Peso-pesado quase a nocaute: rinoceronte em extinção
Cercado pela civilização e perseguido pelos caçadores de chifres, o rinoceronte depende dos mais sofisticados recursos tecnológicos para escapar da extinção.
Marcelo Affini
Há somente trinta anos,havia na África cerca de 70 000 rinocerontes-negros. Hoje, eles não passam de 2 500, ou seja: nas últimas três décadas, foram mortos, em média, 2 250 espécimes por ano. Não é exagero dizer, portanto, que o rinoceronte-negro pode desaparecer em pouco tempo. Daí para a extinção seria um pequeno passo, e a perda, inestimável. O negro não é a única espécie existente: há mais duas na África e três na Ásia. Mas, no total, elas somam parcos 15 000 exemplares, em condições tão precárias quanto as do negro.
Em outras palavras, embora estejam entre os mais antigos mamíferos do planeta — uma raridade na vasta arca de seres vivos criados pela evolução —, os rinocerontes só continuarão a existir com a ajuda crescente dos homens. Durante milhões de anos, eles puderam se dar ao luxo de ser um dos mais pacatos bichos da floresta. “São muito caseiros”, diz o biólogo espanhol, naturalizado brasileiro, Cástor Cartelle.
“Se o ambiente for favorável e o homem permitir, um rinoceronte passa os seus 50 anos de vida sem nunca sair de um mesmo lugar.”
Especializado em Paleontologia Animal e professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Cartelle está aqui desde os 20 anos e se diz apaixonado pelas coisas brasileiras. O que não o impediu de direcionar sua curiosidade justamente para os rinocerontes — que já existiram no mundo todo, menos aqui na América do Sul e na Oceania. E o motivo, acredita Cartelle, é aquela mesma calma, o fato de os rinocerontes não mudarem muito de lugar. Corpulentos, menores apenas que os elefantes, eles têm visão muito fraca, guiando-se principalmente pelo olfato, apuradíssimo, e pelos sons. O cheiro é fundamental, por exemplo, no acasalamento, quando o macho capta no ar o rastro odorífico das fêmeas no cio. Torna-se, então, muito agressivo, atacando até os demais membros da família. A aproximaçãode qualquer outro macho, nesse momento, dá briga na certa.
Uma briga dessas quase sempre deixa ferimentos, alguns deles mortais. E é com estrondo equivalente, embora em clima bem diverso, que ocorre o acasalamento, em que o macho se empina e apóia as patas dianteiras sobre o lombo da fêmea. Não deve ser muito fácil para ela já que alguns dons-juans pesam 4 toneladas.Por isso mesmo, o ato sexual mostra o quanto vale ter uma pele duríssima, que chega a ter 6 centímetros de espessura, e protege a fêmea de eventuais excessos amorosos. No entanto, essa não é a função principal da couraça típica dos rinocerontes. Ela serve de proteção contra os caninos dos predadores e pode ser lisa, com pêlos dispersos, fato de que poucas pessoas se dão conta, geralmente. O modelo mais conhecido é o das grandes placas, que parecem chumbadas entre si, como nas armaduras medievais. Mas não são placas separadas. Cartelle esclarece que elas são meras dobras, embora bem acentuadas, no couro do animal. “Da mesma forma que há dobras nas perninhas de uma criança recém-nascida.” Seja como for, a couraça foi responsável pelo mito dos rinocerontes como feras terríveis — algo que definitivamente não são. Tímidos e desconfiados, têm um comportamento que mais se aproxima ao dos bois: o de quietos herbívoros, vivendo num rebanho que é, de fato, uma grande família.
São agressivos apenas quando o macho de uma família estranha ameaça o território de outro macho, ou quando são deliberadamente provocados. Esse é o recurso utilizado pelos diretores de cinema para filmar cenas que sugiram os perigos na selva, os quais, como se vê, nem sempre são justificados. A verdade é que os rinocerontes muito raramente atacam, sejam pessoas ou outros animais. Pode-se dizer que pagam para não entrar numa briga: fazem todo tipo de fanfarronada para intimidar o possível oponente, e assim demovê-lo da luta. A encenação inclui sopros fortes pela boca e pelas narinas, um estardalhaço sonoro ampliado pelo furioso raspar dos cascos no chão.
