O mundo no tempo das pestes
Ao longo da História, as epidemias provocaram mais mortes do que todas as guerras. A descoberta dos antibióticos diminuiu esse risco até a chegada da Aids, que ainda desafia os remédios
Lúcia Helena de Oliveira e Regina Prado
Nos países industrializados, os problemas cardíacos e o câncer formam uma dupla campeã de causa de mortalidade, devido aos hábitos e, ironicamente, à longevidade conquistada pelo homem moderno. Pois essas doenças degenerativas precisam de um tempo maior para se desenvolverem. E, até o início deste século, as pessoas costumavam morrer antes desse prazo, infectadas por parasitos de toda espécie. Contudo, apesar de provocarem um menor número de vítimas hoje em dia, as doenças infecciosas continuam a atemorizar, talvez por serem as únicas transmissíveis de uma pessoa para outra. A compreensão das infecções começou a avançar para valer em 1348, quando estourou a chamada Peste Negra na Europa. Foi uma dura lição: em apenas dois anos, morreu de peste um quarto da população do continente, estimada em 102 milhões de habitantes. Naqueles tempos, acreditava-se que até o olhar de um doente podia contaminar alguém.
Esta, ao menos, era a convicção dos mais céticos. Porque, para a maioria das pessoas, uma epidemia — ou seja, o surto de uma doença infecciosa — era um castigo divino, que vinha diretamente do céu ou, quem sabe, do inferno.Por isso, no auge da epidemia de peste, o papa Clemente VI conclamou os fiéis de toda parte a pedir clemência em Roma. “Acredita-se que 1,2 milhão de peregrinos tenham atendido ao pedido”, informa o epidemiologista Afonso Dinis Costa Passos, professor da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, interior do Estado. “Mas, no meio do caminho, nove em cada dez pessoas caíram mortos. Quem chegou em Roma, por sua vez, não viu o papa, que preferiu ficar encarcerado, com medo de se transformar em mais uma vítima.” Fugir literalmente das doenças era a única terapia eficiente no passado: o escritor italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), em um dos contos de seu célebre Decamerão, relatou que sete donzelas e três rapazes se refugiaram em uma casa de campo, para se prevenir da peste em Florença; ali ficaram, durante mais de mil e uma noites, inventando histórias para passar o tempo.
Entre os séculos XIV e XVIII ocorreram nada menos que dez pandemias, ou seja, a doença se espalhou pelo mundo inteiro. Ao primeiro sinal da peste nas cidades, os ricos escapavam para o campo e eram, geralmente seguidos pelos médicos, que precisavam de pacientes endinheirados para pagar por seus serviços. “A doença, em uma etapa inicial, era transmitida pelos ratos, infectados pelo bacilo Yersinia pestis”, explica Passos. Em Veneza, aliás, por volta de 1350, as pessoas já desconfiavam do papel sinistro dos roedores. Daí, quando um navio chegava do Oriente, os passageiros ficavam retidos na embarcação durante quarenta dias, por causa da possibilidade de os porões esconderem ratos clandestinos. Passado esse período, se não havia sinal da peste, o capitão hasteava uma bandeira branca na proa: estava criada a quarentena, conhecida até hoje. Baixo e calvo, o epidemiologista tem mania de organização; por isso, redigiu de maneira clara as formas de contaminação de diversas doenças — “antes de cursar Medicina, queria ser jornalista”.
Segundo Passos, o bacilo da peste, ao infectar o organismo humano, se aloja nas células dos gânglios linfáticos que, aproximadamente, dois dias mais tarde ficam inflamadas, formando ínguas ou bubões — eis a razão do nome peste bubônica. “Mas, em uma segunda fase da moléstia, as bactérias escapam pelas secreções do nariz. Então, torna-se possível a transmissão entre pessoas”, descreve o médico, com a fala mansa. “Havia lógica, portanto, no movimento de fuga das cidades: a aglomeração urbana oferecia mais riscos do que a vida no campo.” Ao observar que a proximidade tornava a contaminação viável, o francês Charles Delorme (1584-1678), médico de Luis XIII, defendeu o uso de vestimentas especiais, durante uma epidemia de peste em Marselha. Ele criou, assim, o primeiro uniforme de médico, nada parecido, aliás, com o tradicional avental branco: o modelo escuro exibia uma máscara na forma de bico, que continha substâncias aromáticas.
