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O nome de Deus é Craig Venter

O geneticista americano está a um passo de ser o primeiro homem a criar vida em laboratório.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 30 set 2007, 22h00

Texto Salvador Nogueira

Ele reuniu pedaços de várias criaturas. Levou-os para um laboratório. Costurou tudo. E deu àquela maçaroca orgânica o sopro da vida. essa é a velha história do Dr. Frankenstein, o cientista que queria ser deus. e agora ela está sendo reencenada pelo pesquisador mais rico do mundo, um homem que sabe cumprir o que promete.

Estamos falando de John Craig Venter. As últimas manchetes que o geneticista americano produziu foram no mês passado, quando anunciou a publicação de seu próprio genoma, ou seja, todos os 6,4 bilhões de “letras genéticas” que compõem seu DNA na seqüência certinha. Era a primeira vez que alguém decifrava o genoma de um ser humano usando como base um único indivíduo. Algo parecido já tinha sido feito em 2003, por um consórcio internacional de laboratórios, após 13 anos de pesquisas. Só que o trabalho deles descrevia apenas metade do DNA humano, e com amostras tiradas de várias pessoas. O trabalho de Venter, então, é o mais completo da história nessa área. O que antes era rascunho virou arte-final.

Não foi por acaso. Venter é o mesmo sujeito que, lá nos anos 90, disse que o caminhão de dinheiro público despejado pelas nações (principalmente EUA e Reino Unido) no tal consórcio de institutos para decifrar o genoma era um desperdício. Na época, essa turma estava consumindo bilhões de dólares para extrair e colocar em ordem as letrinhas químicas que compõem os textos (ou seja, os genes) contidos no DNA. Juntos, eles formam o manual de instruções de como construir uma pessoa. A tarefa do consórcio era fundamental: quanto mais aprendermos sobre o genoma, maior será nosso poder sobre a vida. E sobre a morte. Se soubéssemos quais são todos os genes ligados ao câncer, por exemplo, te-ríamos mais munição para lutar contra a doença. Bom, no meio desse oba-oba, Venter alertava: dá para fazer a mesma coisa de forma mais eficiente, e por muito menos.

Quando olharam torto para ele, o jeito foi provar. Financiado por capital privado, Venter ajudou a criar a Celera, empresa que usaria uma nova estratégia de decifração genômica, criada por ele, para competir com o consórcio do Projeto Genoma Humano. O código genético de um vírus serviu de teste piloto. Pelos meios tradicionais, o consórcio realizou o seqüenciamento (sua decifração) em 3 meses. Com a estratégia de Venter, o mesmo trabalho foi feito em duas semanas. O projeto público estava mesmo encrencado.

A sacada de Venter foi apostar no poder dos computadores para acelerar o processo. Enquanto o Projeto Genoma lia letrinha por letrinha a partir de grandes pedaços de DNA, deixando o mínimo possível para o computador resolver, Venter estilhaçava a molécula original em zilhões de pedacinhos e deixava um supersoftware montar o quebra-cabeça todo. Deu certo.

Não só a Celera concluiu, em 2000, o seqüenciamento de um “rascunho” do genoma humano ao mesmo tempo que o consórcio público (os dois grupos fizeram um acordo para apresentar seus resultados juntos), como também o fez por US$ 300 milhões, apenas 10% do que o concorrente gastou. Bom, 3 anos depois, o consórcio apresentaria sua versão definitiva do genoma, uma obra mais ampla que os rascunhos da Celera. Mas o sucesso anterior já tinha transformado a empresa numa brutamontes de US$ 20 bilhões, tornando Venter o primeiro bilionário da biotecnologia.

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Enquanto os cientistas se deleitavam nas sopas de letrinhas e com a técnica de seqüenciamento de Venter, que hoje virou o padrão nos laboratórios do mundo todo, o “pai” da genômica do futuro já estava pensando o que faria a seguir. E decidiu que, depois de aprender a seqüenciar vários genomas, estava na hora de começar a tentar escrevê-los. Venter decidiu recriar a vida.

Todo mundo achou que ele estava exagerando. Ainda há tanta coisa por explicar no funcionamento dos organismos que dificilmente alguém poderia sair escrevendo um genoma novinho, que servisse de base para uma entidade biológica artificial.

