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Aleph Zero

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Um cara que se perdeu na Wikipedia – e nunca mais encontrou a saída – desenterra curiosidades por trás do noticiário de ciência. Editor da Super, 2021 AAAS | EurekAlert! International Science Reporter Fellow. Três vezes vencedor do prêmio IMPA de Jornalismo.

O Ozzy dos meninos, o Ozzy dos adultos

O Príncipe das Trevas largou a escola com quinze anos. Foi encanador, presidiário e trabalhou até em um matadouro. Detrás do longo manto preto, John Osbourne é um herói sem capa da classe trabalhadora, que ensinou gerações de desajustados a carregar a estranheza.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
23 jul 2025, 19h00

Essa é a semana oficial para recontar memórias do cara aí na foto. Das minhas, a mais antiga é de um show estrelado que rolou em Londres em 2002, comemorando os cinquenta anos do reinado de Elizabeth 2ª. Meus pais compraram o DVD — na época, as lojas de eletroeletrônicos vendiam essa novidade aos montes. E foram me apresentando os artistas conforme apareciam: Joe Cocker, Eric Clapton, Paul McCartney, Beach Boys, o Queen sem Freddie e até “esse ómi aí que é chato e eu vou pular a música”.

Então, subiram Ozzy Osbourne e Tony Iommi no palco, com looks icônicos que incluíam capas vampirescas de forro vermelho e roupas de couro gasto. Geezer Butler e Bill Ward, que eram o baixista e o baterista originais do Black Sabbath, não estavam lá. Então, Phil Collins e Pino Palladino — um Odisseu do groove, longilíneo e simpático, sem uma gota de heavy ou metal no organismo —, fizeram as honras e tocaram as partes deles.  

Primeira impressão: Ozzy me pareceu um aposentado com a cabeça nas nuvens e um tempo de reação equiparável ao da minha tia avó. Após assistir ao show algumas vezes, comecei a suspeitar que ele tomasse os mesmos calmantes que ela, em doses similares (rs). Por sua vez, Tony era cool, com os óculos de lentes transitions e um cavanhaque catiço. Eu queria que ele fosse da minha família, para dar um up nas festinhas de aniversário monótonas. 

Não suspeitei nem por um instante que Ozzy fosse, de fato, malvadão. Na minha cabeça de oito anos, se o seu baterista é o Phil Collins, você é inofensivo. Afinal, aquele figurão paterno e calvo, que compôs a trilha sonora de Tarzan e uns cinco hits dignos de Alpha FM, não tocaria com um figurante da Sonserina a não ser que o cara fosse realmente um figurante, que tira o look de Drácula quando chega em casa e põe o pijama. (Meu pai confirmou a suspeita: disse até que eu podia ver o Ozzy de pijama, em uma programa da MTV que filmavam dentro da casa dele.)

Para quem curte rock de coração, perguntar sobre o dia em que você conheceu o Ozzy é como perguntar onde você estava no 11 de setembro. Coisa marcante. O que marca, exatamente, varia de pessoa para pessoa. Para mim, foram as legendas em português que algum santo gentilmente pôs no DVD, e deram sentido à letra de “Paranoid”: “Eu penso em coisas o dia todo, mas nada parece me satisfazer. Acho que vou enlouquecer se não encontrar um jeito de me acalmar”, gemia Ozzy em sua voz metálica. 

Era deprê — deprê em um grau clínico comparado ao resto de um setlist que falava basicamente de amor. Eu tinha a profundidade emocional de uma poça d’água, mas já sabia o que era tédio, porque crianças lidam com um montão dele na escola, aos domingos ou durante as férias de verão. Dane-se o amor: esse cabeludo endiabrado entendeu tudo, era dele que eu tinha que gostar. 

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Já para meu parceiro Guilherme, que é fã de metal para valer, o pecado original foi a capa do álbum ao vivo Speak of the Devil (1982), gravado como um cutucão de Ozzy no Sabbath após sua demissão da banda, em 1979. O herói do metal aparece fazendo careta com uma dentadura de plástico de caninos afiados, digna da Fini, enquanto coágulos de sangue falso se derramam sobre os pêlos do peito tatuado. 

Era um gore caricato, performático, que assustou o bebê Gui — mas formou o Gui adulto, que até hoje organiza noites para ver filmes de terror clássicos com outros fãs. É difícil pensar em uma coisa mais Sabbath de se fazer, porque a própria banda nasceu assim.

Nos primeiros anos, eles se chamavam Earth e tocavam com coletes de couro franjudinhos, colares tilintantes, batas com estampas pseudo-indianas e outros apetrechos caros ao line up de Woodstock. O problema é que já havia um conjunto com o mesmo nome, que fazia um pop benquisto pelas rádios. Foi preciso mudar. 

Black Sabbath era o título de um filme de terror de 1963. Quando Butler, o baixista, viu as orelhas de abano aterrorizantes do protagonista Boris Karloff, perguntou aos colegas: “não é estranho que as pessoas paguem para se assustar no cinema?” E foi assim que ele e Ozzy compuseram a faixa “Black Sabbath”, homônima do álbum inaugural: fãs de cinema brincando de adicionar um tempero sinistro à bigorna de blues com sabor de graxa que eles já praticavam. 

