Serra do Mar: entenda os deslizamentos que ocorrem no litoral paulista
De Pangeia à cidade de Santos, entenda os processos naturais (e causados pela ação humana) que resultam nos acidentes.
Este é o 29º texto do blog Deriva Continental
Se você acompanha este blog, já está familiarizado com a Teoria da Deriva Continental, proposta em 1913 por Alfred Wegener. Também já deve ter lido por aqui sobre a “Pangeia”, um supercontinente que existiu há milhões de anos, resultado da junção entre Gondwana e Laurásia. Juntos, eles passaram a constituir as partes meridional e setentrional da Pangeia, respectivamente.
Neste texto, partiremos da Pangeia – mais especificamente do Gondwana e de seu processo de separação, ou rifteamento. Você deve se lembrar (seja da escola ou aqui do blog) que os supercontinentes passaram por processos de aproximação e separação durante centenas de milhares de anos, conhecidos como Ciclos de Wilson. A conformação atual do continente sul-americano e do Oceano Atlântico ocorreu por meio desse processo.
A partir do Gondwana, é possível fazer uma longa viagem pelo tempo geológico e histórico, percorrendo essa travessia temporal para chegarmos onde hoje se encontra o Brasil. Neste texto, ficaremos em uma região compreendida entre a Serra do Mar e a Bacia de Santos, mais precisamente no litoral do estado de São Paulo. Contudo, temos que levar em conta que, no tempo da Pangeia, “aqui não era aqui” – ou melhor, São Paulo ainda não era São Paulo.
O sudeste do Brasil, notadamente a região litorânea que se estende do Rio de Janeiro até Santa Catarina, é caracterizado por inúmeras serras paralelas à costa litoral, conhecidas, em seu conjunto, como Serra do Mar. Suas elevações médias ficam entre 1.000 e 1.500 metros de altitude, com as máximas podendo atingir 2.200 metros. A paisagem é marcada por uma topografia de montanhas altas, escarpadas, com declives acentuados, cobertas pela exuberância e biodiversidade da Mata Atlântica (ou ao menos do que restou dela), ao lado de planícies litorâneas, as praias.
O geólogo Fernando Flávio Marques de Almeida definiu, em 1976, o que se consolidou chamar Sistema de Riftes da Serra do Mar, formado em várias etapas durante a separação das placas sul-americana e africana. O termo rifte é usado para indicar áreas onde a crosta da Terra sofreu processos de abertura. Esse processo de abertura das placas tectônicas forma “fendas” que permitem, inclusive, a ascensão de material magmático, formando derrames de lavas vulcânicas.
Lembremos que as placas tectônicas “flutuam” sobre o magma. Esse magma expelido se solidifica na medida em que se resfria, dando origem, por sua vez, às rochas magmáticas. As escarpas da Serra do Mar são compostas, em sua origem, por rochas magmáticas expelidas durante o rifteamento das placas.
Foi nesse processo de deriva continental que se deram os principais fenômenos de formação da Serra do Mar. Assim, diferente do que geralmente ocorre na formação de cadeias montanhosas da Terra (como a Cordilheira dos Andes e os Himalaias, em que a paisagem é formada pela aproximação das placas), a Serra do Mar se formou em um evento distensivo, de separação de placas.
Estudos geológicos têm mostrado que a movimentação tectônica que deu origem a essa paisagem afetou um mosaico de blocos falhados (segmentos de relevos soerguidos e rebaixados). Chamamos essas formas de blocos falhados de horst (regiões soerguidas) e graben (regiões rebaixadas).
Nessa paisagem geológica, observamos zonas preferenciais de erosão (horstes) e de sedimentação (grabens). Os sedimentos (materiais inconsolidados) são formados nas regiões altas pelo intemperismo (desgaste) das rochas e transportados até as regiões baixas em um processo chamado erosão. A deposição desses sedimentos acontece nas regiões rebaixadas, chamadas zonas de sedimentação. A morfologia da paisagem controla os fluxos de escoamento da água pluvial (das chuvas) e a dinâmica fluvial (dos rios) – afinal, pela gravidade, a água sempre desce do ponto mais alto para o mais baixo. Essa compreensão é fundamental para entendermos onde as áreas de risco a deslizamentos se encontram – nas encostas ou no sopé das serras – e porque elas são fortemente influenciadas pelos eventos hidrológicos e pluviométricos.
Conforme aponta o geólogo Álvaro dos Santos, diferentemente do que se pensou por muito tempo, a Serra do Mar não se originou em sua posição atual. Essa posição foi alcançada por meio do recuo erosivo de um degrau tectônico formado por reativação da Falha de Santos, a dezenas de quilômetros a leste da posição atual – isto, há cerca de 65 milhões de anos, quando ocorreram grandes eventos tectônicos regionais.
