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Milhões de anos de sucesso

Nem minhoca, nem peixe, esse habitante das praias é um caso único na natureza, pois não tem mecanismos de defesa orgânica como outros animais, mas vive muito bem

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h28 - Publicado em 30 jun 1991, 22h00

Flávio Dieguez e Maria Inês Zanchetta

Minúsculo, pois não ultrapassa os 5 centímetros de cabo a rabo, branco e pertencente a uma linhagem que habita os oceanos há mais de 400 milhões de anos—muito mais antiga que a dos sapos—, o anfioxo é um animal como não existe outro no planeta. Entre todas as espécies de animais vertebrados ou invertebrados, apenas ele não dispõe de um mecanismo considerado básico para a proteção dos organismos: a inflamação. Diante de uma invasão por bactérias, de fato, a imediata providência de qualquer animal é mobilizar para o tecido agredido suas tropas, constituídas por células brancas do sangue, os fagócitos.

Para chegar a um invasor e literalmente sitiá-lo ou comê-lo, impedindo sua progressão no corpo, os fagócitos como que ganham vida: abandonam os vasos e abrem caminho entre outras células do corpo até a região agredida. A essa marcha se denomina migração celular e ela pode ser vista como a principal característica das inflamações. Ao mesmo tempo, o local de entrada das bactérias ou os machucados e pancadas ficam avermelhados, se aquecem e incham. Trata-se de um mecanismo essencial à existência dos seres vivos, pois tende a restabelecer o equilíbrio perdido em virtude da violência externa. Mas o anfioxo, por algum mistério da natureza. não inflama—e vive muito bem assim. Foi o que comprovou, repetidas vezes, o veterinário e biólogo brasileiro José Roberto Machado Cunha da Silva, que investiga o bizarro animal no Laboratório de Imunopatologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Não é problema encontrar espécimes para os experimentos, pois há anfioxos, por exemplo, nas praias do litoral paulista. Ele vive enterrado a uma profundidade de mais ou menos 10 centímetros, onde a areia está sempre encharcada de água.

Ao vê-lo, tem-se a impressão de um híbrido de peixe com minhoca, e não admira que seja assim. É que, na história da vida, os anfioxos surgiram justamente na grande transição evolutiva entre os invertebrados, como as minhocas, crustáceos e insetos, e os vertebrados, como os peixes, sapos e mamíferos. Isso faz do anfioxo, de certo modo, um parente bastante próximo do homem—na medida em que 95% de todos os animais conhecidos são invertebrados.

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O anfioxo não é ainda um vertebrado —pertence ao grupo dos cordados. Embora seu corpo não tenha sequer a base da estrutura óssea—a coluna vertebral—, ele já apresenta a notocorda: um feixe de fibras gelatinosas que aparece no corpo dos vertebrados apenas quando são embriões. O corpo do anfioxo, portanto, representa um modelo muito antigo de organismo, que ao longo da evolução precedeu a forma vertebrada. Daí sua importância no estudo da Biologia.Não menos importante, mas menos conhecido, é o fato de esse animal não inflamar. Essa característica desconcertante já havia sido descrita, há 100 anos, pelo cientista russo Élie Metchnikoff(1845-1916), que demonstrou a existência de fagócitos e da inflamação em todo o mundo animal.Mas essa aparente anomalia no reino da vida ocupa apenas um curto parágrafo de um de seus livros. Surgiu, assim, a idéia de investigá-la mais profundamente—coisa que Cunha já vem fazendo ao longo de dois anos. 

Por meio do microscópio ótico e eletrônico, por exemplo, o cientista demonstrou que não há concentração de fagócitos ou células inflamatórias nos tecidos expostos por um corte feito na cauda do bichinho.Porém, a pele (epitélio) que reveste o corpo do animal desliza sobre a ferida, recobrindo-a 24 horas depois. A verdade, porém, é que a restituição do tecido machucado ocorre sem o “guarda-chuva” do processo inflamatório. Por isso, se instala uma verdadeira corrida contra o tempo—se nesse interim, enquanto a pele desliza, houver infecção do corte por parasitas, como bactérias ou fungos, o anfioxo ficará à sua mercê. Cunha passou a suspeitar disso quando cortou por duas vezes consecutivas a cauda de um espécime e percebeu que o deslizamento da pele que cobria a ferida não ocorreu. Ao mesmo tempo, notou que o ferimento apresentava inesperada cor vermelha—sinal de contaminação por parasitas.

Aparentemente, antes que o machucado fechasse, invasores penetraram entre os tecidos e passaram a prejudicar a recuperação do ferimento, instalando-se um letal círculo vicioso. É prematuro tentar dar respostas simples a fenômenos tão complexos e ainda pouco estudados. Não é preciso lembrar a desagradável surpresa trazida pela AIDS, contra a qual é impotente a sofisticada proteção imunológica humana.

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O fato é que, mesmo sem possuir os conhecidos elementos que constituem o sistema imunológico dos vertebrados, o anfioxo é um ser muito bem sucedido. Tanto que, nos últimos 400 milhões de anos, não foi excluído da evolução mesmo sem contar com os complexos mecanismos de proteção contra as infecções que hoje conhecemos, principalmente, nos mamíferos. Viver por tão longo tempo sem células inflamatórias e sem inflamar, como é o caso do anfioxo, mostra outros caminhos, até então desconhecidos, de relações entre o hospedeiro e o parasita. Cunha acredita que o simples fato de colocar em pauta essas questões justifica plenamente sua pesquisa. Por meio dela, será possível discutir a verdadeira importância da inflamação e o real significado que o sistema imunológico desempenha nos seres vivos em geral.

 

 

 

 

 

Para saber mais:

Os defensores do corpo humano

(SUPER número 7, ano 2)

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