Bibliotecas e livrarias deveriam ocupar as primeiras páginas dos guias de viagem. Apesar desses manuais terem virado um símbolo dos turistas analógicos, para onde quer que eu viaje tento encontrar um canto cheio de livros. É bacana ver como esses lugares, que a princípio existem pelos mesmos propósitos, conseguem sintetizar a essência do lugar onde se encontram de maneiras tão diversas e encantar turistas apaixonados por livros como eu.
Seguindo a mesma lógica do cão que se parece com o dono, livrarias e bibliotecas também ficam a cara da cidade que as abrigam. Difícil pensar em Buenos Aires sem lembrar da livraria El Ateneo na Avenida Santa Fé. O Real Gabinete Português de Leitura e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro estão encravadas no centro da cidade como lembranças de um passado suntuoso. A dureza concreta da Biblioteca Mário de Andrade contrasta com o Theatro Municipal, inspirado na Ópera de Paris — uma metáfora das contradições de São Paulo. Falando em Paris, a Shakespeare & Co deveria ser parada obrigatória de todo viajante, assim como a Biblioteca Pública de Nova York é para quem passeia por Manhattan.
Biblioteca Pública de Nova York
Você não precisa esperar as próximas férias ou o dia na vida em que for para outro país para visitar um santuário de livros bacana. Se você mora perto de São Paulo ou na capital paulistana, saiba que é vizinho de uma das bibliotecas mais legais do mundo. A Biblioteca de São Paulo, construída onde era a Casa de Detenção Carandiru, foi finalista do prêmio de melhor biblioteca do ano na London Book Fair International Excellence Awards 2018, que aconteceu na última semana. Junto com ela, instituições de Olso (Noruega), Aarhus (Dinamarca) e Riga (Letônia) concorreram ao prêmio — a biblioteca letã foi a vencedora. Assim como as feiras de Frankfurt e de Guadalajara, a feira do livro de Londres é uma das mais respeitadas do mercado editorial.
Essa biblioteca brasileira já nasceu como uma promessa de transformação. Ela foi construída em 2010 no parque da Juventude, antiga área da penitenciária Carandiru, onde também funcionam duas escolas técnicas. Com 400m² projetados como se fosse uma grande livraria, a Biblioteca de São Paulo (BSP) chama a atenção pela arquitetura que coloca o público como foco, e não o acervo, diferente do que acontece nas bibliotecas tradicionais. A BSP é gerenciada pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo em parceria com a organização social SP Leituras, tem um acervo de 45 mil itens e 30 mil sócios.
A metáfora dinâmica do desenho não se restringiu à disposição das estantes: a BSP funciona como um imenso laboratório de boas iniciativas que podem ser adaptadas e reproduzidas nas 800 unidades da rede de bibliotecas públicas do estado. Mais do que estimular a leitura, o objetivo desse grande laboratório é fazer com que as bibliotecas se tornem polos ativos de cultura nas comunidades. Clubes de livros, projetos de contação de histórias para crianças, oficinas de tecnologias para idosos, minicursos de robótica, saraus com jovens, projetos que discutem literatura e gastronomia estão entre os “experimentos” da BSP.
“Ela está focada na pluralidade, e isso tem a ver com a literatura — porque, como diz Cristóvão Tezza, literatura não está a serviço de nada a não ser da liberdade. E biblioteca pública, como um espaço de literatura e educação, tem que ser um espaço livre para que cada um busque o seu espaço rumo ao conhecimento”, diz Pierre André Ruprecht, diretor executivo da SP Leituras, que foi a Londres participar da feira.
A participação da comunidade próxima à Biblioteca de São Paulo é um assunto levado a sério pela instituição. Por lá, um terço das aquisições semanais de livros vêm de sugestões dos sócios (de carteirinha!). Outra particularidade da BSP é o público: a biblioteca atrai pessoas de diferentes idades, gêneros e condições socioeconômicas, ao contrário da maioria das bibliotecas públicas cujo público é formado por pessoas em idade escolar.
Santana, o bairro onde fica a biblioteca, é um local da capital paulistana que concentra muitos albergues para moradores de rua. Com a construção da BSP na região, essas pessoas frequentam a biblioteca e participam das atividades culturais — hoje, eles representam 20% do total de visitantes.
Para concorrerem a melhor biblioteca do ano, as instituições deveriam descrever dois motivos na inscrição da London Book Fair para serem reconhecidas como tal. Ruprecht conta que a BSP destacou os projetos de inclusão para diferentes públicos que podem ser replicados em outras unidades e a revitalização da comunidade onde antes existia a penitenciária. Essa é a primeira edição do prêmio com a categoria “biblioteca do ano”.
“A indicação nos trouxe uma enorme responsabilidade para continuarmos nesse rumo. E também nos deu uma visibilidade que geralmente as bibliotecas públicas não têm. Nos deu voz para discutir o direito que a população tem a bibliotecas públicas de qualidade, e a necessidade de o poder público investir em cultura e prover esse direito ao cidadão”, diz Ruprecht.
Mesmo com um índice de leitura de quatro livros por ano, o Brasil foi o país que mais se destacou na feira londrina. O prêmio, oferecido em parceria com a Associação de Editores do Reino Unido (UK Publishers Association), celebra as melhores iniciativas internacionais — cinco das 17 categorias tinham finalistas brasileiros: editora profissional ou acadêmica (Editora Atheneu); plataforma de audiolivros (Ubook.com); acessibilidade para livros (Fundação Dorina Nowill para Cegos); inovação (TAG Experiências Literárias) e biblioteca do ano (Biblioteca de São Paulo).