Parece confuso, então vamos fazer uma retrospectiva: lá atrás, após o soerguimento dessa região da placa sul-americana, provocado por um evento distensivo de deriva continental que formou um conjunto de blocos falhados (horstes e grabens), os horstes soerguidos foram erodidos, originando bacias sedimentares à leste e à oeste que preencheram os grabens.
Milhares de anos depois (mais precisamente há 65 milhões de anos), um amplo evento tectônico regional deu origem, entre outras formações tectônicas, à Serra da Mantiqueira (vizinha da Serra do Mar). Além disso, essa movimentação de grande magnitude provocou a reativação do supramencionado “degrau tectônico”. Ele nada mais é que uma falha – a Falha de Santos, neste caso –, uma fenda pela qual os blocos por ela divididos se movimentam paralelamente ao longo do que a geologia nomeia de plano de falha.
O soerguimento do bloco a oeste da Falha de Santos e o abatimento do bloco à leste formaram uma proto-serra, uma Serra do Mar primitiva dezenas de quilômetros a leste da atual, em direção à linha de costa. Essa Serra do Mar primitiva recuou para a posição atual por meio de ações erosivas do ambiente.
Formaram-se, também, ilhas onde os grabens foram recobertos pela água do mar, como as ilhas de Santos e de São Sebastião. Muita coisa aconteceu entre esse processo, que durou milhares de anos, e o estágio atual em que a Serra do Mar se encontra.
Os marcadores do tempo geológico e do tempo histórico caminham em compassos bem distintos. Ainda que nós, homo sapiens, sejamos uma peça pequena desse quebra cabeça que é o desenrolar da história da Terra, causamos mudanças significativas e irreversíveis, tanto na paisagem geológica quanto na ecológica. Por conta dessas transformações, cunhou-se o conceito de Antropoceno (do grego anthropos, que significa humano, e kainos, que significa novo).
Grande parte (se não a maioria) dessas mudanças antrópicas trouxeram perdas significativas na biodiversidade ecossistêmica e consequentes impactos socioambientais. Incrivelmente, muitas delas foram planejadas, como a urbanização do litoral paulista que está por trás da construção social de desastres “naturais”.
A Serra do Mar exerce grande influência no balanço hídrico regional, cuja dinâmica afeta as ocupações humanas e não humanas que habitam essas paisagens. As chuvas, formadas pela umidade que vem do oceano, concentram-se entre a região litorânea e o conjunto de serras de elevada altitude que funciona como um anteparo. A esse tipo de evento dá-se o nome de chuvas orográficas. Essa influência do relevo nos fenômenos climáticos evidencia como a geosfera e a atmosfera são sistemas interligados. A ação humana, que implanta formas diversas de uso e ocupação do solo, torna essas regiões mais vulneráveis à ação dos eventos pluviométricos, e, consequentemente, aos desastres deflagrados pela ação hidrológica – cada vez mais intensos e frequentes por conta das mudanças climáticas.
O resgate histórico do modo de ocupação do litoral paulista, com suas belas praias próximas às serras, nos traz algumas reflexões sobre como os desastres naturais não são tão naturais assim. Muitos trechos da Serra do Mar são classificados pelos órgãos públicos competentes como áreas de risco a movimentos de massa (sedimentos, solo, rochas, detritos). Para a classificação do risco, levamos em conta dois fatores: perigo ou ameaça (geologia do terreno, tipo de solo, declividade, morfologia etc.) e vulnerabilidade (condições de infraestrutura da habitação e do seu entorno, condições sociais e econômicas dos habitantes, entre outras).
Em outras palavras, o risco é a probabilidade de ocorrência, em uma área suscetível, de consequências negativas causadas por fenômenos naturais, como os movimentos de massa, deflagrados por eventos hidrológicos e climáticos. Contudo, a magnitude do risco e do desastre é diretamente proporcional à vulnerabilidade social e ambiental da população exposta.
Afirma-se que os movimentos de massa são deflagrados pela hidrologia e pelo clima – indissociados, aliás – porque a água da chuva, em períodos de pluviosidade intensa e contínua, supersatura o solo, tornando-se um lubrificante natural das partículas e contribuindo para o escorregamento das camadas de material inconsolidado e para o desplacamento de blocos de rocha. A água é um dos principais agentes de intemperismo e erosão da paisagem.
