e o frio desacelera reações químicas.
Com o aumento progressivo da complexidade biológica, a interação com a luz se tornou mais importante. As algas unicelulares do gênero Euglena possuem um olho primitivo na base de seus flagelos: enquanto estão um um lugar iluminado, a incidência de Sol nesse sensor indica que a fotossíntese está em andamento. Se a criaturinha fica na sombra, o detector dá o sinal e ela abana seu “rabinho” para nadar até um local mais iluminado.
Com a explosão do Cambriano, um grande evento evolutivo de diversificação da fauna que ocorreu há meio bilhão de anos, os olhos se tornaram um dos elementos imprescindíveis para a interação dos primeiros animais com o ambiente circundante: seria difícil predar (ou evitar ser predado) se não fôssemos capazes de detectar ameaças e almoços de longe, usando a luz, o som e o olfato.
A dependência vantajosa da luz durante o dia se torna um obstáculo durante a noite, quando predadores com maior acuidade visual podem ver você sem que vocês os veja. Muitos animais têm o hábito de passar a noite juntos e escondidos na toca. A temperatura corporal abaixa, o consumo de energia cai. É possível que o sono tenha evoluído não só como descanso, mas como discrição: uma forma de sair do radar.
Mais especulativa que a evolução do sono é a evolução dos sonhos, que são mais vívidos e numerosos durante a fase REM – rapid eye movement, em português, “movimento rápido dos olhos”. É um momento peculiar em que nossa atividade cerebral aumenta febrilmente, mas não vem acompanhada de movimento: os músculos permanecem relaxados.
Hoje, sabemos que répiteis, aves e mamíferos monotremados (os mais próximos dos répteis evolutivamente, como os ornitorrincos e equidnas) apresentam todos sono REM. Sinal de que a evolução dele é antiga. Data da época em que nenhuma dessas subdivisões existia na árvore da vida.
O sono REM provavelmente é uma espécie de ensaio, ou aquecimento, para o dia que está por vir. Se cutucamos um ser humano ou um animal na fase de ondas lentas, quando o cérebro praticamente para, o bichinho abre os olhos atordoado, com o raciocínio lento e os movimentos incertos. Despertar no sono REM, por outro lado, não é um baque tão grande: você já levanta pronto para a pancada, pois seu cérebro já estava acordado antes de você.
A evolução do sono é um dos primeiro tópicos de O Oráculo da Noite. O brasileiro Sidarta Ribeiro transforma suas décadas de experiência na neurociência dos sonhos em um livro abrangente sobre a jornada da humanidade com suas visões noturnas, que passa por dinossauros, povos caçadores-coletores, profecias gregas, Freud e a ciência contemporânea. Só não leia antes de dormir: é difícil encarar um assunto tão complexo e multidisciplinar sem a cabeça fresca da manhã.
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