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O primeiro brasileiro

A arqueóloga Niède Guidon faz um balanço das descobertas no Piauí que podem mudar as teorias do surgimento do homem na América

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 31 dez 2002, 22h00

Há 30 anos, a arqueóloga Niède Guidon tenta provar que o homem chegou à América muito antes do que se imaginava. Formada na Universidade de Sorbonne, na França, essa paulista de Jaú se mudou em 1992 para a cidade de São Raimundo Nonato para estudar a vida dos primeiros habitantes do Brasil no hoje famoso Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. A área tem cerca de 600 sítios arqueológicos com paredões repletos de pinturas rupestres e outros vestígios, como ferramentas de pedra lascada, esqueletos e urnas funerárias.

Nos últimos dois anos, a datação de pinturas rupestres no parque com cerca de 35 mil anos e de dentes humanos de 15 mil anos atrás promete sacudir o estudo da chegada no homem à América. A teoria mais aceita sobre o povoamento do continente diz que o homem veio pelo estreito de Behring, entre a Rússia e o Alasca, por volta de 13 mil anos atrás. Apesar de a equipe da arqueóloga já ter encontrado, há mais de uma década, restos de uma fogueira de 48 mil anos, a descoberta foi encarada com ceticismo por outros pesquisadores, que diziam que a fogueira poderia ter surgido de uma combustão espontânea. “A idéia de que o homem veio para a América há 13 mil anos é da década de 50”, diz Niède. “De lá para cá, as novas descobertas têm mostrado que ele já estava aqui há muito mais tempo.”

Como as descobertas no Parque Nacional da Serra da Capivara estão abalando as teorias vigentes sobre o povoamento da América?

Um dos achados importantes foi a descoberta de uma pintura que estava coberta por uma camada de calcita. Essa calcita foi retirada pelo professor Shigueo Watanabe (do Instituto de Física da USP, em São Paulo), que a datou em 35 mil anos. Portanto, as figuras têm, no mínimo, essa idade. Encontramos também dentes humanos datados em 15 mil anos.

Esses achados vão contra a teoria mais aceita, de que o homem chegou à América há cerca de 13 mil anos…

O que as pessoas chamam de teoria vigente sobre a presença do homem na América é uma tese dos anos 50. De lá para cá, surgiram novas descobertas aqui, no México, no Chile e em outros lugares do continente. As pesquisas desenvolvidas na serra da Capivara estão dentro de um novo contexto. Os dentes que achamos são os restos humanos mais antigos já encontrados na América. Sei da importância desse achado. Mas vejo com naturalidade, porque está dentro de um processo e é resultado de um trabalho de muitos anos, que ainda deve render muitas outras descobertas importantes.

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Como o homem teria chegado à América? As descobertas no parque ajudam a desvendar esse segredo?

Estamos fazendo análise do DNA dos esqueletos encontrados na região. Esse trabalho está em processo na Universidade de Michigan, nos EUA. Comparando-se esse DNA com o encontrado em restos humanos de outras partes do continente, poderemos estabelecer uma teoria. Minha hipótese é a de que houve várias entradas, por diversos caminhos, inclusive por mar. E em várias épocas diferentes. O homem saiu da África e se espalhou pelo mundo. É um absurdo achar que o continente foi povoado somente pelo estreito de Behring. Outro indício forte de que houve vários caminhos e levas migratórias é a grande variedade lingüística encontrada entre os povos indígenas da América.

Como o trabalho em arqueologia no Brasil é visto por pesquisadores de outros países, já que temos pouca tradição na área?

Não concordo com isso. Temos, sim, uma tradição. Até mesmo porque instituições de todo o mundo nos procuram para firmar acordos de pesquisa. Em 2003 devemos receber pesquisadores ingleses, franceses e de outras nacionalidades, em convênio com universidades brasileiras, como a Federal de Pernambuco.

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Por que então esses achados, apesar de importantes, não tiveram repercussão?

A publicação do resultado obtido pelo professor Shigueo Watanabe sobre as pinturas de 35 mil anos foi feita no ano passado, na revista Journal of Archaeological Science, e começa a repercutir – tenho recebido várias consultas sobre o assunto. A datação dos dentes foi publicada em português. Infelizmente, nossos colegas norte-americanos não lêem as publicações em português nem em francês. E a maioria dos nossos trabalhos é publicada nessas línguas. No final do ano conseguimos publicar em inglês a monografia sobre os achados no Boqueirão da Pedra Furada, o que nos deu muito trabalho, com alto custo financeiro. Em 2002, tivemos quatro artigos publicados em revistas internacionais de língua inglesa. E agora houve uma proposta para que façamos uma síntese dos 30 anos de pesquisa no Parque Nacional, que deve ser publicada numa revista norte-americana, provavelmente a American Antiguity.

As novas descobertas foram datadas pelos métodos tradicionais ou houve algum avanço nessa área?

O professor Shigueo Watanabe datou a calcita com uma metodologia nova chamada Electronic Spin Resonance, um método físico que eu não conheço muito profundamente. O resultado dos dentes foi obtido pelo método do carbono 14, mas com uma máquina especial chamada AMS (Accelerator Mass Spectrometry, ou espectrometria de massa por acelerador), que permite a datação mesmo de pequenas quantidades de carvão.

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Quais são as pesquisas mais promissoras feitas hoje na área do parque?

No final de novembro, foi descoberto um sítio promissor que me deixou empolgada. Fica em um local elevado, junto ao que foi um dia uma cachoeira. As rochas do local eram ótimas para serem lascadas. Provavelmente, os homens usavam o local para fabricar os instrumentos e os levavam depois consigo. Acho que poderemos estabelecer semelhanças entre as técnicas usadas ali com as que eram aplicadas em alguns pontos da Europa há 30 mil anos, assim como já podemos comparar pinturas rupestres do parque com outras muito antigas, de outras partes do mundo. Estamos escavando também uma área chamada Serrote, onde achamos sete esqueletos, um número extremamente importante no Brasil, já que é pequeno o número de esqueletos encontrados por aqui. Na Serra Branca (região remota do parque, fechada à visitação), terminamos uma escavação que encontrou uma rocha a 10,3 metros de profundidade, que também deve nos dar preciosas informações sobre as mudanças do clima e do relevo da região.

Niède Guidon

• Tem 69 anos, fez carreira na França e desde 1992 mora em São Raimundo Nonato (PI).

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• Comanda a Fundação Museu do Homem Americano, que em parceria com o Ibama, administra o Parque Nacional da Serra da Capivara.

• Gosta de caminhar sozinha por trilhas em meio à caatinga. Já topou com duas onças nessas incursões.

“O homem não chegou à América apenas por uma região. É absurdo achar que o continente todo foi povoado a partir do Alasca”

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