Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Redomas de calor

O concreto, o asfalto e a poluição nas grandes cidades impedem a evaporação e elevam a temperatura no centro dos aglomerados urbanos até 9 graus acima do que se mede em bairros mais afastados.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 18 dez 2009, 22h00

Gisela Heymann

A cena é clássica: depois de uma semana agitada, muito trabalho e calor insuportável, nada como um fim de semana em contato com a natureza. Barraca, saco de dormir, comidas enlatadas, equipamento de pescaria, máquina fotográfica e roupa apropriada: short e camiseta. À noite, porém, um frio inesperado, que não estava nas previsões meteorológicas do jornal da sexta-feira, ameaça o humor dos campistas brasileiros. Ao mesmo tempo, a 8 000 quilômetros de distância, uma elegante senhora parisiense, equipada para enfrentar o inverno europeu, passa boa parte de seu dia no transporte público, aquecido a 23°C, enrolada num espesso casaco de lã. “Isto é o que chamo de perda total de noção de clima”, explica a climatóloga Gisele Escourou, professora da Universidade Paris – Sorbonne e pesquisadora do CNRS (Center National pour la Recherche Scientifique).

Gisele Escourou passou os últimos vinte anos estudando as mudanças de clima e de temperatura entre os limites do perímetro urbano, e suas conseqüências sobre o batalhão de habitantes que se espreme neste ínfimo pedaço de território mundial. De fato, nada menos que 50% da população do planeta habita hoje um centro urbano. No século XXI, as estimativas saltam para 80%. Cerca de 70% dos brasileiros e 80% dos franceses já moram nas cidades grandes. Mais de 80% dos belgas são citadinos, assim como os norte-americanos, japoneses, israelenses, chilenos e australianos. Para abrigar este heróico exército, toneladas de concreto foram superpostas, milhares de motores funcionam ininterruptamente e toda a parafernália do progresso avança de forma inexorável.
“Criamos microclimas que são cada vez mais diferentes do espaço externo às grandes cidades”, explica Gisèle. “Hoje constatamos que Paris, por exemplo, tem um inverno ameno, onde não há mais neve, os dias de neblina são raros e a temperatura chega a ser 14° mais elevada que na periferia. Criamos uma ilha de calor no centro das aglomerações urbanas. Ela é mais espessa no centro e mais rala à medida que se distancia dele.”

O fenômeno ocorre praticamente em todos os cantos do globo, exceto nas cidades onde há muita água, como é o caso de Phnom Penh, capital do Camboja. Não é difícil entender o porquê desta distorção climática. “Tudo está intimamente ligado à falta de espaços verdes e à impermeabilização do solo”, diz a climatóloga. No campo, a água da chuva se estoca no chão, formando uma espécie de reserva para a evaporação, enquanto nas cidades a água da chuva é escoada para os rios. Boa parte da energia dos raios solares que incidem sobre a paisagem do campo é utilizada no processo de evaporação.

Para evaporar 1 grama de água são necessárias 600 calorias. O que sobra é pouco para aquecer o ambiente, já no segundo caso, toda energia solar é utilizada no aquecimento, pois não há água para evaporar. Mesmo quando não chove, a relação se mantém. É que as folhas das árvores transpiram com o calor, criando líquido que utilizaria energia. “Nas cidades, não há árvores e por isso não há nenhum tipo de evaporação”, diz Gisèle. Outros fatores contribuem à formação deste microclima: as habitações, geralmente pouco adaptadas ao clima local, guardam o calor recebido durante o dia para refleti-lo à noite. Os equipamentos de climatização e todos os outros aparelhos consumidores de energia aquecem o ambiente e não se pode negligenciar a poluição causada pelos automóveis. Estima-se que essa energia corresponda ao dobro da emitida pelo Sol.

“A linha de calor que criamos sobre as cidades influencia, por sua vez, o clima de toda a região à sua volta”, adverte a professora. As nuvens que trazem chuvas muitas vezes se separam em dois blocos, quando se aproximam das cidades. Ambos passam ao largo da “carapaça” de calor, sobem, se resfriam e caem sob forma de abundantes chuvas na periferia das cidades. Se o calor é mais forte, a radiação solar diminui, pois as diversas partículas suspensas na atmosfera, como a poeira e o aerossol, mais abundantes nas grandes cidades, absorvem parte desta radiação e difundem outra parte em todas as direções. A radiação de curto comprimento, como os raios, ultravioleta, por exemplo, são ainda mais absorvidos pelas partículas de aerossol. Isso explica a palidez dos habitantes das grandes cidades, principalmente nos meses mais frios.

Continua após a publicidade

No inverno, quando os raios solares estão mais inclinados em relação ao horizonte, atravessam uma camada mais espessa da atmosfera e, por isto, encontram mais partículas e mais aerossol. A luz se dispersa e cria o efeito de palidez. Porém, mais grave que a aparência sombria da população urbana é a sua falta de adaptação às mudanças climáticas. “Geralmente vivemos num microclima”, constata Gisèle. É que, nos países quentes, as pessoas estão sempre em locais refrigerados, enquanto nos de clima temperado há aquecedores por toda parte. A casa, o trabalho, a escola, o transporte e o comércio mantêm, durante todo o ano uma temperatura quase constante. Essa dupla inadaptação ao clima original de cada região faz com que as pessoas percam a noção de frio e calor.

