Mais um estudo sobre covid-19 sofre críticas e pressão para ser retirado
Desta vez, o alvo é um artigo sobre a eficácia de máscaras. Mais de 40 cientistas assinaram uma carta pública apontando erros metodológicos no estudo.
Mais de 40 cientistas americanos estão pedindo publicamente a retirada de um artigo científico que investiga a eficácia do uso de máscaras durante a pandemia, alegando que a pesquisa possui “graves falhas metodológicas” e se baseia em “afirmações comprovavelmente falsas”. A controvérsia é a mais nova protagonista da discussão crescente sobre possíveis falhas do processo de publicação de artigos durante a pandemia – há pouco tempo, dois outros estudos sobre a covid-19 foram retirados após cientistas também apontarem falhas em seus dados.
Primeiro, vamos entender a polêmica. No dia 11 de junho, uma equipe liderada pelo cientista Mario Molina, que venceu o Prêmio Nobel de Química em 1995, publicou um artigo na revista Proceedings of the National Academy of Sciences que analisava a eficácia do uso de máscaras para evitar o espalhamento do novo coronavírus. A equipe chegou na mesma conclusão de vários outros estudos: máscaras de fato são importantes para o controle epidemiológico da doença. Mas foi bem mais além – e concluiu que a medida seria a principal forma de frear o vírus, minimizando a eficácia de outras estratégias, como o isolamento social. Isso porque, para a equipe, a principal rota de transmissão do vírus seria pelo ar.
Aqui, vale explicar um pouco melhor sobre os possíveis caminhos de contágio da doença. O vírus de fato pode sair de uma pessoa infectada em formato de aerosol – partículas muito pequenas e leves de saliva, que conseguem flutuar no ar por um bom tempo. Neste caso, é possível contrair a doença apenas respirando essas partículas. Mas a rota mais comum é a que o vírus se espalha através de gotículas de saliva, que, apesar do nome, são pesadas demais para flutuar e caem em superfícies muito rapidamente. Neste tipo de transmissão, o vírus é levado ao nariz ou a boca pelas mãos das pessoas – por isso a higienização constante é importante.
O uso generalizado de máscaras também é benéfico, segundo uma série de evidências, porque impede que uma pessoa infectada saia espalhando saliva por ai quando fala, tosse ou espirra. E, como muitos que carregam o vírus são assintomáticos, é lógico que todos usem a proteção para evitar contaminar outros indivíduos.
Acontece que a equipe de Molina acredita que a transmissão por gotículas não é a principal rota do vírus, e sim a transmissão por aerosol. A conclusão controversa dos pesquisadores vem após uma comparação entre áreas em que o uso de máscaras foi obrigatório e generalizado com áreas em que isso não ocorreu, usando exemplos dos Estados Unidos, China e Itália. Os resultados mostraram que áreas em que a população usou máscaras tiveram menores taxas de novos casos nos períodos analisados, o que provaria a eficácia das máscaras e a rota principal do vírus, pelo menos segundo a equipe.
Mas, agora, mais de 40 cientistas escreveram uma carta para a revista PNAS apontando falhas graves no artigo e pedindo sua retirada imediata (você pode ler o documento e ver seus signatários aqui). O grupo concorda que máscaras são sim importantes, mas discorda da metodologia utilizada no estudo e afirma que a equipe superestimou a eficácia da prática, enquanto subestimou outras estratégias de intervenção epidemiológica, como o isolamento social. Segundo os cientistas que assinam a carta, as conclusões infundadas do estudo podem fazer com que as pessoas acreditem que apenas usar máscara já as proteja do coronavírus, o que faria com que elas deixassem outros cuidados de lado.
“Embora concordemos que o uso de máscaras tenha um papel importante na redução da propagação da covid-19, as alegações neste estudo foram baseadas em afirmações facilmente falsificáveis e em falhas metodológicas”, diz a carta. “Dado o escopo e a gravidade das questões que apresentamos, e o impacto público mediato do estudo, solicitamos que os editores da PNAS retirem esse artigo imediatamente”.
Um dos maiores erros apontados pelo grupo é que a equipe do artigo assumiu que a presença da máscara era a única variável diferente entre as regiões analisadas, o que não é verdade. Os autores do estudo escreveram, por exemplo, que todo o território americano estava sob o mesmo protocolo de quarentena e distanciamento social no dia 3 de abril, mas que apenas a cidade de Nova Iorque tinha instaurado o uso obrigatório de máscaras. Como a média de novas infecções no período analisado foi menor na cidade do que no resto do país, a equipe concluiu que a máscara era responsável pela diferença.