A essa altura, os acionistas da Celera queriam outra coisa, bem mais rentável: que Venter transformasse sua base de dados genéticos em medicamentos – aquelas pílulas maravilhosas contra doenças incuráveis que tagarelas do consórcio público estavam prometendo para logo que tivéssemos o DNA humano decifrado. Ele tentou explicar que esse era um barco furado, já que a ciência ainda tinha (e tem) muito o que aprender sobre a interação entre os genes antes de produzir remédios capazes de agir diretamente neles, mas a Celera insistiu. Mostrou a Venter a porta da rua em 2002 e voltou à obscuridade biotecnológica, sem nunca ter apresentado um medicamento genético. Já o nosso Dr. Frankenstein resolveu criar um novo instituto, agora definitivamente voltado a seus sonhos de vida sintética. Para começar a nova empreitada, Venter decidiu atacar em várias frentes. A primeira era a busca de inspiração. Ele comprou um veleiro, transformou em laboratório e saiu navegando pelo mundo.

Não, o cientista não estava à procura de paisagens idílicas que o ajudassem a pensar. O pesquisador na verdade rodou o planeta coletando genes. Pegava amostras de água de vários lugares e seqüenciava, em massa, todos os pedaços de DNA das criaturas ali presentes.

Venter chegou a sondar a possibilidade de navegar pelo rio Amazonas e realizar coletas ali, mas seus planos foram frustrados pelo governo brasileiro, que não queria ter sua biodiversidade pesquisada por um grupo estrangeiro. O pesquisador não gostou, claro. “Em todos os lugares tivemos de pedir autorização aos governos, e nosso acordo era o de que as descobertas que fizéssemos não poderiam ser patenteadas, nem por nós, nem por esses países; seriam divulgadas publicamente”, disse o cientista em 2005, quando esteve em São Paulo para dar uma palestra. “Então não é uma questão de eu achar que tenho direito de possuir os genes de qualquer coisa. É o contrário, alguns países é que acham que são donos dos organismos.” E concluiu alfinetando: “Se fosse hoje, Charles Darwin teria sido impedido de fazer sua pesquisa”, referindo-se às viagens que o naturalista britânico fez no século 19 a bordo do navio Beagle, com passagem pelo Brasil. Foram essas expedições que o inspiraram a criar a Teoria da Evolução das Espécies.

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Embora o Brasil tenha ficado de fora, vários países autorizaram o cientista a prosseguir com a sua coleta. E, ao final da viagem, o J. Craig Venter Institute contava com uma base de dados de nada menos que 6 milhões de genes, vindos dos mais diferentes organismos. Era com essas pecinhas que o cientista pretendia construir suas criaturas sintéticas. Mas, antes, ele ainda precisava desenvolver a tela em que pintaria sua obra de arte.

Num computador, antes que você possa instalar os programas, é preciso que ele tenha um conjunto de instruções básicas, um sistema operacional. Só assim a máquina pode entender os softwares que serão instalados. Venter pensou que a mesma coisa seria necessária para a criação de vida sintética. Então o primeiro passo seria criar um “Windows” biológico, quer dizer, um genoma que contivesse apenas o básico do básico para a sobrevivência da criatura.

O grupo de Venter começou a busca por esse genoma mínimo com o DNA da bactéria Mycoplasma genitalium – escolhido porque já tinha, por natureza, um material genético bem simples. Então, os cientistas foram desligando cada um dos genes da bichinha, vendo quais eram absolutamente necessários à vida e quais eram dispensáveis. Terminaram com cerca de 400 genes. E ficou decidido que esse seria o Windows da primeira forma de vida criada em laboratório.

Mas não um Linux. Logo que a equipe de Venter concluiu sua busca por um genoma mínimo, quis patentear o novo brinquedo. Quem quiser usar o mesmo sistema operacional terá de pagar royalties, se o pedido de patente for aceito. Isso revoltou cientistas concorrentes, que acusaram a iniciativa de tentar criar uma Microbiosoft, à moda de Gates.

E olha que tem gente graúda nessa briga por quem chega primeiro. Um dos mais fortes é David Berry, cientista e força motriz da empresa biotecnológica americana Flagship Ventures, em Cambridge, Massachusetts. Eleito inovador do ano de 2007 pela revista Technology Review, ele está na busca da criação de organismos sintéticos que possam resolver o problema energético atual. Berry quer construir formas de vida capazes de produzir, com seu metabolismo, fontes de energia que possam substituir o petróleo. E é exatamente esse o objetivo declarado de Venter, que consta inclusive do pedido de patente para seu Windows de bactéria. A briga vai ser boa.