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O Sabbath fundou o heavy metal essencialmente sem perceber — e, de início, sem declarar independência estética de suas origens. Até onde a crítica podia ver, com as lentes daquele tempo, eles eram só uma banda de rock psicodélico desgostosa com a vida, que havia abandonado o ideário hippie porque o noticiário no começo dos anos 1970 era traumático demais para alguém acreditar em paz e amor. 

John Michael Osbourne não tinha razão para se deslumbrar com Woodstock. Era o tipo de pessoa para quem seus fãs de classe média atuais dão gorjetas e doam roupas. Cresceu pobre e só estudou até os 15 anos. Foi torneiro mecânico, encanador, operário da construção civil e presidiário. Trabalhava em um matadouro por causa do horário flexível (“quando você terminava o serviço, podia ir para casa, então era melhor que um emprego das 9h às 17h”). 

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Quando o primeiro disco do Sabbath saiu em 1970, gravado com 800 libras e apenas doze horas em um estúdio pouco maior que um banheiro, foi recebido com palavras carinhosas (rs) do crítico-mor Lester Bangs na Rolling Stone

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“No lado industrial do país do Cream, há trabalhadores sem qualificação como os do Black Sabbath, que foi alardeado como uma celebração ritualística de rock da missa satânica ou algo do tipo (…) O álbum inteiro é uma porcaria — apesar dos títulos obscuros das músicas e de algumas letras insanas que soam como Vanilla Fudge prestando homenagem a Aleister Crowley, o álbum não tem nada a ver com espiritualismo, ocultismo ou qualquer outra coisa além de citações rígidas de clichês do Cream.”

Bangs não mente: a música do Sabbath realmente deve algo às guitarras de Clapton no Cream, que tocava acordes gordos com o timbre aveludado e abelhudo de uma Gibson distorcida. Há improvisos longos em que baixo, guitarra e bateria declaram divórcio das normas do bom senso. E as letras não são ocultistas na prática — as menções a bruxas são tão sérias quanto uma partida de Dungeons & Dragons. 

Bangs só não percebeu o mais importante: essa versão dark, proto-geek e anabolizada do blues rock era exatamente o que a cultura pop da época queria (e, em certa medida, ainda quer). 

Às vezes, me pego estarrecido pela ideia de que os membros do Sabbath têm a mesma idade que senhorinhas italianas que cozinham caixas d’água de espaguete na Festa da Achiropita – eles literalmente foram crianças encardidas cresceram brincando nos escombros de prédios bombardeados na 2ª Guerra. Mesmo assim, aqueles quatro caras conseguiram escrever canções que, meio século depois, dão uma boa trilha sonora de filme da Marvel. É um grau assustador de atemporalidade.

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Muito do visual headbanger só veio depois. Foi só no final da década de 1970 que Rob Halford, do Judas Priest, trouxe as peças de couro reluzentes e apertadas das boates gays que frequentava às escondidas, cioso da homofobia. Alice Cooper levava mágicos e ilusionistas em suas turnês; King Diamond foi uma versão dark do Ney Matogrosso, com maquiagem preta-e-branca, shows teatrais e falsetes que fazem o tímpano desejar uma transição de carreira para a vida pacata de um fêmur.

Na mesma época, Lemmy Kilmister, do Motorhead, aproximou o metal da velocidade e desapego do punk. Sua estética, porém, acabaria se estabilizando no look quintessencial do machão roqueiro de meia-idade: chapelões e destilados do velho-oeste, insígnias militares fora de contexto e a vibe etílica antiquada que exala, até hoje, de qualquer bar com uma Harley na porta e barris com rótulos de Jack Daniels. Bem diferente da aura deprê e perdedora do Sabbath, pela qual me apaixonei. 

Ozzy, em suma, não começou a carreira já com a persona de Príncipe das Trevas concebida. Ele se tornou progressivamente mais trevoso conforme incorporou as inovações estéticas e estilísticas do gênero que ajudou a fundar. Sua aparição pública final há algumas semanas, no último show do Sabbath — envolto em preto, sentado em um trono digno de Edgar Allan Poe — foi possível porque seus sucessores construíram um gênero em cima de seu legado, e levaram a estética de Boris Karloff às últimas consequências.

Uns vinte anos depois do fatídico DVD, o Ozzy que ficou para o Bruno adulto — o Ozzy de que eu sempre vou me lembrar com lágrimas nos olhos — é o de um vídeo em que ele conta a um grupo de crianças sobre o dia que ouviu os Beatles pela primeira vez, e decidiu que queria ser músico. “Eu me lembro exatamente o que estava fazendo, andando pela rua com um radinho transistorizado azul no ouvido, e eles começaram a tocar. Aquilo mudou minha vida.”

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Pouco depois, um dos pequenos corre até Ozzy e segura sua mão: “Eu só queria te dizer, porque eu provavelmente nunca mais vou te ver, que você é meu músico favorito do mundo todo.” Emocionado, ele se abaixa e abraça o menino.

Foi um abraço em mim, também. Obrigado por tudo: você foi um dos caras estranhos que me deixou ser estranho em paz. Que me ensinou que a gente se sente triste e sem saída às vezes. Que guerras são ruins e bombas atômicas, uma crueldade idiota. Que fadas podem usar botas se você, por sua vez, usar a coisa certa. Não há treva alguma no Príncipe: ele foi uma das luzes da minha vida, e de tantas outras. Significou, para muita gente, o mesmo que os Beatles significaram para ele.

Vou lá pegar um lenço. 

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