O milagre da multiplicação dos neurônios
Depois de um século pensando o contrário, os cientistas descobriram que novos neurônios nascem também em adultos. Agora sonham com a cura de lesões na espinha, derrames, Parkinson e Alzheimer
Denis Russo Burgierman
Célula difícil taí. É a estrela do organismo, complicada que só ela. Tem centenas de ligações a solicitando ao mesmo tempo. Carrega na bolsa substâncias químicas cujos sutis efeitos os cientistas ainda não entendem bem. Como sempre acontece, essa condição de prima-dona vem acompanhada de um péssimo temperamento. Ao ser afetada por qualquer mal, sua recuperação vira um drama. Por fim, como toda celebridade, ela é insubstituível.
Era. Em junho, uma equipe da Universidade Rockefeller, em Nova York, anunciou que outra célula, chamada astrócito, consegue gerar novos neurônios em pelo menos uma região do cérebro. Melhor ainda: os astrócitos são muito abundantes no sistema nervoso. Ou seja, o potencial de restauração é gigantesco (veja na página 42). A descoberta vem no rastro de uma outra, tão surpreendente quanto. Em novembro do ano passado, um sueco e um americano tornaram realidade o sonho de dez em cada dez neurologistas. Eles concluíram que neurônios de adultos se regeneram, sim. Agora, pesquisadores do mundo todo estão tentando domar as indóceis estrelas e convencê-las a voltar ao trabalho depois de uma falta de ar ou um tropeção qualquer. Como você vai ver nas próximas páginas, os resultados são promissores.
Não pode?
Este neurônio é diferente de todos os outros 10 bilhões. No sistema nervoso, ao contrário dos demais tecidos, cada um é um, com forma, função e arsenal químico únicos. Imagine a dificuldade que seria repor essa célula, caso ela morra. Não é à toa que nunca se imaginou que o cérebro conseguisse se regenerar.
Pode, sim!
Os pesquisadores descobriram que células nervosas brotam, sim, no cérebro de gente grande. Pelo menos em uma região, cuja atribuição é formar memórias. Agora, estão procurando um jeito de fazê-las nascer em outros lugares.
O cérebro tem peças de reposição
Tudo o que sempre se pensou sobre neurônios ruiu em novembro de 1998, quando Fred Gage, da Universidade da Califórnia, e Peter Eriksson, do Instituto Universitário de Gotem-burgo, Suécia, publicaram a notícia mais esperada da história da neurobiologia. Eles tinham observado cérebros de cinco cadáveres e a conclusão chacoalhou a Medicina. Todos haviam gerado neurônios antes de morrer.
É verdade que só uma pequena região do cérebro foi pesquisada, o hipocampo, e que o número de novas células era irrisório – não mais que uma dúzia. Mas, desde 1889, quando o neurônio foi descoberto, ninguém tinha documentado o nascimento de uma célula nervosa em humanos adultos. A simples comprovação dessa possibilidade abre caminhos incríveis.
Estepes na cabeça
“Eu acho que o cérebro tem um grande potencial inexplorado de regeneração”, disse à SUPER o sueco Eriksson, por telefone. “Mas precisamos pesquisar outras áreas antes de ter certeza.” O hipocampo é um local responsável pelo registro da memória. Pode ser que ele seja a única região que se multiplica, já que gravamos lembranças desde o nascimento até a morte. Como cada parte do cérebro tem células diferentes, com diferentes funções, substâncias químicas e tipos de conexões, o hipocampo não serve de nada para os pacientes de doenças degenerativas como Parkinson e Alzheimer e para as vítimas de derrames e lesões na espinha. Eles perderam células nervosas em outras áreas do sistema nervoso, que, pelo que se sabe, não se reproduzem naturalmente.
Neurônios não se dividem ao meio. São tão especializados que não têm as proteínas necessárias para se reproduzir. Os recém-nascidos encontrados por Eriksson e Gage surgiram da divisão de um outro tipo de célula, as células-tronco, uma espécie de estepe sempre à espera de um estímulo químico para se multiplicar. Acontece que, para curar aquelas doenças, precisaríamos de milhares delas. E se a quantidade não fosse suficiente?
