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Os super-ratos

Surge uma nova geração mais inteligente, saudável, responsável e bonita. Depois de ter seus genes manipulados em laboratório, os roedores ganharam características invejadas pelo homem.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 Maio 2018, 13h19 - Publicado em 30 set 1999, 22h00

Ivonete D. Lucírio

Mickey Mouse já era. Apesar das orelhas e da simpatia de artista, ele já foi superado por parentes desenhados por cientistas. Os ratos engendrados pela engenharia genética tendem a superar o homem. Modificando seus genes, cientistas fabricam roedores admiráveis. No mês passado o geneticista chinês Joe Tsien, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, anunciou a criação de uma linhagem de camundongos mais inteligente e com melhor memória. O focinho de seu rebento, Doogie, apareceu em todos os jornais (veja a cada dele na página 57).

Doogie é a estrela magna de uma geração de ratos emergentes. Hoje, há roedores brilhantes, prudentes, que vêem mais longe, são mais magros, mais peludos e até monogâmicos. Na natureza, copulam com as fêmeas e fogem. Nos laboratórios, já há dedicados maridos e pais transgênicos. É verdade que existe também aquela classe desgraçada de cobaia que já nasce condenada. Para o bem ou para o mal, a justificativa para a criação desses animais artificiosos é a mesma: entender melhor os males que afetam o funcionamento do organismo humano e criar drogas para curá-los. Os ratos, agora, são exemplares.

ilucirio@abril.com.br

Algo mais

Ratos vivem em média dois anos e são reconhecidos pela sua resistência. Podem sobreviver mais de 2 minutos sob a água sem respirar. Devoram qualquer coisa. São capazes de mastigar até concreto. Nunca podem parar de roer porque seus dentes incisivos estão sempre crescendo.

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Cada vez mais próximo do homem

Os roedores estão nos laboratórios há dois séculos. Foi na última década que sua participação mudou de figura. Com o avanço da engenharia genética, ganharam qualidades antes só cobradas dos humanos, como fidelidade e esperteza (veja quadro abaixo). O interesse dessas pesquisas é desvendar como o organismo do homem funciona. Quando Joe Tsien inseriu o gene da esperteza em Doogie (veja no quadro à direita), estava tentando entender o funcionamento do cérebro humano. “Se for possível desenvolver uma proteína que imite a produzida por esse gene, teremos um medicamento para tratar disfunções de memória”, diz o neurologista Tim Bliss, do Instituto Nacional de Pesquisa Médica, em Londres. “Isso deve levar cerca de uma década”, prevê ele.

Camundongos são moldes genéticos úteis. Para aproveitá-los bem, é preciso decifrar seus próprios genes. “Existem dezenas de laboratórios empenhados em mapear o genoma desse animal”, diz a bióloga Silvia Maria Massironi, da Universidade de São Paulo. “E não me espantaria se ficasse pronto antes do humano”, diz ela.

Mas é lógico que nem tudo o que se aplica aos roedores vale para os homens. Na década de 60, ensaios com ratos que inalaram fumaça de cigarro foram usados para sustentar que o fumo não oferecia risco aos pulmões. Só se fossem os deles. As conseqüências fatais do consumo pelos humanos provaram o tamanho do equívoco.

