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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"
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A verdadeira origem do Halloween

Tudo começou 2 mil anos atrás, com uma comemoração celta - remodelada pelos romanos, pela Igreja e, bem mais tarde, pelos EUA.

Por Felipe van Deursen
Atualizado em 4 set 2024, 11h15 - Publicado em 28 out 2016, 17h57
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Um motivo milenar para comer e beber

O Ano-Novo dos celtas, dois mil anos atrás, era comemorado em um dia que corresponde, aproximadamente, a 1º de novembro. Para esse povo que habitava o que hoje chamamos de Irlanda, Reino Unido (e também França), o dia marcava o fim do verão e o começo do inverno. Em uma época em que as estações do ano determinavam os ciclos da agricultura com muito menos espaço para intervenções humanas que hoje, e que o sucesso das colheitas definia o tamanho da despensa das pessoas, a data era crucial. Nada mais justo que fosse escolhida para encerrar um ano e começar outro. Era o fim do período solar, vivo e encalorado e o início da longa, fria e morta treva. O inverno chegara.

Para os celtas, na véspera desse dia de mudança, a divisão do plano dos vivos e dos mortos se misturava. À noite de 31 de outubro, desprovida de cancelas fronteiriças entre os que aqui estavam e os que já se foram, eles deram um nome, samhain. No samhain, fantasmas dominavam a terra, destruíam plantações e causavam arruaças. Em contrapartida, a presença deles facilitava o trabalho dos druidas, os sacerdotes celtas, de fazer previsões. Profecias eram um abraço quente e necessário no tenebroso inverno que começava – não muito diferente do apego contemporâneo ao horóscopo todo começo de mês.

Se os druidas previram, não conseguiram evitar a invasão de um povo mais poderoso e violento que os celtas, os romanos. Em 43, o império iniciou o domínio das terras que eles batizariam de Britânia. Nos quatro séculos seguintes, os costumes romanos se misturaram aos celtas. Feralia, uma festa em que Roma celebrava a partida dos mortos, realizada em fins de outubro, naturalmente se aclimatou no norte e deu novas cores ao samhain. Outra festividade incorporada pelos nortenhos celebrava Pomona, deusa dos pomares, cujo símbolo, uma maçã, talvez explique em parte a antiga brincadeira de pegar maçãs com a boca (já a origem do símbolo da abóbora está ligada à lenda de Jack O’Lantern) 

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Pintura de Daniel Maclise mostra brincadeira com maçãs.

As terras dos celtas seguiram como um lugar distante do centro do poder até que o próprio Império Romano se dividiu e, no oeste, foi pulverizado. Em 13 de maio de 609, a Igreja Católica dava as cartas, e o papa de então, Bonifácio IV, oficializou um costume que os antigos cristãos no Oriente já faziam: honrar os mártires. Para deixar claro o recado, o papa pegou um antigo templo romano, o Panteão, e o dedicou àqueles que morreram por Jesus. O templo de todos os deuses romanos passou a ser o templo de todos os mártires.

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Mais tarde, outro papa, Gregório III, expandiu a festividade a todos os santos e mudou a data para 1º de novembro. Em 1000, a Igreja criou mais uma data nessa sequência de festas, e aí o 2 de novembro virou o dia para honrar todos os mortos. A escolha foi estratégica. A ideia é que a nova festividade substituísse o samhain nas ilhas celtas, onde a palavra de Jesus começava a se firmar. Assim, as paradas, fogueiras e fantasias de santos e demônios do samhain acabariam incorporadas por uma celebração semelhante e, mais importante, sancionada por Roma.

Agora, a Igreja tinha um dia para todos os santos e outro para todas as almas, que no Brasil chamamos Dia de Finados. Ambos pegaram, mas o 2 de novembro não eliminou o 31 de outubro, apenas o fez mudar de nome e se adaptar. O Dia de Todos os Santos era chamado, em inglês, de “All-hallows”. A noite da véspera era, portanto, “All-hallows Eve”. O termo mudou com o tempo e acabou virando “Halloween”.

Na segunda metade do século 19, os Estados Unidos, que haviam sido colonizados por cristãos daquelas antigas terras celtas, receberam uma nova leva de imigrantes, especialmente da Irlanda, que sofria, na época, um bocado com uma crise de fome. Os irlandeses levaram na bagagem o ancestral costume do Halloween.

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Ao longo das décadas seguintes, a festa ganhou novos contornos. O gesto de pedir comida ou dinheiro no dia de todas as almas na Inglaterra, em troca de orações para os mortos da família, deu origem ao “gostosuras ou travessuras”. Ao mesmo tempo, o senso de comunidade tirou espaço do medo real de fantasmas. Na virada para o século 20, o Halloween já tinha perdido boa parte do caráter supersticioso. As máscaras e fantasias, que serviam para enganar os espíritos, viraram apenas uma brincadeira para enganar, no máximo, um vizinho desatento. Deixar comida na porta de casa, que servia para afastar os fantasmas do lar, tornou-se uma forma de interação com a comunidade.

Isso nos Estados Unidos. Outros povos comemoram as festividades à sua maneira. No México, o dia dos mortos, tradição anterior à colonização espanhola, ganhou elementos cristãos e segue ainda hoje firme como uma das festas mais famosas do mundo. Austríacos decoram túmulos de entes queridos com lanternas. Filipinos cantam de casa em casa pelas almas do purgatório. Chineses queimam pequenos botes de papel. Brasileiros levam flores ao cemitério, aproveitam o feriadão para pegar trânsito na estrada e, mais recentemente, incorporaram o Halloween americano – algo que não é exclusivo. Até a França, tão protetora da cultura local, começou a adotar a festa da abóbora decorada nos anos 90.

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Apenas mais um dia normal
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Halloween, Dia de Todos os Santos e Dia de Finados são a evolução de eventos realizados por diversos povos, que aproveitavam a mudança de estação para lembrar a brevidade da vida e honrar os mortos. Por mais que a origem tenha se desvanecido na história, nós não somos tão diferentes quanto os celtas que faziam festa quando o calor dava lugar ao frio. Até começo de horário de verão é uma boa desculpa do calendário para beber.

O saci-pererê retratado por Monteiro Lobato em 1917 era chifrudo e tinha dentes pontudos para sugar o sangue de cavalos. Lendas mais antigas do curupira falam que ele não tinha ânus. A mula-sem-cabeça original tinha cascos afiados. Os três assassinavam quem cruzasse seu caminho. A cuca era uma velha horripilante que capturava crianças, nada daquela bruxa-jacaré trapalhona do Sítio do Picapau Amarelo. O Negrinho do Pastoreio era um pobre escravo, amarrado ensanguentado em um formigueiro. Um folclore rico, sanguinário e mais carismático do que imaginamos.

O Dia do Saci nasceu na década passada como uma resposta à crescente popularização do Halloween no Brasil. Mas o Halloween, diferentemente do que muito se propaga, não é uma festa unicamente americana e pagã. É uma mistureba com elementos dos antigos celtas, de romanos, de irlandeses e ingleses da Idade Média e dos primeiros séculos de tradição cristã.

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Se o Halloween é o resultado de 2 mil anos de adaptações e evoluções, está mais que na hora de o saci maluco invadir a festa do vampiro importado. O Halloween marcava a mudança de estações. E nisso um Halloween brasileiro levaria vantagem. Não é o inverno gélido e decrépito que bate à porta. É o verão.

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Dia do saci ou Halloween? Por que não os dois?
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