Mas é tudo bravata. Depois de uma corrida direta para cima do adversário, o rinoceronte pára. Mesmo porque, a essa altura, já não há adversário à frente. Se esse tipo de recepção assusta, imagine-se o terror que seria um encontro com o baluquitério, um antepassado dos atuais rinocerontes. O maior mamífero a pisar o solo terrestre em todos os tempos, ele tinha nada menos que 5 metros de altura e pesava 30 toneladas (o mesmo que a atual baleia-azul). Destituído de chifres, viveu no Oligoceno, entre 36 milhões e 25 milhões de anos atrás, quando Ásia e América do Norte ainda eram um único continente.
Monstros como o baluquitério surgiram de um ancestral bem mais antigo, que teria vivido há mais de 60 milhões de anos. Dessa linhagem de animais descendem tanto os rinocerontes, como também as antas, e mais tarde, os cavalos e as zebras. Todos eles são hoje agrupados na chamada ordem dos perissodáctilos, termo que significa, literalmente, “número ímpar de dedos no pé” . Segundo Cartelle, os cavalos e as zebras são membros mais recentes e as antas estão mais próximas da origem — daquele ancestral que fundou a ordem dos perissodáctilos. Os rinocerontes, explica o paleontólogo, seriam uma especialização, uma espécie de ramo novo no tronco original das antas, também chamadas tapires.
“As antas atuais continuam com o mesmo aspecto dos tapires que existiram anteriormente, sem muitas diferenças essenciais.” Pode-se dizer que assim continuaria por muito maistempo, se não fosse um fato muito recente na vasta história da vida — o aparecimento da civilização, nos últimos 10 000 anos. Nesse período comparativamente curto, os rinocerontes foram levados à beira da extinção.
A caça esportiva — o prazer de abater uma criatura tão grande e portentosa — destruiu uma parte da população de rinocerontes. Mas não foi, nem de longe, o principal motivo. A destruição dos habitats naturais, com certeza, teve influência muito mais devastadora. Animais precisam de grandes espaços, um bem que a civilização torna cada vez mais escasso. No caso do rinoceronte, porém, houve uma agravante: a crendice, muito popular no Oriente, de que o pó de seus chifres teria propriedades medicinais ou milagrosas. A ciência já provou que nada há de verdade nessa idéia. Mas não convenceu: o pó de chifre é o produto natural mais caro do mundo, chegando a custar, em dólar, cinco vezes mais que o ouro. Transformados no objeto do desejo de centenas de milhares de pessoas, 1 quilo do pó de chifre de rinoceronte chega a custar 60 000 dólares, em Taiwan.
Segundo o WWF — Fundo Mundial para a Natureza, organização não-governamental, com sede na Suíça —, somente na China são processados 700 quilos desse pó por ano. Isso representa chifres de aproximadamente 40 000 rinocerontes. Como a matança ocorre principalmente para a extração de chifres, o WWF está empenhado num projeto pioneiro, que já começa a dar os primeirosresultados. Batizado de Operação Stronghold, tem o objetivo de evitar que esses animais virem pó, pois, ao pé da letra, é mais ou menos isso o que tem acontecido.
Dispondo de 250 000 dólares anuais, a organização ambientalista, em alguns casos, instala transmissores de rádio nos animais para poder acompanhá-los, via satélite. Pode assim protegê-los, controlando as populações que ainda vivem nas reservas da África e da Ásia. Mas esse tipo de esquema é sofisticados e caro, devido aos equipamentos usados, inclusive helicópteros. Os cientistas acreditam que valem a pena. Um recurso bem mais simples utilizado pelos técnicos da WWF para acabar com a matança é o da extração dos chifres. Destituído de seu valioso apêndice, o animal não corre risco de ser perseguido. Os chifres logo voltam a crescer, pois são aglomerados de fios rígidos, feitos de um material que mais se assemelha às unhas e aos cabelos, do que aos chifres dos bovinos, por exemplo. Por isso, é preciso cortá-los regularmente.