Esse fenômeno pode ser traduzido em números. Quando o calor aumenta brutalmente, sobretudo à noite, e as defesas do organismo estão enfraquecidas, cresce também a taxa de mortalidade nas grandes cidades. A onda de calor que atingiu a Inglaterra em 1976, por exemplo, aumentou em 10% o número de mortes por doenças cardíacas. Na cidade de Marselha, no sul da França, o aumento da temperatura ocorrido em julho de 1983 provocou um salto na mortalidade: de 39,6 – a média por dia para este período – subiu para 88.

Se, depois de três ou quatro dias, o calor ou o frio demasiado persistem, o índice de mortalidade abaixa, porque o organismo se ajusta à nova condição climática.
A equipe de Gisèle Escourou chegou ainda a uma conclusão polêmica – o aquecimento das grandes cidades, devido à “ilha de calor” criada pelo homem, pode estar mascarando os dados sobre o efeito estufa. Causado pela emissão excessiva de poluentes, principalmente o dióxido de carbono, o efeito estufa elevaria a temperatura do planeta e traria conseqüências drásticas para seus habitantes, como o derretimento do gelo em regiões polares, aumentando o nível dos oceanos e inundando algumas cidades costeiras. Estima-se que a temperatura média da superfície do globo possa aumentar de 1,5 a 4,5°C até o ano 2050. para Escourou, o efeito estufa como fenômeno global pode estar sendo tratado de forma um tanto exagerada.

De fato, a temperatura da Terra aumentou 0,7°C nos últimos 100 anos. Essa mudança, no entanto, não é homogênea. As grandes cidades apresentam hoje temperaturas mais elevaas, e tendem a se aquecer ainda mais. Outras regiões, porém, registram baixas em seus termômetros. É o caso da Ilha de Ouessant, no noroeste da França. Por não sofrer os efeitos da urbanização a temperatura diminuiu 0,4°C nos últimos dez anos, enquanto em Paris houve um aumento de 1,5°C. Isto significa que o efeito estufa pode estar ocorrendo apenas nos centros urbanos. Se for este o caso, não se trata apenas de um fenômeno ambiental. Seria a própria urbanização – uma mistura de poluição, habitações mal adaptadas, consumo de energia, falta de evaporação e de ventos – a causadora da “carapaça de calor” responsável pelas variações climáticas. “Ainda não estudamos a questão a fundo, mas talvez a catástrofe não seja tão grande como estamos prevendo”, diz Gisèle.

“Os dados do efeito estufa não são tão gerais assim”, rebate o especialista Hervé Lê Treut, do Laboratório de Meteorologia Dinâmica da renomada ENS (École Normale Supérieure) de Paris. “Não podemos esquecer que as temperaturas para o estudo do efeito estufa são normalmente recolhidas nos oceanos, assim como nas cidades. Tentamos isentar esses dados dos efeitos da urbanização, embora nem sempre seja tão fácil.” As duas teorias se cruzam, no entanto, num mesmo ponto: a ação do homem. Poluição, urbanização ou ambos não passarão incólumes ao crivo da natureza.

Continua após a publicidade

São Paulo: sem neve nem garoa

No dia 21 de agosto de 1989, imagens de satélites geradas no INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos – revelaram uma situação curiosa: enquanto no centro de São Paulo, Santo Amaro e zonas industriais os termômetros registravam 31°, no Morumbi e no Parque do Ibirapuera, a temperatura não ultrapassava os 22°. Essa diferença de 9 graus se deve às ilha de calor que dominam o centro da cidade e os lugares de concentração industrial, bem mais poluídos também. Já no Morumbi e Ibirapuera com áreas verdes, as temperaturas são mais baixas. Ao mesmo tempo, nas zonas periféricas o clima continua o mesmo, embora influenciado pelas mudanças ocorridas no centro, a 30 quilômetros de distância.

As distorções climáticas que ocorrem na cidade ao longo dos anos podem ser medidas não apenas pela elevação da temperatura como também pelo aumento na quantidade de chuvas que cresceu entre 9% e 10%. A garoa, marca registrada de São Paulo, não existe mais. É que o aumento da temperatura fez com que diminuísse a umidade relativa do ar e com isso a famosa garoa sumiu. “Os invernos se tornaram menos rigorosos. Relatórios do Observatório Meteorológico de São Paulo, localizado na Avenida Paulista onde hoje se ergue o MASP, dão conta de que em 27 de julho de 1918 nevou na capital”, relata o geógrafo José Bueno Conti, que há trinta anos lenciona na Universidade de São Paulo.
“Os ventos nas áreas urbanas também se alteraram bastante. No inicío do século predominavam os que vinham do sudeste e eles se orientavam os que vinham do sudeste e eles se orientavam pelos vales dos rios Tiête e Pinheiros. Hoje, com os edifícios, os ventos de superfície (de até 20 metros acima do solo) são barrados por uma espécie de paredão formado por essas construções”, explica o professor Conti. Não é só a capital paulista que sofre com as ilhas de calor. Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre já são identificadas assim, pois também tiveram suas temperaturas médias e seus níveis de chuvas elevados e pagam o preço da urbanização e do desmatamento.

Para saber mais

Ilha de calor nas metrópoloes, o exemplo de São Paulo, Magda Adelaide Lombardo, Editora Hucitec, São Paulo, 1985

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.