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Biosfera das sombras: existe outra árvore da vida convivendo com a nossa?

Alguns biólogos supõem que sim: pode existir vida como não a conhecemos aqui mesmo, na Terra. Mas a hipótese é tão improvável que beira a ficção científica.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h38 - Publicado em 17 Maio 2018, 14h05

Esses dias, lendo Criação, do biólogo Adam Rutherford – um livro bem bacana sobre a origem da vida, que tem tradução em português –, tropecei em um trecho de arrepiar os cabelos: “há um ramo de especulação que propõe algo batizado com um nome um tanto futurista: ‘biosfera das sombras’. Trata-se da ideia de que há na Terra uma segunda árvore da vida (ou mais) não detectada, com características diferentes da única que conhecemos.”

Ousado. O fato de que eu, você e os chimpanzés temos bem mais de 90% do DNA idêntico já é, por si só, impressionante. Mas mais impressionante ainda é que eu, você, um nabo, uma vaca, um grão de arroz, uma bactéria E. coli e uma esponja do mar fomos construídos a partir de moléculas de DNA idênticas. Muda o código que é usado para fabricar cada um, é claro, mas a molécula em que o código está inscrito é a mesma. É como um monte de CDs em uma loja: cada um contém uma música diferente, mas todas essas músicas foram armazenadas em uma mídia igual, usando o mesmo método.

O fato bem estabelecido de que todos os seres vivos conhecidos compartilham um código comum, uma linguagem universal, é um dos alicerces da biologia contemporânea. Para começo de conversa, ele comprova a teoria da evolução: toda a vida na Terra deve sua existência a um único ser microscópico, que há bilhões de anos se ramificou e deu origem a cada planta, fungo, animal e micróbio. É a única maneira razoável de explicar como o complicado mecanismo do DNA está por todos os lados. O dito cujo até gira no mesmo sentido (horário) em todos os seres vivos!

Essa história de “biosfera das sombras” começa com a constatação de que a vida na Terra nem sempre foi exemplo marcial de padronização. Lá no começo, a tal sopa primordial estava mais para uma salada: havia um monte de compostos orgânicos malandros se reproduzindo da maneira que podiam. Dependendo do estágio de desenvolvimento que tivessem alcançado, talvez sequer pudessem ser consideradas “vivos” segundo todos os parâmetros atuais (é só lembrar do célebre caso dos vírus: eles são ou não são vida?)

Tudo dá a entender que só um desses compostos vingou: o que daria origem ao DNA. Pelo jeito, ele foi o vitorioso na seleção natural, e o resto, não. Repetindo: se outro sistema de replicação e transmissão de informações também tivesse se dado bem, haveria criaturas vivas, aqui na face da Terra, que não usariam DNA para armazenar dados hereditários. E bem, elas não existem.

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Mas não mesmo? Carol Cleland, astrobióloga e filósofa da Universidade de Colorado, discorda. Ao longo das últimas décadas, ela vem trabalhando com a possibilidade de que outro domínio biológico esteja passando abaixo dos nossos detectores. Em 2014, disse ao The Guardian: “A ideia é simples. A Terra pode ser co-habitada por formas de vida microscópicas com uma bioquímica completamente diferente da que é compartilhada pela vida como a conhecemos.” O artigo científico mais famoso de Cleland sobre o assunto saiu em 2006, e você pode vê-lo aqui.

Por um lado, essa descoberta seria um raio de esperança: se a vida surgiu mais de uma vez na Terra, então ela não é um milagre tão milagroso assim. Com certeza pipoca pelo cosmos, e pode ser encontrada por todos os lados. Por outro, seria uma decepção com a ciência. Afinal, como é que pode uma novidade desse porte, caso seja mesmo verdade, ter passado despercebida no nosso radar por tanto tempo?

Os defensores da biosfera das sombras têm argumentos razoáveis e fascinantes a seu favor. Um deles é que nossos métodos de detecção (e também nossas definições) de vida são bastante auto-centrados: buscam apenas criaturas que funcionem usando as mesmas quatro bases de DNA e os mesmos 20 aminoácidos que nós. Qualquer coisa radicalmente diferente disso – silício como componente principal, em vez de carbono, por exemplo – poderia passar despercebida.

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Outro ponto é que, da mesma maneira que a matéria escura cósmica – aquela que ninguém nunca viu nem cheirou, mas que precisa existir para explicar a rotação de galáxias espirais –, essa “matéria escura” biológica também deixaria rastros. Afinal, todo ser vivo tem metabolismo. Come, digere e excreta coisas. Nós poderíamos encontrar indícios desse mundo invertido procurando, por exemplo, emissões de gases que não podem ser explicadas de outra maneira.

É claro que os dois pontos citados acima são só o resumo do resumo: minha intenção não é fazer uma reportagem completa sobre biosfera das sombras, e sim abordar o assunto brevemente. Algumas substâncias curiosas já foram apontadas pelos apoiadores dessa hipótese como prováveis subprodutos da digestão dessas criaturinhas de outro deste mundo. A principal delas é algo chamado desert varnish (ao pé da letra, “verniz do deserto”). É uma espécie de casca de argila misturada com óxidos de ferro e manganês que se forma na superfície de pedras em regiões áridas – e que nunca foi explicada satisfatoriamente por geólogos.

“Eu acho bem improvável que depois de 300 anos de microbiologia a gente ainda não tenha detectado esses microorganismos, mesmo que eles tenham uma bioquímica diferente da que conhecemos”, afirmou Charles Cockell, da Universidade de Edimburgo, na mesma reportagem do The Guardian que mencionei lá atrás. Mas mesmo que não exista nada além de nós sobre a Terra – o que é mais provável segundo Rutherford e a maioria esmagadora dos biólogos –, especular sobre outras formas de vida é sempre um exercício frutífero para ajudar a ciência a avançar. Nas palavras de Einstein, “se uma ideia não parece absurda logo de cara, então ela está perdida”.

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