Um tipo de providência completamente diferente — talvez mais eficaz — é responsabilizar os diversos governos africanos e asiáticos pela caça. No final do ano passado, por exemplo, o governo americano ameaçou cortar o comércio com os países em que há tráfico ilegal de espécies ameaçadas de extinção. A iniciativa americana já começa a surtir efeito. Com medo de retaliações, autoridades das nações ligadas ao consumo do pó de chifres de rinocerontes, como China e Taiwan, adotaram medidas para inibir esse tipo de comércio. O grande mufti, líder espiritual do Iêmen, por exemplo, publicou um edital decretando que quem mata rinocerontes para vender os cornos “atua contra a vontade de Alá”. Medidas como esta alimentam as poucas esperanças de se evitar o triste fim de uma espécie.
No caso do rinoceronte, as expectativas não são grandes porque o tamanho do animal amplia as dificuldades de sobrevivência. Ele precisa de pelo menos dezoito meses de gestação para pôr um único filhote no mundo. A próxima fase é em parte preenchida pela amamentação — que dura dois anos, embora uma semana depois do nascimento o bebê rinoceronte já comece a pastar. O resto do tempo, a mãe utiliza para proteger o rebento, dando-lhe condições de enfrentar a vida posterior. Somente aos cinco anos ele será considerado adulto. E, se for macho, será expulso do grupo pelo próprio pai, que não admite concorrência na família quando surge o momento de um novo acasalamento. Em resumo, podendo pesar até 60 quilos, a nova cria só nasce quatro anos depois de seu irmão mais velho. Esse longo período entre uma cria e a seguinte é a principal causa do baixo nível de reprodução da espécie. A matança desenfreada, portanto, faz piorar uma situa-ção naturalmente difícil — num mundo onde o homem ocupa espaço cada vez maior. Nascido em um planeta selvagem e relativamente vazio, o rinoceronte é uma contradição viva entre imensas plantações, estradas, cidades, aeroportos e tudo o mais que a civilização criou.
Para saber mais:
Um santuário para os rinocerontes
(SUPER número 5, ano 3)
A grande família dos elefantes
(SUPER número 1, ano 4)
A multinacional da ecologia
(SUPER número 4, ano 5)
A vida dentro da cratera
(SUPER número 4, ano 8)
Os cinco sobreviventes
Eram mais de trinta espécies, no passado. Das cinco atuais, a mais abundante e estudada é a do rinoceronte-branco africano. Os de Java são os mais atingidos pela caça, enquanto o da Índia goza de boa saúde e vem se tornando mais numeroso. Mais primitivo e menor, o de Sumatra tem pêlos na couraça
Rinoceronte-de-java
(Rhinoceros sondaicus )
Asiático, 60-70 exemplares. Tem várias placas, 3,2 metros de comprimento e 1,6 tonelada. Um só chifre (30 cm). É o mamífero mais raro e ameaçado do planeta
Rinoceronte-negro
(Diceros bicornis)
Do leste africano, 2 500 exemplares. Tem 3,75 metros e pesa de 1 a 1,8 tonelada. Couraça sem divisões. Dois cornos, o maior com 1,10 metro
Rinoceronte-branco
(Ceratotherium simun)
Africano, 5 800 exemplares. Tem 4,5 metros, pesa 4 toneladas. Dois cornos, o maior de até 2 metros. Poucas placas na couraça. Há uma subespécie no Zaire quase extinta
Rinoceronte-de-sumatra
(Dicermocerus sumatrensis)
Sudeste da Ásia, 500 exemplares.Tem 2,8 metros e 1 tonelada. Único asiático com dois cornos.Tem pêlos sobre a pele e número médio de placas
Rinoceronte-da-índia
(Rhinoceros unicornis)
Sul do Himalaia, norte da Índia, Bangladesh e Malásia. Restam 1 900 exemplares. Mede 4,2 metros e pesa 4 toneladas. Tem muitas placas e só um chifre (60 cm)