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Yes, nós temos urânio

O Chefe do programa nuclear brasileiro diz que a polêmica mundial gerada pela inauguraçãoda primeira fábrica brasileira de enriquecimento de urânio não passa de paranóia pós-11/9. Será?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 Maio 2006, 22h00

Marcelo Bortoloti

Há um país desenvolvendo um polêmico programa nuclear – que inclui restrições às inspeções técnicas da ONU. Preocupada com a possibilidade de estar diante de uma nova potência atômica, a comunidade internacional acusa o governo de violar tratados de desarmamento. A onda de críticas inclui reportagem numa das mais respeitadas revistas científicas do mundo afirmando que, em breve, o país terá 6 bombas atômicas. Se você pensou no Irã, esqueça. O centro dessa controvérsia é o Brasil mesmo – e ela só faz crescer desde maio, quando a primeira fábrica brasileira de enriquecimento de urânio foi inaugurada em Resende, estado do Rio.

“É tudo paranóia mundial pós-11 de Setembro”, garante Odair Dias Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), órgão que detém o monopólio da exploração de materiais radioativos no país. Professor de física da UFRJ, Odair é o responsável por orientar o governo sobre as estratégias a serem seguidas na área nuclear. Ele não só defende que o país invista mais em energia nuclear, como acredita estar aí a melhor opção para a crise elétrica brasileira. Então prepare-se. O barulho está só começando.

P. Alguns importantes especialistas em energia nuclear acusam o Brasil de se aproveitar da pressão sobre o Irã para desenvolver, na surdina, um programa atômico ilegal. Afinal, por que há tanta polêmica em torno do projeto nuclear brasileiro?

R. Não estamos fazendo nada na surdina. Esses comentários críticos ao Brasil partiram de grupos que refletem uma certa paranóia de que qualquer país que domine a tecnologia é uma ameaça para a humanidade. Há também uma disputa econômica, porque o mercado de energia é extremamente promissor.

É possível comparar o programa nuclear do Brasil com o do Irã?

O Irã não está sendo perseguido por ter um programa nuclear, mas sim porque omitiu alguns procedimentos à Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). E, ao fazer isso, deixou de cumprir o que está estabelecido no Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que é um tratado internacional que garante a redução e a não-proliferação de armas nucleares. Qualquer país pode desenvolver a tecnologia nuclear para energia elétrica. E o Brasil não teve absolutamente qualquer tipo de questão internacional, nem da parte da agência nem da parte de qualquer outro país. Existe uma série de regras que têm que ser cumpridas e nós sempre cumprimos à risca.

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Por que, então, o Brasil não assinou o protocolo adicional do TNP, que permite aos inspetores internacionais acesso irrestrito e sem aviso prévio às instalações nucleares?

Na verdade, ainda não decidimos se vamos assinar ou não – inclusive porque custaria muito dinheiro. O TNP já inclui visitas avisadas e não avisadas. O que o protocolo adicional faz é mudar o enfoque, porque atualmente a inspeção é feita a partir do que o país declara. Ou seja, se baseia na confiança internacional nas informações divulgadas. O protocolo adicional se tornou importante depois do 11 de Setembro e impõe garantias para o caso de você querer esconder alguma coisa. Os detalhes são muito técnicos, mas a diferença principal é essa.

Quais motivos o Brasil tem para restringir o acesso de inspetores às centrífugas da fábrica de Resende?

Antes de Resende, nós já havíamos feito uma fábrica piloto no interior de São Paulo. Ela foi construída de uma maneira que as centrífugas ficavam guardadas dentro de armários para proteger a propriedade tecnológica. Quando desenhamos a fábrica de Resende, simplesmente transportamos para lá esse modelo. Mas no meio do processo aconteceu o 11 de Setembro, que mudou os parâmetros internacionais de segurança, e a Aiea passou a não aceitar mais os procedimentos de salvaguarda que já havíamos combinado. No final, eles tiveram todo o acesso que julgaram necessário.

Não é exagerada essa preocupação com espionagem industrial por parte de técnicos da Aiea, entidade que, por princípio, não possui interesses comerciais?

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Não existe área da tecnologia em que as pessoas não protejam seus segredos. Não temos suspeitas sobre a agência, o problema são as pessoas. A tecnologia brasileira tem uma eficiência maior que a de outros países, sobretudo no que diz respeito à resistência do equipamento. A maior parte das centrífugas possui um eixo no qual elas são apoiadas. E, como giram em velocidade supersônica, o desgaste desse eixo é enorme. A nossa não fica apoiada num eixo, fica levitando num campo magnético. É um sistema de dupla levitação, que reduz o atrito e dá uma resistência muito maior para o equipamento. Na área nuclear, não é possível registrar patentes, inclusive porque para isso seria necessário divulgar uma série de informações que poderiam ser usadas para fins não pacíficos. Então temos de nos proteger.

Há denúncias, também, de que o Brasil estaria pesquisando o enriquecimento de urânio a porcentagens maiores que 5% – a utilizada em usinas energéticas. É verdade?

As pessoas dizem o que querem. A revista Science saiu com um artigo que, entre outras coisas, afirmava que o Brasil teria capacidade de produzir 6 bombas atômicas por ano ou qualquer coisa do gênero. É um absurdo, nós mandamos cartas para as pessoas e para a própria revista perguntando como havia sido calculado esse número. Eles sequer sabem quanto urânio a gente produz. Isso é especulação mal-intencionada. Eu posso afirmar que o Brasil não estão produzindo urânio enriquecido além de 5%.