Uma pesquisa publicada em junho tornou o sonho mais real. O mexicano Arturo Alvarez Buylla, da Universidade Rockefeller, em Nova York, achou células-tronco em outra parte do cérebro, a zona subventricular. Elas, porém, não fazem neurônios naturalmente, só quando induzidas em laboratório. Acontece que Buylla também descobriu que aquelas células-tronco eram os já conhecidos astrócitos, corpos que envolvem neurônios e que ninguém julgava capazes de produzi-los. Temos 100 bilhões de astrócitos no sistema nervoso. Não se sabe ainda se todos são possíveis pais, mas, se forem, teríamos dez vezes o necessário para substituir cada uma das nossas células nervosas. Ou seja, o potencial de regeneração do cérebro não seria apenas grande. Seria ilimitado.
“Estou esperançoso”, disse Buylla à SUPER. “Achamos as progenitoras. Agora temos que induzi-las a gerar neurônios.” “Quando a ciência sabe o que procura, geralmente encontra”, avalia otimista o neurologista Cícero Galli Coimbra, da Universidade Federal de São Paulo. As temperamentais estrelas, pela primeira vez, parecem dispostas a colaborar.
O mecanismo da cura está desligado
Embora esteja provado que os neurônios são capazes de se multiplicar, sabe-se que eles não o fazem naturalmente em quantidade suficiente. Caso contrário, danos no tecido nervoso cicatrizariam como cortes na pele. “Animais mais primitivos fazem isso”, diz o neurologista Ciro da Silva, um brasileiro da Universidade de São Paulo que está entre os principais pesquisadores da área. “Ao longo da evolução, nosso cérebro foi se tornando mais complexo e ficou tão especializado que deixou de se consertar.” Ou seja, a enorme quantidade de substâncias e a grande variedade de conexões que cada célula teve que dominar quando os humanos ficaram mais espertos tornou-as difíceis de substituir.
A boa nova é que o mecanismo de cura não foi perdido. Está só desligado, à espera de substâncias químicas que o reativem. É justamente essa a área mais promissora da pesquisa e aquela à qual se dedica Ciro – a busca dos chamados fatores de crescimento. Ou seja, as substâncias certas que vão induzir as células-tronco certas a se transformar nos neurônios certos e se ligarem aos vizinhos do jeito certo. “Já foram identificados doze diferentes fatores”, diz Ciro. “Sabemos que os remédios serão combinações entre eles.”
Da teoria à prática
Um dia, os cientistas poderão retirar células-tronco, possivelmente astrócitos, do pedaço do cérebro que quiserem repopular, portanto prontas para substituir os neurônios daquela região. Depois, bastará submetê-las a fatores de crescimento, deixar que elas se multipliquem e implantá-las de volta. Um grande passo para transformar essa teoria em uma terapia eficaz foi dado pelo russo Valery Kukekov, da Universidade do Tennessee, Estados Unidos. Em abril, ele anunciou que tinha conseguido cultivar células-tronco em laboratório.
“Quando os cirurgiões realizam uma lobotomia, que é a separação dos hemisférios cerebrais de pacientes graves de epilepsia, retiram células cerebrais”, contou Kukekov à SUPER, por telefone. “O que fizemos foi pegar esse material, estimulá-lo com fatores de crescimento e gerar novas células-tronco.” Só que, depois disso, elas tendem a continuar se multiplicando. No cérebro, esse crescimento desenfreado geraria um tumor. “Conseguimos, então, induzi-las a começar a se transformar em neurônios, perdendo a capacidade de multiplicação”, diz ele. Ou seja, reproduziram-se células do próprio cérebro, portanto sem risco de rejeição, e elas ficaram no ponto para o implante. “Acredito que esse será um tratamento corriqueiro em uma ou duas décadas”, exultou o russo.