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Correndo por fora, tem gente do mundo todo. Mark Bedau, chefe da empresa italiana ProtoLife, quer construir tudo na raça – inclusive uma bolhinha artificial que faça as vezes de embalagem para sua forma de vida sintética. Ele estima que a coisa vá acontecer em 3 a 10 anos.

Venter lamenta informar, mas não vai esperar tanto tempo. Em julho, ele chocou a ciência ao mostrar que já consegue instalar seu sistema operacional onde quiser. O que ele e sua equipe fizeram foi algo que, em outros tempos, só poderia ser qualificado como bruxaria. Ele transformou uma espécie em outra.

Ou, em termos menos fantasmagóricos, retirou o genoma de uma bactéria, da espécie Mycoplasma capricolum, e inseriu nela o genoma de outra bactéria – Mycoplasma nycoides. O que aconteceu? A capricolum passou a se comportar como mycoides, seguindo à risca as “instruções” colocadas no material genético recém-implantado.

E agora, J. Craig?

Provado esse passo crucial, Dr. Frankenstein diz que falta pouco para que ele tenha sua primeira bactéria artificialmente concebida, com DNA de genoma mínimo mais alguns genes coletados em suas viagens. Entre esses “softwares” disponíveis para teste, há genes que podem fazer bactérias processar hidrogênio – combustível que não polui.

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E funcionaria? “A idéia parece razoável”, avalia Marcelo Nóbrega, pesquisador brasileiro na Universidade de Chicago. “Se ele conseguir reprogramar bactérias geneticamente, elas passam agora a produzir hidrogênio. Seriam como minirrefinarias.” É tão razoável, na verdade, que o Departamento de Energia dos EUA despejou US$ 3 milhões no instituto de Venter.

Mas espera aí. Se esses genes maravilhosos já estão na natureza, por que diabos não pegamos as bactérias que os usam e as cultivamos, em vez de gastar toda essa dinheirama para criar uma nova praticamente do zero? “O problema com bactérias assim”, explica Nóbrega, “é que elas conseguem produzir uma quantidade pequena dessa fonte energética. Não há por que a natureza criar uma usina de força dentro da bactéria quando tudo de que ela precisa é de energia suficiente apenas para sua sobrevivência.”

Em suma, o objetivo de Venter é transformar uma bactéria que trabalhava para a própria sobrevivência numa que trabalhe pela nossa. Fazer algo mais complexo, como desenhar um ser humano gene por gene, ainda está longe dos horizontes da ciência. Mas nem tanto quanto na época em que a escritora britânica Mary Shelley criou o Dr. Frankenstein original, lá no século 19. Faça-se a luz.

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Receita divina

O que Venter quer fazer, e o que ele já fez, para criar vida artificial

1. MATÉRIA-PRIMA

A recriação da vida não começa exatamente do zero. Venter pretende juntar “lascas” de DNA coletadas de milhares de seres vivos bem simples, de uma célula só (as bactérias).

2. DNA INÉDITO

Então ele encaixaria as lascas para formar um genoma artificial (ou seja, todo o material genético de algum ser inédito). Isso Venter não fez. Mas já realizou outra coisa importante.

3. CÉLULA-MONSTRO

O genoma artificial só vira algo vivo se o colocarem numa célula. E Venter mostrou que sabe fazer isso. Como? Injetou o DNA de uma bactéria, a M. mycoides, em outra, a M. capricolum. O resultado foi uma “célula-monstro” com mais de um genoma.

4. FAZ-SE A LUZ

A tal célula começou a se dividir, como toda célula faz. E teve dois tipos de filhas: um com o DNA de M. capricolum e outro com o genoma “invasor”, de M. mycoides. Não é pouco: foi como se uma mulher tivesse dado à luz um ser humano e um gorila.

5. E NO FUTURO…

Depois lançaram um veneno que mata as M. capricolum. E ficaram só as células que tinham o novo DNA. Por enquanto, isto só funciona com bactérias. Mas, num futuro ainda distante, este mesmo processo poderá ser usado para construir qualquer forma de vida.

Para saber mais

The Genome War

James Shreeve, Ballantine Books, EUA, 2005.

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