Rato magro, homem gordo

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Experimentos mais recentes somaram argumentos aos que ressaltam a desigualdade. Em 1995, um rato gordinho e outro esbelto ficaram famosos. Ambos tinham um defeito no gene chamado Ob, que controla a produção do hormônio leptina, regulador da fome. Portanto os dois deveriam ter um apetite fora do normal, tornando-se obesos. Mas um deles recebeu doses orais do hormônio e emagreceu. Nasceu aí a esperança de se criar uma leptina artificial que acabasse com a obesidade. A droga não foi aprovada até hoje porque nos humanos esse hormônio parece ter um papel diferente, ainda não explicado. Mesmo com essas desvantagens, os ratos são a ponta das pesquisas. Para que você possa tomar um novo remédio, o efeito da droga é observado primeiro neles e depois em outros animais maiores, até que comecem os testes clínicos com humanos. “Estudos com ratos são um instrumento poderosíssimo sem o qual seria impossível chegar ao estado atual de desenvolvimento da Medicina”, afirma o biólogo molecular Eduardo Kriger, do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Por isso, nada parece abalar a confiança dos cientistas nos companheiros roedores. Essa confiança foi tão longe que ratos já emprestam seus testículos até para ajudar a gerar seres humanos, para horror de muita gente. Em março passado, em Roma, o ginecologista italiano Severino Antinori usou o órgão sexual desses animais para amadurecer espermatozóides de quatro homens, cujos organismos não eram capazes de fazê-lo. Depois de três meses no corpo do animal, as células foram retiradas e, por meio de uma fertilização artificial, nasceram quatro crianças saudáveis.

Bonitos, leais e poderosos

Experiências genéticas criaram ratos com qualidades de fazer inveja aos humanos.

Marido fiel

O camundongo dá no pé logo depois do sexo. Mas o pesquisador Larry Young, da Universidade Emory (EUA), inseriu em um grupo deles um gene de um parente, o rato da pradaria, um pai dedicado. O rato transgênico virou chefe de família exemplar.

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Tranqüilos

O animal mais lento desenvolvido na Universidade de Evaston (EUA) tem tempo de sobra. O dia de um rato – da hora em que acorda até quando vai dormir –geralmente dura 23,5 horas. O desse mutante tem 27 horas.

Visionário

Mamíferos só enxergam a faixa de cores que vai do vermelho ao violeta. O rato desenvolvido pela Universidade de Washington enxerga também as radiações ultravioleta.

Encasacado

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Genes que levam à produção da substância beta-catenina transformaram outro ratinho comum em uma bola de pêlos. Ela ordena a formação de novos folículos pilosos. O experimento foi feito na Universidade de Chicago (EUA). Cauteloso Cuidado nunca é demais para o mutante desenvolvido na Universidade de Zurique, na Suíça. Colocado em locais altos e sem proteção, ele se move somente o necessário. Para que correr riscos à toa?

Anoréxico

Pesquisadores do Laboratório Johnson, em Massachusetts, descobriram um gene que ordena a produção do hormônio MCH, que dispara a sensação de fome. Bastou mudar um detalhe no código genético do camundongo e ele perdeu o apetite e emagreceu.

Longevo

Juventude prolongada é a promessa da pesquisa realizada na Universidade de Wisconsin (EUA) pelo brasileiro Tomas Prolla. Ele quer criar orelhudos programados para viver mais tempo.

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Cérebro de dar inveja

Dose extra de genes criou rato mais inteligente e com boa memória.

Como costuma acontecer em ciência, o pesquisador Joe Tsien, da Universidade de Princeton, não sabia o que estava criando quando começou a estudar o gene chamado NR2B. Ele pretendia fazer um knock-out, ou seja, a desativação de um determinado tipo de gene. O NR2B é responsável pela formação de uma proteína que serve como receptor de sinais químicos nos neurônios. Desligando esse gene, ele criou um camundongo com pouca memória.

Foi aí que teve um estalo e decidiu fazer o inverso: criou uma linhagem de roedores com cópias extras do gene. Queria saber se seria capaz de incrementar a capacidade cerebral do animal. Assim surgiu a linhagem Doogie. “Vários testes de aprendizado e de memória foram aplicados. Concluímos que os transgênicos se saíram melhor que seus parceiros selvagens em todos eles”, disse Tsien à SUPER. “Portanto, o estudo demonstrou que o NR2B é uma chave genética no controle da aprendizagem”, diz ele.

Camundongo com super QI

Veja como Doogie provou ser mais arguto que seus companheiros não-mutantes.

