Papo animal: as estratégias brilhantes que os bichos usam para conversar
Macacos criam palavras para batizar predadores, enquanto os golfinhos se chamam pelo nome. A ciência avança para decifrar a comunicação no mundo animal.
Texto: Luisa Costa e Maria Clara Rossini | Ilustração: Ana Toyoda | Design: Natalia Sayuri Lara | Edição: Alexandre Versignassi
Depois de passar o dia atrás de sustento, o sujeito volta para casa e comunica: “Encontrei comida. Existe uma fonte de alimento a 1,7 quilômetro daqui. Para chegar lá, é só ir sentido Leste, seguindo um ângulo de 52 graus em relação ao Sol”. Sem mapa, a família encontra o banquete e volta para casa de barriga cheia.
Conversas assim rolam todos os dias entre as abelhas. Os artrópodes alados não usam números para traduzir distâncias e localizações, mas transmitem mensagens com esse grau de precisão. A informação fica codificada em um zigue-zague feito pelo inseto que encontrou néctar. Quanto maior o tempo do rebolado, mais distante está a fonte. A direção depende de para onde a abelha aponta – o ângulo entre o teto da colmeia e a direção do zigue-zague é o mesmo que liga o Sol, a colmeia e a comida.
A tradução dessa dança é a obra-prima do biólogo Karl von Frisch, que dedicou a vida a estudar o comportamento de insetos. Por conta do achado, levou o Nobel de Medicina em 1973 (que às vezes reconhece feitos da biologia). Desde então, pesquisadores têm descoberto formas cada vez mais complexas de comunicação entre todos os seres vivos.
Sim, porque comunicação é algo mais amplo do que a fala e a escrita – por ora, exclusividades do Homo sapiens. Comunicação é algo que ocorre quando um indivíduo, de qualquer espécie, emite um sinal que muda o comportamento de outro. E, como já deu para perceber, o sinal não precisa ser necessariamente vocal. Os pesquisadores em comunicação animal dividem-na formalmente em quatro tipos: química, visual, tátil e sonora.
Vamos conhecer algumas delas, a começar pelo primeiro tipo de comunicação nos 3,5 bilhões de anos da história da vida na Terra: a química.
Feromônios a mil
A vida começou na água, assim como a comunicação. Os primeiros organismos unicelulares poderiam eventualmente secretar substâncias químicas no ambiente, como quem não quer nada. Se outros seres tivessem mecanismos para detectar essas moléculas e “entender” que elas significavam a presença de outro ser, a comunicação estava formada.
Era assim há bilhões de anos. Segue assim hoje. Bactérias trocam mensagens químicas entre si para monitorar sua densidade populacional e coordenar comportamentos conjuntos. É o caso da A. fischeri. Ela percebe se está em quantidade suficiente para ativar sua bioluminescência e fazer seu hospedeiro, a lula havaiana, brilhar. A luz serve para atrair parceiros sexuais – nisso, a A. fischeri se reproduz junto com a lula. Esperta.
Esse tipo de troca química evoluiu entre vegetais também. Existe um sistema de comunicação entre as raízes. Os pés de milho competem para ver quem cresce mais rápido. Se as folhas de uma planta jovem começam a roçar em uma adulta, o espécime mais velho libera uma substância pela raiz. O broto capta o sinal químico e passa a crescer mais rápido ainda, para superar a rival. Os pinheiros são mais amigáveis: quando as raízes de duas árvores começam a se aproximar, elas param de crescer para não invadir o espaço da outra.
A comunicação química também é comum entre insetos sociais. Eles possuem compostos químicos na própria pele, chamados hidrocarbonetos cuticulares. Essas substâncias são ligeiramente diferentes entre si, e cada uma indica a identidade da formiga: quem é macho ou, no caso das fêmeas, operária ou rainha. Os insetos sempre se encostam com as antenas para saber quem é quem.
Nós, mamíferos, também fazemos esse tipo de comunicação. O seu nariz é uma antena que capta informações químicas do ambiente. Um mestre nessa arte é o rinoceronte-branco, que usa o próprio cocô como feed de Facebook.
Eles fazem o número 2 no mesmo lugar, transformando o local em um hub de notícias. A primeira coisa que um rinoceronte de fora faz quando chega em um grupo é cheirar as fezes dos outros, para ficar sabendo das novidades – qual macho manda no território ou com qual fêmea ele pode ter uma chance.
Também há casos em que a comunicação química alia-se à troca de informações visuais. É o que vamos ver agora.