“Na época, prevalecia a corrente miasmática, ou seja, acreditava-se que as doenças eram como seres malcheirosos, que se incorporavam em uma pessoa através do ar”, conta o médico Emerson Elias Mehry, professor da Universidade de Campinas. Miasma, por sinal, é o odor de animais e plantas em putrefação. Barbudo, com olhos azuis brilhantes, Mehry divide o seu dia-a-dia entre organizar programas de saúde pública e estudar a história da Medicina, sobre a qual escreveu diversos trabalhos. “O que conhecemos como clínica médica surgiu há apenas cerca de 200 anos. Até então, os tratamentos eram quase sessões de exorcismo”, diz ele. De fato, os médicos jogavam baforadas de fumaça, produzida pela queima de tabaco, para expulsar a peste de seus pacientes. E, se o doente morria, os coveiros fumavam cachimbo, na hora de enterrar o corpo. Mesmo com toda essa suposta proteção, os médicos preferiam manter distância e lancetavam os bubões dos doentes com facas que podiam medir até 1,80 metro. Graças à habilidade com as lâminas, eles na maior parte das vezes acumulavam as funções de cirurgião e barbeiro.
Só em 1890, o pesquisador suíço Alexandre Yersin (1863-1943) e o japonês Shibasaburo Kitasato (1856-1931) descobriram, em Hong Kong, o bacilo causador da peste. Na realidade, o Yersinia pestis não surgiu de repente, isto é, já existia muito antes das epidemias medievais. Há indícios de que a maioria dos agentes infecciosos conhecidos hoje convivem com o homem desde a Pré-história. Por incrível que pareça, apesar dos danos que provocam à nossa vida, esses microorganismos são os maiores derrotados na batalha pela sobrevivência. Pois os parasitos bem-adaptados ao longo da evolução não matam seus hospedeiros, numa atitude suicida, como fazem os infecciosos. Por sinal, é provável que alguns destes tenham, primeiro, infectado bichos; mas, quando o homem passou a domesticar animais, esses microorganismos passaram por mutações genéticas, a fim de aproveitar a oportunidade de parasitar outra espécie — a humana. Estudos na área da Genética mostram que o vírus do sarampo, por exemplo, é descendente direto do vírus da raiva nos cães. Já o vírus da gripe tem um parente próximo, que prefere infectar os porcos. A varíola, por sua vez, seria similar a uma moléstia típica das vacas.
Mas, pior do que a passagem do bicho para o homem — que pode levar milhares de anos — é a contaminação de um ser humano por outro ser humano, que costuma ser imediata. Uma prova disso é a expansão dos povos mediterrâ-neos que, de acordo com os historiadores, coincidiu com uma série de registros de epidemias. Por volta do ano 500 a.C., esses povos aprenderam a navegar. Antes, cada cidade, isolada, tinha doenças locais, às quais as pessoas estavam adaptadas de alguma maneira. Elas, até então, se deslocavam por terra. Ou seja, se um viajante adoecia no caminho, tinha grande probabilidade de morrer antes de terminar o trajeto. No entanto, com a velocidade das travessias por mar, em que se percorriam cerca de 100 quilômetros por dia com a ajuda do vento, era possível um doente chegar vivo ao destino — e transmitir a moléstia.
Muito mais tarde, no século XII, por exemplo, a lepra chegou ao Ocidente, no rastro das Cruzadas. Segundo as famosas tábuas de Hamurabi, rei da Babilônia, datadas do século XVIII a.C, a doença existia em sua época, quando desfigurava seus súditos. De fato, o bacilo de Hansen, causador do mal — descoberto apenas em 1873 —, provoca lesões da pele, arrasando com suas terminações nervosas. A aparência das vítimas era assustadora. Por isso, os europeus, espantados com a suposta nova doença, resolveram segregá-las em asilos, os lazaretos, assim chamados porque os primeiros deles surgiram na Ilha de San Lazzaro, perto de Veneza. No século XVIII, somavam-se cerca de 19000 lazaretos na Europa, sempre fora dos portões das cidades.
Eram verdadeiras prisões: bastava uma denúncia e o paciente era obrigado a se apresentar a médicos ou sacerdotes. Uma vez diagnosticada a pretensa lepra, ele recebia um uniforme e uma matraca, que servia para avisar os outros da sua presença, nas raras vezes em que saísse do lazareto, onde estava condenado a passar o resto de seus dias. Freqüentemente, porém, o diagnóstico era um terrível engano. Quando, em 1860, o médico francês Paul Broca examinou os crânios de um antigo cemitério de leprosos, grande parte das lesões encontradas eram sifilíticas. Por esse mesmo motivo, aliás, em 1626, Luís XIII ordenou o fechamento de todos os lazaretos franceses — consta que, quando seus dois médicos particulares resolveram inspecionar um desses locais, não encontraram um leproso sequer.