A ação da umidade no solo é bem didática se pensarmos em castelos feitos de areia. É preciso alguma quantidade de água para que haja uma coesão entre as partículas e para que possamos moldar a forma do castelo. Contudo, se colocarmos água demais, a areia vira uma espécie de fluido que escorre quando tentamos moldá-la. Há um ponto de umidade ótima na qual as partículas do solo permanecem coesas; se ultrapassada, a água exerce um efeito contrário, pois é rompida a tensão superficial que existe entre uma molécula de água e outra.
O desmatamento da vegetação também contribui para a ocorrência dos escorregamentos. Uma vez que as árvores auxiliam na infiltração da água das chuvas no solo, colaborando para a recarga dos aquíferos e o balanço hídrico, a presença de vegetação diminui o fluxo e o volume do escoamento superficial – reduzindo, assim, seu efeito erosivo na superfície das encostas, o que potencializaria a ameaça.
Contudo, tendo em vista que o risco pode ser controlado por meio de medidas de mitigação e prevenção, nem todo risco desencadeia um desastre. Essas medidas preventivas podem ser estruturais (obras de contenção de encostas e sistemas de drenagens, por exemplo) e não-estruturais (como planejamento urbano, políticas habitacionais, educação ambiental, entre outras). É importante destacar que um escorregamento em áreas sem ocupação humana pode representar somente um processo de evolução natural do relevo.
Um rio que atinge sua planície de inundação em períodos de cheia ocupa apenas a parte que lhe cabe enquanto corpo hídrico inserido em um processo cíclico. Sem ocupação humana, não há risco. Sem feridos, mortes, perdas ou danos, não há desastre. Desnaturalizar o desastre natural implica na compreensão de que, embora a ameaça seja natural, o risco instalado é socialmente construído, resultado da forma como ocupamos o espaço e modificamos a paisagem.
O litoral paulista onde se insere a cidade de São Sebastião e Bertioga foi profundamente afetado pelo desastre do dia 19 de fevereiro de 2023, marcado pela dinâmica de segregação socioespacial. Até 1980, os núcleos urbanos de Bertioga e São Sebastião eram ocupados por pequenas vilas caiçaras de pescadores que se situavam próximas à orla e afastadas das encostas das serras. Com a construção da BR 101 entre Bertioga e São Sebastião, as comunidades caiçaras foram violentamente expulsas e as praias foram ocupadas por loteamentos fechados voltados à implantação de casas de veraneio para a população de altíssima renda.
Moradias de alto padrão acarretam a valorização da terra urbana, que se expressa no aumento do preço dos aluguéis e dos custos de moradia. Esse fenômeno, conhecido como especulação imobiliária, divide espacialmente quem consegue arcar com o aumento e quem não. A população de classe econômica baixa, sejam os antigos caiçaras, sejam os que vieram trabalhar nas construções, foi expulsa para as áreas suscetíveis aos movimentos de massa das encostas. Dinâmica que se repete em outros territórios do litoral paulista também atravessados pela paisagem geológica da Serra do Mar, como a cidade de Santos, onde ocorreu a épica tragédia do Monte Serrat, em 1928, que levou ao óbito mais de 80 pessoas.
A Geologia Ambiental e a Geologia Urbana, áreas de pesquisa da Geologia, nos fornece instrumentos para uma melhor gestão e redução do risco de desastres a partir da compreensão de como esses terrenos são formados – e, com isso, da sua suscetibilidade aos fenômenos naturais (como movimentos de massa, enxurradas e inundações).
Esse panorama nos evidencia como a Geologia precisa estar cada vez mais alinhada à Geoética, conjunto de princípios que buscam a conscientização sobre a inter-relação entre sociedade e natureza, possibilitando melhores formas de gestão do território. O tempo histórico e o tempo geológico caminham paralelamente. O modo como habitamos o planeta Terra exerce influência sobre os processos naturais; e esses processos, quando atravessados e intensificados pelas nossas ações, podem causar impactos que afetam a sociedade. A natureza cobra a conta, e precisamos estar atentos à forma como mediamos nossa relação com o geossistema.
Referências:
ALMEIDA, Fernando Flávio Marques de; CARNEIRO, Celso Dal Ré. Origem e evolução da Serra do Mar. Brazilian Journal of Geology, v. 28, n. 2, p. 135-150, 1998.
ALMEIDA, Fernando Flávio Marques de. The System of Continental Rifts bordering the Santos Basin, Brazil – Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 48, p. 15-26, 1976.
SANTOS, Álvaro Rodrigues dos. A grande barreira da Serra do Mar: da trilha dos Tupiniquins à Rodovia dos Imigrantes. o Nome da Rosa, 2004.
HASUI, Yociteru et al. (Ed.). Geologia do brasil. 2012.