Mas um ex-inspetor da ONU, David Albright, afirmou ter trabalhado com você, no Brasil, em um projeto para fabricar centrífugas que enriquecem urânio a mais que 5%.

Eu conheço o David e ele nunca fez afirmações desse tipo. Inclusive, negou algumas falas atribuídas a ele pela Science. David é um cara responsável que jamais diria isso sem conhecer todo o sistema.

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Você defende que o Brasil pesquise o desenvolvimento da bomba atômica?

Claro que não. Acho que todo país tem direito de investir em defesa. Os EUA, por exemplo, são os que mais investem e desenvolvem armamentos. Acontece que essa não é a vocação do Brasil. Mesmo porque, num mundo em que a guerra é toda baseada em alta tecnologia, não adianta você ter um revolverzinho de brinquedo – é burrice pura.

Nos últimos meses, ambientalistas historicamente avessos à energia nuclear, como o fundador do Greenpeace Patrick Moore, passaram a defender o uso dessa fonte como parte do combate ao aquecimento global. A que você atribui essa mudança de postura?

Acho que a tecnologia nuclear avançou. Hoje os reatores estão mais seguros do que no passado e o tratamento de rejeitos passou a ser mais eficiente. A energia nuclear é limpa, só emite vapor d’água para a atmosfera. Não contribui para o aquecimento global. Hoje sabemos que até a energia hidrelétrica, até bem pouco tempo atrás considerada limpa, provoca emissões de gás quando inunda campos.

Mas há o problema do lixo radioativo, que é tóxico e não pode ser eliminado.

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É verdade, mas também não existe maneira de eliminar garrafas pet, que provocam uma quantidade de lixo absurda. A civilização humana produz muito lixo. A área nuclear também, mas pelo menos guarda tudo. Respondemos por toda grama de material produzido. E já existem várias pesquisas procurando soluções para o problema, como a reutilização do lixo atômico ou então o bombardeamento do núcleo radioativo para que ele deixe de emitir radiação. Já conhecemos a parte física desses processos, só não sabemos fazê-los em escala. Mas creio que em 30 anos seremos capazes de reverter todo o lixo produzido.

O Brasil já teve um sério acidente radioativo, com césio 137 em Goiás. Hoje o país tem segurança para implementar um programa nuclear?

As usinas são as menos perigosas entre as instalações que lidam com radiação. O sistema mundial é tão detalhado e preciso que é muito difícil acontecer acidentes. Com 440 usinas instaladas no mundo, até hoje só aconteceram dois acidentes significativos. E, em matéria de vítimas, apenas Chernobyl.

A energia nuclear é economicamente viável para o Brasil?

As melhores opções de energia que temos são a hidrelétrica e a nuclear. Há alguns anos, o preço do petróleo era baixo e a energia nuclear, cara. Hoje não. Ela é extremamente competitiva no custo – incluindo o valor da instalação da usina. E é preciso lembrar que o país tem poucas reservas de gás, as energias eólica e solar servem mais para sítios e casas do que para aglomerados urbanos, e não há mais grandes quedas de água disponíveis para a instalação de hidrelétricas.

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Odair Dias Gonçalves

• Preside a Comissão Nacional de Energia Nuclear, órgão que orienta o governo sobre a política nuclear brasileira.

• É formado em física pela USP. Fez mestrado e doutorado na UFRJ e pós-doutorado no Hahn Meitner Institut, da Alemanha.

• Seu escritório fica na entrada da Urca, um dos bairros mais charmosos do Rio. O vizinho de frente é o Instituto Pinel, hospício famoso na cidade.

• É um dos autores do livro Drogas: É Legal?, que aborda temas como a descriminalização da maconha.

• Tem 54 anos e é do signo de gêmeos.

• Não gosta de nenhum tipo de arma. Nem mesmo das atômicas.

O caso contra o Brasil

A desconfiança mundial recaiu sobre o programa nuclear brasileiro em 2004. Naquele ano, inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), órgão ligado à ONU, foram proibidos de ter acesso ilimitado às instalações da fábrica de enriquecimento de urânio, então em construção, em Resende. A alegação oficial foi de que o país não mostraria suas centrífugas por temer ser vítima de espionagem industrial. Pouco meses depois , a revista Science esquentou a polêmica ao afirmar que o Brasil tinha tecnologia para produzir 6 ogivas nucleares por ano. Para a revista, a postura brasileira de enfrentar a Aiea estava abrindo precedentes para que qualquer outro país evitasse as inspeções.

As inspeções existem porque, em tese, a mesma tecnologia que produz eletricidade pode ser utilizada na fabricação de bombas atômicas. O urânio que abastece usinas elétricas tem enriquecimento de 5%. O que alimenta bombas atômicas, 90%. Cabe à Aiea checar como cada país processa seu urânio – e como signatário do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, o Brasil se compromete a permitir a presença dos técnicos da Aiea em suas instalações.

Em fevereiro de 2006, após dois anos de negociações, a Aiea aprovou o funcionamento da fábrica de Resende. Mas as críticas ao Brasil não cessaram. Um antigo inspetor da ONU, David Albright, afirmou já ter trabalhado em pesquisas brasileiras para enriquecimento de urânio com fins não revelados. Outro especialista estrangeiro, Marshall Eakin, disse que o Brasil está se beneficiando da perseguição internacional ao Irã, e desenvolve a mesma tecnologia na surdina.

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