As boas notícias não param aí. Pesquisas com ratos demonstram que neurônios imaturos sabem o que fazer quando colocadas no cérebro. A vizinhança lhes envia sinais químicos que indicam onde ficar e para que lado estender conexões. O tcheco Hynek Wichterle, da Universidade Rockefeller, injetou células em cobaias com danos cerebrais e observou que elas migravam para o lugar onde eram necessárias. “Aparentemente, elas começaram a restabelecer as conexões nervosas perdidas”, contou, animado.
Fazendo segredo
O sueco Eriksson também está tendo resultados excelentes tratando roedores com derrame, a mais complicada de todas aquelas doenças, porque mata uma quantidade enorme de neurônios diferentes em vários lugares do cérebro (veja infográfico ao lado). “Conseguimos o retorno de funções perdidas”, cochichou à SUPER. “Mas não posso dar mais detalhes porque a pesquisa não terminou.” “As coisas estão acontecendo muito rápido”, empolga-se Wichterle. Tudo converge para a cura do que sempre se julgou incurável. A teimosa estrela está cedendo.
De aborto não pode
Funciona, mas é ilegal.
Uma alternativa viável para transplante de células-tronco é retirá-las de embriões. Só que há um problema ético envolvido: os fetos usados para tal fim seriam resultado de abortos. Na maioria dos países católicos, inclusive o Brasil, essas pesquisas estão proibidas.
Paraplégicos vão voltar a andar
Antes mesmo que os cientistas consigam controlar o ajuste fino do processo de multiplicação de células e convencer nossa insubmissa celebridade a ajudar um pouquinho, muitos pacientes já começarão a se beneficiar das pesquisas. “Os fatores de crescimento serão empregados em breve, talvez nos próximos dois ou três anos”, diz Ciro da Silva. “Não para fazer neurônios novos, mas para consertar os já existentes que sofreram danos”, conta, enquanto observa ao microscópio um ratinho morto cujo nervo cortado voltou a crescer.
Uma lesão na espinha inutiliza células nervosas sem matá-las. É que, dentro do osso, passam apenas seus prolongamentos, os axônios, levando sensações do corpo todo ao cérebro e comandos de movimento no sentido inverso. Esses axônios são imensos, têm mais de 1 metro. Quando o prolongamento se rompe, o corpo celular, lá longe, pode ser poupado.
Vários pesquisadores, incluindo Ciro, estão conseguindo fazer que células nervosas danificadas de ratos se reconectem. Os axônios, banhados num gel de fatores de crescimento, voltam a crescer e retomam sua função. “O melhor é que estamos percebendo que um retorno estrutural de apenas 10% já garante a volta da sensibilidade e dos movimentos.” Ou seja, um ganho enorme para tetraplégicos e paraplégicos.
Estimulando ratos
Os pesquisadores também perceberam que os fatores de crescimento podem proteger as células. Durante um derrame, por exemplo, a morte de um grupo de neurônios acaba liberando substâncias que matam milhares de outros, ao longo de semanas. O uso dos fatores logo após a internação interrompe essa reação em cadeia.
Um outro trabalho recente e incrível, cujos resultados deverão ser sentidos logo, relaciona a criação de novos neurônios aos estímulos do meio ambiente. A neurologista americana Elizabeth Gould, da Universidade de Princeton, provou que ratos presos em jaulas mais desafiadoras, com mais brincadeiras e labirintos, produzem mais neurônios.
Aparentemente, estímulos externos acionaram o mesmo mecanismo que os pesquisadores querem ativar com injeção de substâncias. Mais uma prova da capacidade do cérebro de se autoconsertar. “Resta saber se o mesmo se aplica a humanos”, ressaltou Gould à SUPER. De qualquer forma, os tratamentos de fisioterapia e de reabilitação de vítimas de derrame deverão mudar, inspirados pelos resultados com cobaias.
É. Parece que, afinal de contas, a célula nervosa não é uma estrela tão antipática quanto insinuavam os cientistas. Faltava apenas tratá-la com mais compreensão.
Olha só, brotou um novo
Como os cientistas comprovaram que neurônios novos nascem na fase adulta.
1. De marcação
Cinco voluntários, em estado terminal de câncer, receberam doses de um marcador, substância que gruda no DNA da célula quando ela se multiplica. Portanto, só é absorvida quando há divisão. Assim, os pesquisadores sabem que toda célula marcada é nova.