“Preferimos chamar a doença de hanseníase, para evitar a lembrança desse estigma do passado”, informa o pediatra Wagner Augusto Costa, diretor do Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo. A hanseníase ainda reúne cerca de 15 milhões de vítimas no mundo inteiro. “Mas, por sorte, elas contam com bons remédios, especialmente se o problema for diagnosticado em fase inicial, ou seja, quando a pele perde a sensibilidade ao calor”, diz o médico. Confundida com essa doença, pelas feridas que provoca, a sífilis — infecção transmitida sexualmente, que podia ser fatal até a descoberta da penicilina, há sessenta anos —, irrompeu na Europa quando os conquistadores voltaram da América.
Os primeiros casos aconteceram em Barcelona, em 1493, por isso o mal ficou conhecido como “doença espanhola”. Poucos anos depois, surgia na França e, quando apareceram casos na Alemanha, citavam a “doença francesa”. Como os europeus costumavam viajar para o Oriente, em 1496 já se encontravam sifilíticos na Ásia. O médico alemão Johannes Widmann (1440-1553) reconheceu que as pessoas se contaminavam pelo sexo — uma dedução fantástica, considerando os recursos da época. Em países como a França e a Alemanha, os banhos públicos mistos foram terminantemente proibidos. Mas isso não resolveu o problema das epidemias, já que os marinheiros, na volta de suas viagens, continuavam espalhando a doença.
Como a sífilis, outras doenças fizeram longas trajetórias, acompanhando o homem em suas conquistas. Com isso, pode-se dizer que uma das maiores marcas da Idade Moderna foi a eclosão simultânea de diversas epidemias. Estima-se, por exemplo, que entre os séculos XVI e XVII, na Inglaterra, nove em cada dez mortes eram por doenças infecciosas. Pois, nessa época, ali existiam ao mesmo tempo epidemias de sarampo, cólera, varíola, peste bubônica, sífilis, lepra e tuberculose — era mesmo difícil sair imune. É claro que uma doença surge quando um parasito, para se reproduzir, precisa destruir as células do organismo em que se hospeda — estrago que se reflete nos sintomas da moléstia.
Por sua vez, corre-se o risco de epidemias, se o microorganismo vândalo pega carona no organismo de um viajante — isto faz sentido. Mas, muitas pessoas podem se indagar como, depois de atravessar tantas epidemias, o homem conseguiu sobreviver até a década de 40 deste século, quando se testaram pela primeira vez as drogas antibióticas, capazes de curar todas as infecções, menos as produzidas por vírus. Uma coisa é certa: a cada surto de determinada infecção, os sobreviventes tendem a adquirir anticorpos específicos contra o parasito responsável, surgindo gerações de pessoas cada vez mais resistentes. Além disso, muitas vezes, uma bactéria compete com outra — e, nessa briga, o homem pode sair ganhando.
Durante muito tempo, os cientistas buscaram explicações para o final das reincidências de peste bubônica. Estudos recentes sugerem que as epidemias de tuberculose no século XVIII serviram para imunizar as pessoas contra a peste. Ou seja, os anticorpos que o organismo cria para combater o bacilo de Koch, responsável pela doença pulmonar, eram versáteis o bastante para atacar também a outra bactéria. Mas a tuberculose, embora grave, matava com menos freqüência do que a peste. Esta, infelizmente, teve um substituto à altura: naquele século, eclodiram inúmeros casos de tifo na Inglaterra. Dali, o mal partiu para a América, incluindo o Brasil. Dores de cabeça insuportáveis e febres altíssimas eram queixas comuns nas prisões inglesas.