O explorador

Doogie foi colocado em um ambiente onde havia dois objetos com formas diferentes. Ele teve 5 minutos para explorar cada um deles.

Nado sincronizado

Doogie foi colocado em uma piscina com a água turva, da qual não se via o fundo. Em um dos cantos havia uma plataforma em que podia se apoiar para sair. Enquanto os ratos normais só aprendiam sua localização depois da sexta tentativa, ele foi capaz de achá-la logo na terceira.

Olho vivo

Um dos objetos foi trocado. O bicho passou rapidamente pelo conhecido e gastou mais tempo com o novo. Sinal de que se lembrava do anterior.

O que o homem tem a ver com o rato

Não basta dar aos humanos, para melhorar sua inteligência, o gene que tornou o roedor esperto.

Nem mesmo entre os cientistas há consenso sobre até que ponto um único gene pode influenciar a saúde ou a personalidade de um indivíduo. Conhecer o gene que aumenta a capacidade de raciocínio dos ratos não significa poder criar humanos supercapazes. Primeiro, porque inteligência para bichos e homens significa coisas diferentes. “Defino inteligência como a habilidade para resolver problemas”, diz Joe Tsien, criador de Doogie. “Isso vale para os dois, mas é claro que a inteligência animal não pode ser comparada ao extraordinário intelecto humano.” Em segundo lugar, é muito provável que haja vários genes, e não apenas um, envolvido no processo de raciocínio. “Não acredito que eles sejam capazes de ditar nosso comportamento de modo que não tenhamos livre escolha”, diz o geneticista Larry Young, da Universidade Emory (EUA), que desenvolveu o rato devotado à cria.

“A genética é só o começo da história”, concorda o biólogo molecular Eduardo Kriger, do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Depois dela vem a análise do funcionamento de toda a complicada maquinaria humana.” A pesquisa de Tsien – e outras que alteram características comportamentais – terá uma aplicação muito mais imediata. Com ela, será possível desenvolver drogas que ajudem a resolver problemas mais práticos, como o mal de Alzheimer.

Uma coleção de moléstias

Ratos modificados para já nascerem doentes servem de modelo para testar drogas.

Deprimidos

Ratos com desequilíbrio nos neurotransmissores cerebrais são imprescindíveis para o teste de remédios que atuam no sistema nervoso central.

Cardíacos

Uma deficiência nas válvulas do coração é útil para testar medicamentos que regulem a ação do músculo cardíaco.

Pelados

Os que nascem sem a cobertura de pêlos são úteis para o teste de cosméticos. Outros, enrugados, funcionam como modelo para estudos sobre envelhecimento.

Diabéticos

Um pâncreas defeituoso leva à não produção de insulina. É um bom molde para testar drogas que estimulem o funcionamento do órgão.

Fracotes

Alguns nascem com o sistema imunológico desligado. São bastante usados para entender melhor a rejeição nos transplantes de órgãos.

Doloridos

Há vários animais engenheirados que apresentam inflamações como artrite.

Hipertensos

Defeitos genéticos provocam um desequilíbrio na produção da angiotensina, que controla a contrição dos vasos. Se houver excesso, o bicho sofrerá de pressão alta.

Resistentes

Há roedores criados para que seu organismo não responda a certas drogas. É possível, assim, testar como se dá a resistência em humanos.

Sob encomenda e entregue em domicílio

Para se tornar um super-rato é preciso estar no lugar certo na hora certa, além de sorte. Depende só dos cientistas definir se o seu bicho transgênico terá vantagens sobre os companheiros não-mutantes ou se vai ganhar um gene para adoecer. Para que algumas doenças sejam mais bem compreendidas e para que se possa testar medicamentos, o ideal é ter um animal exatamente com o mal a ser estudado (veja abaixo). Por isso, estão disponíveis variedades com as mais diferentes moléstias. Há institutos e empresas, a maioria nos Estados Unidos, que “fabricam” e vendem ratos transgênicos doentes.