2. Recém-nascidas
Depois que os pacientes morreram, os médicos abriram seu cérebro e encontraram o marcador – prova de que havia células novas.
3. Mistério
Para surpresa de todos, as células novas eram neurônios (foto). Só que neurônios não se dividem. Quem poderia então tê-los gerado? Descubra a seguir.
4. Mamãe
A única explicação possível para o surgimento de neurônios novos é que eles fossem filhos das chamadas células-tronco. Elas são corpos não especializados à espera de comandos químicos para se transformar em outras células. Ao se dividirem, elas teriam absorvido o marcador.
5. Obediente
O cérebro, então, enviou uma ordem química para a célula-tronco recém-dividida. Ele avisou que precisava de neurônios novos e mandou que ela se transformasse em célula nervosa. As substâncias químicas, então, fizeram com que ela se especializasse.
6. Pronta
No final, surgiu uma célula nervosa igualzinha às outras, encontrada depois pelos médicos no hipocampo. Até hoje, julgava-se que o cérebro era incapaz de produzir uma dessas depois da fase embrionária, mas a nova descoberta derrubou o mito.
Aprende, desaprende
Células novas para cantar.
O canário é incapaz de cantar fora da época de acasalamento, a primavera. Ninguém entendia por que até a década passada, quando se demonstrou que todo ano ele faz novos neurônios com essa função específica. E o mais incrível: os perde em seguida.
Boa notícia
A cabeça pode estar cheia de células-tronco.
Nem só de neurônios é feito o cérebro. Praticamente todo o resto do espaço é ocupado por diferentes células.
De todas as células cerebrais, as mais numerosas são os astrócitos, que podem ser os geradores de novas células nervosas, como se descobriu no mês passado.
Vamos fazer neurônios?
Assim será a técnica para refazer o tecido nervoso.
1. Tira
Células-tronco, possivelmente astrócitos, depois de extraídas com microcirurgia da região do cérebro que está doente, seriam cultivadas em laboratório.
2. Bota
As células-tronco se transformariam em neurônios ainda pouco diferenciados e seriam introduzidas na mesma área do cérebro.
3. Deixa ficar
Os cientistas esperam que elas saibam o que fazer daí para a frente. O ambiente as induziria a estabelecer conexões e a começar a funcionar.
Cada doença uma sentença
Que lesões poderão ser curadas quando multiplicarmos células nervosas.
Derrame
Um derrame é o rompimento ou o entupimento de uma artéria, geralmente a cerebral média. Falta oxigênio em algumas células e muitas outras morrem envenenadas pelas substâncias liberadas pelas primeiras. A quantidade e a variedade de neurônios mortos tornam difícil a cura total.
Mal de Parkinson
Essa doença, de causa desconhecida, mata apenas um tipo de célula em um lugar específico, o mesencéfalo. Para tratá-la, é preciso semear novos neurônios nesta região.
Mal de Alzheimer
Aqui as coisas ficam mais complicadas, porque os estragos são em diversos tipos de neurônios espalhados pelo córtex, a camada superficial do cérebro. O tratamento, embora possível, é mais difícil.
Lesões na espinha
A medula espinhal é bem menos complexa que o cérebro, aqui visto de baixo. Há menor quantidade de células e menos conexões. Deve ser a primeira cura a ser alcançada, ainda na próxima década.
Nossa, ele sarou!
Pesquisas conseguem reabilitar células lesionadas, mas ainda vivas.
Grandões
Neurônios que passam pela espinha têm mais de 1 metro de comprimento. Uma lesão ali pode cortar suas conexões, acabando com a transmissão de impulsos. Mas o corpo celular pode estar vivo lá no cérebro.
Condenadas
Quando os axônios são rompidos, as células param de transmitir informações e preparam-se para crescer. Como não têm as substâncias necessárias, não conseguem se consertar e podem morrer.
Se liga
A injeção de fatores de crescimento promove a recuperação do neurônio, que começa a estender de novo seu axônio. A conexão se restabelece. Voltam a sensibilidade e o movimento.