Olha quem fala
Você costuma conversar com duas pessoas no WhatsApp ao mesmo tempo, sobre assuntos completamente diferentes? A lula-de-recifes-do-caribe também. Ela ajusta sua pigmentação para se camuflar de predadores – e também aproveita a habilidade para mudar o padrão da pele de acordo com o que quer falar.
Se um macho quiser enfrentar outro, ele “veste” uma estampa que lembra listras de zebra. Já para cortejar fêmeas, coloca uma faixa vertical ao longo do corpo. E o mais legal: ele ainda consegue dividir esses sinais em dois, mandando uma mensagem para a direita e outra para a esquerda. A espécie pode flertar de um lado e brigar do outro.
A comunicação visual também se manifestou de forma interessante em aves. O exemplo mais notório, você sabe, é o pavão. Não há nenhum motivo prático para a cauda exuberante dos mach0s. Ela, inclusive, deixa o pavão mais vulnerável a predadores – e mesmo assim as fêmeas escolhem parceiros com as penas mais vistosas e coloridas. A principal hipótese sugere que a cauda evoluiu como uma forma de dizer: “Eu tenho saúde e energia de sobra. Tenho tanta que posso até crescer essa cauda inútil – então com certeza vou gerar um filho saudável”.
Do ponto de vista evolutivo, é o que humanos fazem ao comprar roupas caras. Um vestido ou um terno que custem mais do que o seu salário deixam você mais vulnerável à falência (o grande predador do Homo sapiens). Ainda assim, funcionam como chamariz social.
Toca aqui
Os peixes elétricos desenvolveram sua principal habilidade, inicialmente, como um sonar: eles criam um campo elétrico ao seu redor e detectam pequenas variações nele. Por exemplo, se o campo bate em um objeto que não conduz eletricidade, como uma pedra, o peixe sabe que há algo ali. Mais ou menos como os morcegos fazem com os ultrassons.
Os peixes fracamente elétricos não produzem energia o suficiente para matar suas presas – apenas localizá-las. Mas esses volts também servem para bater papo. Cada espécie produz pulsos elétricos em frequência e amplitude específicos, que variam de acordo com o sexo e idade do peixe. Aí já viu: eles usam isso para dar match. Se um peixe encontrar um membro da mesma espécie, mas do sexo oposto (pela assinatura dos sinais elétricos do outro), ele saberá que pode investir no acasalamento.
Os ratos-toupeira-pelados, da África, também se comunicam pelo toque. Eles vivem em túneis estreitos, o que dificulta a comunicação por olfato, visão ou audição. O sentido que sobrou, então, foi o tato. Esses animais batem a cabeça no topo dos túneis em ritmos específicos, dependendo do que querem dizer.
Pesquisadores da Universidade da Boêmia do Sul, na República Tcheca, colocaram os bichinhos em túneis artificiais e fizeram o teste: quando os animais batem a cabeça em um ritmo lento, estão dizendo que não querem ser incomodados. Já o ritmo acelerado expressa territorialidade – quem é que manda no túnel. Um algoritmo identificou os autores específicos dos batuques rápidos em 70% das vezes, indicando que talvez eles signifiquem não só posse, mas também a identidade do animal.
Não dá para cravar que os roedores tenham uma “identidade individual”. Pode ser que cada um tenha seu jeito de bater a cabeça e pronto. Em animais complexos é diferente.
É bem aceito entre biólogos que os golfinhos-roaz (mesma espécie do Flipper) possuem “apitos de assinatura”, comparáveis aos nomes humanos. Eles desenvolvem um som específico com poucos meses de vida e passam a usá-lo para transmitir sua identidade. E então copiam os dos outros para se dirigir a indivíduos específicos da turma – em outras palavras, chamar pelo nome. Com isso chegamos ao último e talvez mais complexo tipo de comunicação: a sonora.
Chama no privado
Cada espécie ouve em um espectro diferente de frequência. Humanos detectam ondas sonoras entre 20 Hertz e 20 mil Hz. Ondas abaixo disso são chamadas de infrassons; acima, ultrassons. Não conseguimos ouvir nem um nem outro. Chimpanzés são ainda piores para frequências mais graves, abaixo de 250 Hz. Mas, na outra ponta, ouvem até 33 mil Hz. Cães ficam entre 65 Hz e 45 mil Hz. Golfinhos, entre 75 Hz e 150 mil Hz.
Algumas espécies tiram proveito dessas diferenças para terem chats privados – emitindo sons em frequências que outros animais não captam. Elefantes, ainda que particularmente barulhentos, conversam em infrassons de 10 Hz. Isso porque as ondas de baixa frequência viajam mais longe na atmosfera que as de alta frequência. Graças a elas, os elefantes transmitem mensagens para ouvintes a até 10 quilômetros de distância – praticamente uma forma de telecomunicação.