Acontece que não é verdade que todos os habitantes do país estavam agindo da mesma maneira. Apesar de todos os estados estarem sob algum tipo de distanciamento social, a extensão dessas medidas variou muito de local para local, bem como o respeito a elas (em alguns locais, a população simplesmente não respeitou a quarentena, como mostram dados de celulares). Nova Iorque também não era a única região com uso obrigatório de máscaras no período analisado, como o artigo diz – o estado de New Jersey foi pioneiro na medida, e outros seguiram logo após. Além disso, outras variáveis foram ignoradas pela equipe, como demografia de cada local, outros tipos de políticas epidemiológicas implementadas, se a região tinha ou não uma estratégia de rastreamento dos casos, etc.
Até mesmo as análises estatísticas da equipe tinham falhas, já que desconsideravam o período de incubação do vírus de duas semanas para avaliar o número de novos casos. Tudo isso, segundo a carta, faz com que as conclusões do artigo sejam invalidadas. “Infelizmente, desde sua publicação em 11 de junho, o artigo foi compartilhado amplamente nas mídias tradicionais e sociais, onde suas reivindicações estão sendo interpretadas como se fossem ciência rigorosa”, escrevem os críticos. “Enquanto a sociedade debate os riscos de reabrir e relaxar as medidas de distanciamento social, é crucial que as decisões se baseiem em uma base de evidências sólida.”
Para piorar, o artigo passou por um processo de publicação diferente do normal. Em geral, artigos científicos precisam ser revisados por pares antes de serem publicados em uma revista – isso significa que outros cientistas, sem relação com os autores, analisarão os dados em busca de falhas que possivelmente possam impedir que o artigo de ser publicado. A revista PNAS, porém, permite que cientistas com cargos nas Academias Nacionais possam escolher quem serão os revisores de seu artigo – foi o caso de Mario Molina e seu novo artigo. Isso levantou questões sobre se o processo foi de fato rigoroso e sério o suficiente.
Em entrevista ao jornal The New York Times, Molina defendeu seu estudo e disse que outros cientistas e organizações, incluindo a OMS e o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, estão subestimando a transmissão do vírus pelo ar. Apesar disso, admitiu que há problemas: “Talvez tenhamos exagerado em algumas frases. Pedimos desculpas. Deveríamos ter sido um pouco mais cuidadosos com a linguagem utilizada”, disse, se referindo as conclusões controversas sobre a alta eficácia das máscaras e a ineficácia de outras medidas. Também ao Times, uma representante da PNAS afirmou que a revista está ciente das críticas e que está investigando a questão.
A polêmica é mais uma dentro de uma discussão maior sobre a publicação de artigos durante a pandemia. Há três semanas, dois estudos sobre a Covid-19 foram retirados após sofrerem críticas de cientistas pelo mundo por suas falhas metodológicas. Um deles, publicado na revista New England Journal of Medicine, versava sobre a segurança de se tomar alguns medicamentos para pressão alta durante a infecção por Covid-19. Outro, publicado na The Lancet, afirmava que a droga cloroquina não só era ineficaz no combate ao novo coronavírus como também causava danos colaterais graves e aumentava a mortalidade. Ambos tinham o mesmo autor – o professor de Harvard Mandeep Mehra – e colhiam dados da empresa privada Surgisphere. No entanto, auditorias independentes mostraram inconsistências graves nos números, e a empresa se recusou a liberar mais detalhes sobre os dados, o que levou os estudos a serem retirados por falta de confiança. (Apesar do estudo da Lancet ter usado dados aparentemente falsos, outros estudos mostraram que a cloroquina de fato não parece ter eficácia contra a Covid-19 e pode ter danos colaterais. O medicamente já saiu dos protocolos do CDC americano, do governo da França e de outros países por conta destes estudos.)
Um movimento crescente de cientistas está agora se voltando para o processo de publicação de artigos durante a pandemia. Isso porque o momento exige urgência para que novas descobertas sejam publicadas o mais rápido possível e possam trazer benefícios para o mundo, mas, ao mesmo tempo, abre brechas para que dados falsos ou manipulados passem despercebidos devido a pressa no processo de publicação, o que seria ainda mais danoso à saúde pública.