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O que é a teoria do centésimo macaco?

Entenda essa ideia pseudocientífica que inspirou várias filosofias esotéricas do século 20 – apesar de se basear numa história distorcida.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 17 Maio 2024, 14h42 - Publicado em 13 Maio 2024, 18h00

É uma ideia pseudocientífica que diz, basicamente, que os seres vivos podem estar conectados por algum mecanismo místico e invisível capaz de compartilhar informações de maneira misteriosa, como uma espécie de telepatia. A “teoria” se baseia numa interpretação distorcida de estudos feitos com macacos japoneses na década de 1950.

Apesar de usar conceitos da ciência e até de ser formulada por um biólogo, este pensamento não é científico – está ligado a filosofias esotéricas e crenças místicas do século 20. Para entendê-la, voltemos às suas origens.

Macaquinhos higiênicos

Em 1958, pesquisadores japoneses estudavam macacos na ilha de Kojima (Macaca fuscata) quando notaram um fenômeno curioso. Os cientistas, que estavam há algum tempo deixando batatas-doces na praia para os animais, perceberam que uma jovem fêmea de nome Imo tinha aprendido um comportamento novo: antes de comer, ela lavava as batatas na água do mar ou de riachos para retirar a areia.

Aos poucos, outros macacos começaram a fazer o mesmo, imitando a pioneira. Primeiro foram os parentes próximos de Imo, depois outros indivíduos jovens da ilha e assim por diante. Em algum momento, o hábito de lavar o alimento se espalhou por aquela comunidade. O fenômeno foi especialmente interessante para os primatologistas porque o costume passou dos macacos jovens para seus pais – algo relativamente incomum. Em geral, os macacos mais novos aprendem com os mais velhos, e não o contrário.

A descoberta revelou mais detalhes de como esses bichinhos inteligentes conseguem aprender por imitação, e, por isso, os cientistas japoneses relataram a história em pelo menos cinco artigos científicos. Legal.

História requentada

Anos depois, o biólogo Lyall Watson recontou essa história em um de seus livros. Mas havia alguns detalhes a mais nessa versão da narrativa. Watson, que era afeito a temas místicos e pseudocientíficos, disse que a ilha tinha sido palco de uma espécie de evento milagroso. 

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Segundo Watson, que resumiu os achados dos cientistas japoneses, o comportamento higiênico foi se espalhando de macaquinho para macaquinho na ilha gradualmente, de 1953 a 1958, pelo mecanismo normal: um animal observava o outro e imitava suas ações. Só que, em 1958, algo diferente teria acontecido: todos os macacos da ilha passaram, de uma hora para outra, a higienizar seus alimentos. 

Watson argumenta que, em algum momento, o número de macacos que lavava seus alimentos estava tão grande e dominante na ilha que esse comportamento simplesmente se espalhou para o restante de forma inconsciente, quase que numa telepatia. É como se aquela comunidade tivesse cruzado um limite invisível que acionou algum tipo de gatilho de compartilhamento de informações entre eles. Como exemplo, ele diz que isso pode ter acontecido após o centésimo macaco lavar batatas – por isso o nome da teoria.

“Digamos, para fins de argumentação, que o número [de macacos lavando a comida] era de 99 às onze horas da manhã de uma terça-feira, e um convertido foi adicionado a esse grupo da maneira usual [ou seja, imitando os outros]”, escreve ele em seu livro Lifetide. “A adição do centésimo macaco aparentemente levou o número a passar algum tipo de limite, porque naquela noite quase todo mundo na colônia estava fazendo isso.”

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Ok, parece totalmente doideira. Mas aí Watson adiciona uma informação que muda toda a história: segundo ele, não só todos os macacos da ilha de Kojima teriam adquirido o hábito de lavar a comida. Os primatas de outras ilhas japonesas na região também teriam mudado de comportamento, com o detalhe de que eles nunca tiveram contato com seus colegas da ilha de Imo (os macacos não nadam).

Ou seja, isso seria uma espécie de prova de que a informação teria viajado de forma inexplicável, através de algum mecanismo ainda desconhecido da ciência que conecta os indivíduos. Uma espécie de “(in)consciência coletiva” (não confundir com o conceito da psicanálise, que é outra coisa).

Não parou por aí. Baseado na história do centésimo macaco, o biólogo Rupert Sheldrake criou o conceito de “campo mórfico” – que seria exatamente esse mecanismo invisível que liga indivíduos, em que as informações são gravadas e compartilhadas, e que, portanto, o que acontece com um indivíduo pode afetar o outro. 

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Essa ideia influenciou várias filosofias esotéricas do final do século 20, incluindo a chamada constelação familiar (que explicamos em detalhes nesta reportagem). Repare como é a definição de pseudociência: usa termos emprestados de áreas como a física (“campo”) para descrever fenômenos místicos, mas que são impossíveis de serem postos à prova. Nunca nenhum experimento conseguiu mostrar a existência desse conceito; a história do centésimo macaquinho geralmente é trazida como a evidência de sua existência. Só tem um problema: ela é furada.

A história real

O problema principal dessa teoria é que ela é um resumo falho e distorcido da pesquisa original dos cientistas japoneses.

Nos artigos originais, não é citado nenhum momento em que todos os macacos tenham começado a lavar as suas batatas de uma hora para a outra. O mecanismo descrito é o que já falamos aqui: a jovem Imo inventou o comportamento e ele foi se espalhando gradualmente por seus colegas.

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Pelo contrário: os estudos originais falam explicitamente que parte dos macacos, especialmente os mais velhos, se recusaram a se juntar à inovação dos mais jovens. Muitos morreram sem nunca ter lavado suas batatas – e esse hábito só se passou a ser dominante mesmo quando essa geração mais velha bateu as botas. O ano de 1958 é citado como o marco em que isso virou o “status quo” pelos cientistas japoneses, mas, ao contrário de Watson, eles nunca falam que isso ocorreu do dia para a noite – pelo contrário, detalham que o aprendizado foi gradual.

E quanto aos macacos de outras ilhas? Esse é o maior mecanismo da pseudociência: usa fatos verdadeiros, mas distorcidos, para enganar. De fato houve observações de primatas em outras ilhas próximas, de colônias diferentes que também foram estudados por cientistas, lavando suas batatas doces. São poucos os registros disso: não dá pra ter certeza de quanto foram feitos os avistamentos.

De qualquer forma, esses mesmos relatos deixam claro que apenas alguns indivíduos foram vistos lavando suas comidas – contradizendo a hipótese do centésimo macaco. 

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E não há nada que ligue esse hábito em outros locais à ilha de Kojima, a “original”, diga-se. É possível que as populações de macacos na vizinhança simplesmente desenvolveram esse comportamento por conta própria, assim como a jovem Imo fez na década de 1950, e outros passaram a copiá-los

Pode parecer estranho ou “coincidência” demais que esse comportamento tenha surgido espontaneamente em populações isoladas e num período de tempo relativamente próximo. Mas não tem nada de anormal: todos os macaquinhos eram estudados por cientistas naquela época. 

E, mais importante: antes disso, eles nunca tinham tido acesso a batatas doce, muito menos deixadas na areia da praia. Era algo inédito pra todas as populações. Com isso em mente, não é esquisto pensar que, em algum momento, algum dos bichos ia perceber que lavar o alimento em água seria uma boa ideia. E que outros passassem a copiar. Não é preciso de um “campo mórfico” invisível e místico para isso – só da inteligência primata, mesmo.

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