Já os társios usam ultrassons para se diferenciar dos barulhos da floresta e passar despercebidos pelos predadores. Até 2012, acreditava-se que esses animais não emitiam som algum. Eles foram descobertos quando cientistas tentaram ouvi-los com um detector de ultrassons de morcegos, cuja banda de audição vai de 1 mil Hz a 200 mil Hz. Isso faz dos társios os únicos primatas conhecidos a se comunicarem assim – o que provavelmente serve para alertar sobre ameaças por perto.
Fala que eu te escuto
Primatas mais complexos não se contentam em avisar que há um predador nas redondezas, mas também qual é o predador. Os macacos vervet (entre outras espécies) possuem chamados específicos para tipos de animais diferentes: águias, cobras ou leopardos, por exemplo. Essa é uma vantagem e tanto, já que os macacos podem subir em árvores se ouvirem a “palavra” de um predador que rasteja, ou se esconder em buracos para fugir de um predador que voa.
Até pássaros se aproveitam disso, em especial o calau: “Se você toca o chamado que os macacos usam para se referir aos leopardos, os calaus só ignoram, porque vivem em locais altos. Mas se toca o som que os macacos usam para águias, aí eles ficam agitados e começam a dar seus próprios alarmes. Até os pássaros, então, entendem a conversa dos macacos”, diz Klaus Zuberbuhler, professor da Universidade de St. Andrews.
Entre um chamado e outro, também há espaço para mentiras. Quando um macaco-prego encontra um ovo na floresta, ele pode optar por emitir um alerta falso, indicando a presença de uma cobra que na verdade não está lá. Os outros macacos se escondem, e o trapaceiro aproveita para roubar o ovo e almoçar sem precisar dividir a refeição.
A diferenciação de predadores não é exclusividade de animais complexos. Os cães-da-pradaria (que, apesar do nome, são da família dos esquilos) também têm chamados específicos para alertar sobre diferentes ameaças.
Não só. Eles inventam sons novos quando avistam potenciais predadores que nunca tinham visto antes – como humanos. Experimentos feitos pela Northern Arizona University, com a ajuda de Inteligência Artificial (IA), mostraram que a espécie pode usar sons diferentes para indicar pessoas de camisa azul ou vermelha, por exemplo. O mesmo vale para humanos altos ou baixos, magros ou gordos.
Falando baleiês
Por mais intrincados que sejam os sistemas de comunicação animal, linguistas e biólogos argumentam que nenhum deles possui linguagem de fato. Para isso, eles precisariam de algumas coisas que nós temos: um sistema de sinais que podem ser combinados para formar novas ideias; uma série de regras (gramática) que ensina a organizar esses sinais; além da habilidade de falar sobre coisas abstratas, como o passado e o futuro.
Mas uma espécie tem potencial para mudar essa concepção. As baleias cachalotes se comunicam em “cliques”, sons que parecem um estalar de dedos feitos em sequência. Eles são separados por intervalos de tempo distintos, de forma que se assemelham a um código morse. Essas sequências de cliques são chamadas “codas”.
Esse sistema de comunicação talvez seja um tipo complexo de linguagem. O problema é decifrá-la. Sabemos que eles possuem significados diferentes, como acontece no caso dos outros mamíferos que vimos aqui, e que também podem identificar indivíduos. Mais: uma pesquisa de 2011 descobriu que um mesmo coda é pronunciado de maneira diferente dependendo da parte do mundo, como se fossem sotaques (os sons produzidos pelas baleias da República Dominicana, por exemplo, não são ouvidos em nenhum outro lugar).
O Projeto Ceti, lançado em 2020, almeja traduzir a comunicação das cachalotes. Os codas podem ser colocados juntos para formar significado? Existem regras para isso, como na gramática? Para descobrir, eles passarão os próximos cinco anos coletando vocalizações e analisando o comportamento das baleias. Depois, uma Inteligência Artificial irá tentar decifrar os significados dos sinais e então, talvez, tentar se comunicar de volta.
Nos últimos anos, a tecnologia tem ajudado a decifrar um mundo de bate–papo animal com uma complexidade inimaginável até então – a exemplo dos ratos-toupeiras, cães da pradaria e baleias cachalote. A bióloga Silvia Nishida, especialista no assunto, acredita que é só o começo: “A ponta do iceberg está começando a aparecer. Ainda vamos nos surpreender nos próximos anos”.
Fontes: Daniel Pessoa, pesquisador em ecologia sensorial na Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Marcelo Segall, pesquisador em bioacústica na Universidade Federal do Rio de Janeiro; Silvia Nishida, pesquisadora em comportamento animal da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.