Transmitido pelo piolho, o tifo resulta diretamente da falta de higiene. A situação piorou quando os soldados de Napoleão, em sua retirada da Rússia, entre 1813 e 1814, espalharam a doença por toda a Europa. Aliás, as guerras facilitam o aparecimento de certas epidemias, como a do tifo. Por sorte, logo em seguida, o estudo das doenças passou por duas verdadeiras revoluções. Isso porque, apesar de as bactérias terem sido descobertas em 1674 pelo microscopista holandês Van Leeuwenhoek, apenas no século XIX o químico e microbiologista francês Louis Pasteur conseguiu provar que os microorganismos são capazes de provocar doenças.“Só então, com o avanço da Bacteriologia, os médicos começam a combater efetivamente as moléstias”, opina Emerson Mehry, da Unicamp. “Antes, determinada doença era encarada como uma série de sintomas, com uma ordem de entrada em cena que, conforme o caso, podia até ser bem conhecida dos médicos”, explica o estudioso da história. “Eles esperavam ou provocavam um por um dos sintomas, de modo que, se passasse o último deles, a doença teria igualmente passado.
”Outro passo importante foi a investigação, realizada em 1842, pelo médico inglês Edwin Chadwick: ele mostrou a relação entre a presença de doenças e as péssimas condições de moradia, a falta de esgotos, a ausência de água limpa, erros na remoção e no tratamento do lixo. “É óbvio que sempre existiram pessoas vivendo em condições precárias”, esclarece Mehry. “Na Idade Média, na falta de agasalhos, muitos camponeses dormiam juntos para se aquecer. Mas, então, ninguém atinava que a proximidade ajudaria a disparar epidemias.” Na opinião do pesquisador, as pessoas só passam a prestar atenção na doença quando ela, de alguma maneira, atrapalha quem está no poder. “No início do século passado, existia um interesse do governo inglês em estabelecer medidas sanitárias, porque se observava que operários saudáveis trabalhavam melhor nas indústrias recém-criadas”, exemplifica. “Do mesmo modo, no início deste século, os médicos e os governantes brasileiros declararam guerra contra a febre amarela Isso porque a economia do país se baseava na exportação de produtos agrícolas e a notícia de uma epidemia em São Paulo impedia que certos países permitissem a emigração de camponeses.”Em 1918, enquanto os brasileiros penavam com a febre amarela, uma gripe violenta matava milhares de pessoas na Espanha. Logo, a gripe espanhola, como ficou conhecida, se transformou em uma pandemia. Em países em desenvolvimento a doença chegou a matar metade da população.Na a Alemanha, naquele ano, uma em cada quatro mortes era causada pela gripe, que provavelmente se originou na China. “É como se existissem várias versões do vírus da gripe”, define o infectiologista Vicente Amato Neto, superintendente do Hospital das Clínicas de São Paulo.
“Teoricamente, sempre há a possibilidade de um vírus desses surpreender o sistema imunológico das pessoas, causando uma epidemia.” Mas, na sua opinião, com os recursos da Medicina moderna, dificilmente haverá tantas mortes como no passado: em um tempo relativamente curto, os laboratórios conseguem identificar detalhes de um agente infeccioso, indicando as melhores armas, nas prateleiras das farmácias, para combatê-lo. “De modo geral, a ciência conhece os meios de controlar a maioria das infecções. O que falta, às vezes, é força de vontade para aplicar algumas medidas sanitárias. Além disso, no Brasil temos o problema da fome, que enfraquece o organismo, aumentando o poder devastador de qualquer doença.”No que diz respeito ao estômago, este é um planeta enfraquecido: dos 5,2 bilhões de habitantes, 3 bilhões são subnutridos, ou seja, trinta a cinqüenta vezes mais sujeitas a morrer por causa de uma infecção. Amato só desanima quando o assunto é Aids : “Trata-se de uma infecção com características muito especiais,” garante.
“Por mais que o governo desenvolva meios de controle, como o exame do sangue doado em bancos, não se pode garantir que as pessoas estejam levando a sério os cuidados a respeito da própria vida sexual. Além disso, no caso dos drogados, um dos principais grupos de risco, eles parecem não ouvir ninguém.” Segundo a Organização Mundial da Saúde, 75% das pessoas infectadas pelo vírus da Aids são heterossexuais. “Em um país com tradição machista, como o Brasil, as coisas ficam mais difíceis. A troca constante de parceiros é encarada com naturalidade. Se continuar nesse ritmo, a Aids matará mais pessoas do que as pestes do passado”, afirma. Seu colega de consultório, o infectiologista David Éverson Uip é mais otimista: “Acho absurdo que o número de casos continue aumentando”, diz, num tom francamente espantado. “O simples uso da camisinha pode evitar a epidemia.”
Para saber mais:
(SUPER número 10, ano 10)
(SUPER número 6, ano 11)