Foi assim que o patologista brasileiro Fábio Daumas Nunes, da Universidade de São Paulo, conseguiu o rato de que precisava para levar adiante a sua pesquisa. “Eu queria exemplares da linhagem Twist”, conta Nunes. O camundongo tem uma deformação no crânio provocada por um gene defeituoso. Três fêmeas e dois machos foram encomendados ao Instituto Jackson, o maior desse tipo nos Estados Unidos. “Em poucas semanas os camundongos chegaram de avião numa gaiola, com água e ração”, descreve Nunes. Cada casal custou cerca de 300 dólares.

Assim como o Instituto Jackson, há empresas que comercializam animais mutantes. O pesquisador cria uma variedade nova e negocia o seu licenciamento com esses laboratórios, que passam a ser responsáveis pela criação e distribuição dos animais. “Enviamos mais de 2 000 unidades por mês”, disse à SUPER Donna Gulezian, do Laboratório Taconic, em Nova York. Existem institutos que criam o camundongo sob encomenda, como o DNX Transgênicos, em Nova Jersey (EUA). O cientista isola um gene, manda uma amostra para os “fabricantes” e espera o seu transgênico chegar via aérea.

Animais desperdiçados

O problema é que, com a fabricação de transgênicos, aumentou muito o número de animais sacrificados. Para produzir uma variedade nova de mutante, os geneticistas pegam células e inserem nelas, ou desativam, um gene. As células são colocadas dentro de óvulos fecundados e espera-se que o novo animal venha ao mundo com as características desejadas. Apenas entre 1% e 10% incorporam o gene. Os demais, sem utilidade científica, são mortos.

Esse desperdício fatal já desencadeou uma série de protestos de entidades que procuram estabelecer parâmetros para o uso de animais em testes de laboratório. No mês passado, o Terceiro Congresso Mundial sobre Alternativas ao Uso de Animais, na Inglaterra, tomou duas decisões: comprometeu-se a criar métodos mais eficientes de inserção de genes para diminuir o número de animais descartados e a desenvolver novos tipos de experimentos que não requeiram testes em seres vivos, como simulações de computador.

O mais provável, no entanto, é que os roedores ainda povoem os laboratórios por décadas. Sem eles não é possível entender processos biológicos complicados, como a formação de um câncer. Outros Doogies serão criados, talvez mais espertos que o desenvolvido por Joe Tsien. Com a ajuda dos super-ratos, é possível que o homem chegue um dia a ter algumas de suas tão invejadas características.

Bons companheiros

Os ratos não foram escolhidos pelos cientistas ao acaso. Eles apresentam vantagens.

Genes parecidos

Tanto o rato quanto o homem são mamíferos. Por isso, o funcionamento do organismo dos dois é parecido. Cerca de 95% do seu código genético é igual.

Economia de espaço

São dóceis e fáceis de ser manuseados. Além disso, ocupam pouco espaço. Em 1 metro quadrado cabe mais de uma dezena.

Resultados rápidos

Nascem mais de dez ratinhos de uma única vez e a gestação é curta – cerca de vinte dias. Em apenas um ano, é possível ter quatro a cinco gerações para se observarem as mutações.

O porteiro do neurônio

Uma dose extra da substância produzida pelo gene poderia melhorar a memória.

1. Porta aberta

O gene NR2B – usado para turbinar o rato Doogie – tem a receita para a produção de uma proteína, a NMDA, que abre a porta dos neurônios para a entrada de sinais vindos de outras células.

2. Passagem fechada

Com o envelhecimento, a porta da célula se torna menos elástica e o canal fica aberto por um tempo mais curto. Assim, a passagem de sinais elétricos torna-se complicada.

3. Nova fechadura

Drogas que imitam a proteína aumentariam a duração de abertura do canal da célula, criando terapias para quem tem problemas de memória, como o mal de Alzheimer.

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