Mentiras sinceras
Mitos científicos espalham-se com mais força do que fatos. Mas a ciência de verdade é sempre mais inspiradora.
Talvez você já tenha visto essa história por aí. Um estudante perguntou à antropóloga Margareth Mead (1901-1978) qual seria o mais antigo sinal de civilização. Ela então deu uma resposta fora da caixa: seria o registro fóssil de um fêmur curado.
Mead explicou que um osso quebrado é sentença de morte para qualquer animal em estado selvagem. Ele vira presa fácil, e morre bem antes de qualquer chance de recuperação. Logo, o fêmur curado significa que um indivíduo recebeu a ajuda de outros para sobreviver. “É aí que a civilização começa”, concluiu.
Um raciocínio bonito, edificante, compartilhável – tanto que circula há anos pelas redes, no mundo todo. Só tem um problema aí: é mentira.
“A história despertou meu ceticismo. E, quanto mais escavei, mais ela pareceu inconsistente”, escreveu o antropólogo filipino Gideon Lasco na revista científica Sapiens, da Universidade de Chicago.
Lasco não encontrou um registro escrito ou em áudio dessa fala de Mead, pois não há. O que existe de fato é a resposta que ela deu a uma pergunta semelhante, numa entrevista que seria publicada no livro Talks with Social Scientists, de 1968. “Quando uma cultura se torna uma civilização?”, perguntaram.
“Olhando para o passado”, Mead disse, “chamamos sociedades de ‘civilizações’ quando elas têm grandes cidades, uma divisão elaborada do trabalho e alguma forma de manter registros. São essas coisas que constroem uma civilização. (…) Em outras palavras, não se trata de uma palavra de aprovação, no sentido ‘esse sujeito não é civilizado’, mas da descrição técnica de um tipo particular de sistema social.”
É isso. Culturas humanas sempre desenvolveram formas de altruísmo. Já a palavra “civilização”, de acordo com a própria Mead, existe para descrever outra coisa, bem mais específica. Caso encerrado.
O que chama mais a atenção, aliás, é justamente o oposto da ideia falsamente atribuída a Margareth Mead: as várias descobertas de que animais também podem apresentar comportamentos antes considerados exclusivos da humanidade.
A bióloga italiana Alessandra Mascaro, por exemplo, detectou uma prática inédita entre grandes macacos. A cientista, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, e seus colegas observaram um grupo de chimpanzés no Gabão por 15 meses, entre 2019 e 2021. Registraram, então, 19 eventos nos quais os primatas “aplicavam” insetos como curativo para feridas. Primeiro, capturavam um inseto voador e matavam; então passavam suavemente o corpo do artrópode na ferida – deles mesmos ou de um companheiro.
Os biólogos não conseguiram avaliar qual era o inseto em questão, muito menos se ele poderia ter alguma ação analgésica ou anti-inflamatória. Mas o ponto é que aquele grupo de chimpanzés adquiriu o costume de “tratar” feridas alheias dessa forma – seja ela eficaz ou não. E o caráter altruísta ali é óbvio.
Ou seja, a ciência de verdade vem mostrando que não somos um animal tão singular. Talvez esse não seja um raciocínio edificante. Mas é certamente mais profundo e inspirador do que as mentiras sinceras que fluem pelas redes.
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