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A brasileira que investiga o maior mistério do universo: a energia escura

O universo se expande, e ninguém sabe por quê. A astrofísica Marcelle Soares-Santos está usando até ondas gravitacionais para chegar à resposta

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h10 - Publicado em 23 ago 2017, 18h13

Marcelle Soares-Santos me atendeu com um “hello!” – e achou engraçado quando ouviu um “alô!” do outro lado da linha. Não perguntei se ela gosta das raras ocasiões em que pode falar um pouco de português em seu escritório em Chicago, nos Estados Unidos. Mas ela parecia feliz com a mudança de hábito, ainda que momentânea.    

A astrônoma brasileira não chega a ser uma celebridade, mas em 2014, teve seus 15 minutos de fama virtual pela primeira vez. “Tudo começou com um prêmio que eu ganhei nos EUA na época do meu pós-doutorado”, ela contou. “Divulgaram nas redes sociais e teve uma repercussão grande. Até então eu tinha meia dúzia de contatos.” Agora são 1163 – até eu já enviei uma solicitação de amizade.

A pesquisadora passou a infância em Manaus e fez graduação em física na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Daí em diante sua carreira foi – com o perdão do trocadilho – astronômica. Viajou para São Paulo para fazer mestrado na USP, e passou parte de seu doutorado no Fermilab, um dos maiores e mais importantes laboratórios de física de partículas do mundo. Mandou tão bem em Illinois, nos EUA, que ficou por lá mesmo.

Hoje, Marcelle é a única brasileira de uma colaboração científica internacional chamada Dark Energy Survey (DES), e está de mudança para a Universidade Brandeis, em Boston. Sua rotina é criar um mapa dos céus – e depois usar a posição de centenas de milhões de galáxias para responder a uma pergunta fundamental para a compreensão do universo: por que ele está em expansão; e o que faz com que ele cresça sem parar, cada vez mais rápido, afastando esses aglomerados de estrelas uns dos outros.

Quem tem culpa no cartório, nesse caso, é a tal energia escura (dark energy) que dá nome ao projeto. Ela é algo misterioso, invisível e indetectável que corresponde a 70% de tudo que existe, e sua influência vence até a própria força da gravidade – motivo pelo qual o universo infla, em vez de encolher. “Esse fenômeno não tem explicação dentro da física que a gente aplica no dia a dia. A ideia é que o espaço supostamente vazio em torno de galáxias na verdade não está tão vazio assim”, explica a pesquisadora. “Isso é algo novo para nós e importante para o universo, mas não sabemos nada a respeito. É quase filosofia.”

Marcelle, portanto, é uma detetive, e a identidade de seu investigado é uma das charadas mais difíceis do cosmos. Para medir a expansão do universo e chegar a uma resposta, ela precisa usar pontos de referência estáveis – da mesma forma que nós, ao apontar um objeto pequeno e distante na janela, usamos um prédio ou montanha característicos para a outra pessoa localizá-lo com mais facilidade. É aí que entram as ondas gravitacionais – personagens comuns das notícias de ciência que podem ajudá-la.

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“Para medir as taxas de expansão, você precisa medir a variação de distância entre objetos em função do tempo. É muito difícil medir distâncias, então nós usamos indicadores. Supernovas, por exemplo, são indicadores de distância excelentes, porque têm luminosidade padrão. Se você observar duas supernovas iguais e uma estiver com metade do brilho da outra, você saberá também que ela está quatro vezes mais distante.”

O problema é que essas observações são instáveis. Seria ótimo ter outro bom ponto de referência – outro prédio característico na paisagem da janela. E é justamente isso que os fenômenos que geram ondas gravitacionais podem fornecer – principalmente se ficar provado que eles também produzem luz. “Eu resolvi investir em um programa de busca pelas emissões óticas correspondentes aos sinais detectados pelo LIGO”, explica a astrônoma. “O fenômeno que gera as ondas gravitacionais também deve gerar ondas eletromagnéticas.”

Pancadas cósmicas

Antes de continuar, vale uma recapitulação. Volta e meia dois objetos muito, muito densos – como estrelas de nêutrons ou buracos negros – colidem em algum lugar muito, muito distante do espaço. A Terra e até o próprio Sol são bibelôs frágeis em comparação a esses bichos-papão cósmicos.

Uma estrela de nêutrons funciona assim: um átomo é uma bolinha minúscula de prótons e nêutrons, cercado por uma órbita meio vazia em que rodam os elétrons (lembra?). Em outras palavras, se você fosse o núcleo de um átomo, você andaria por aí em uma redoma – uma bolha imaginária em que outros átomos não podem entrar. Pegar o metrô assim seria uma delícia. Pouca gente em cada vagão, todo mundo com um espaço razoável.

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Agora imagine uma explosão cataclísmica capaz de arrancar os prótons e elétrons dos átomos. Todo mundo, de uma hora para a outra, ficaria sem bolha. E passaria a caber muito mais gente em um vagão. Faça isso com todos os átomos de uma estrela inteira e as coisas lá dentro vão ficar muito apertadas – ou seja, densas.

Resultado? O tamanho do astro vai de algo entre 10 e 30 vezes o tamanho do Sol para uma bola de só 10 quilômetros. Uma colher de chá de estrela de nêutrons pesaria mais de 5,5 · 1012  kg – cerca de 1 bilhão de elefantes de 5,4 toneladas.

Um elefante atrapalha muita gente, um bilhão ainda mais. Mas esse não é o limite. Coisas mais densas do que uma estrela de nêutrons chegam a um ponto em que o tecido do espaço-tempo não aguenta mais tanta gravidade. Ele rasga, e surgem os buracos negros – bem mais conhecidos na mídia, e de densidade infinita. Nem a luz escapa de sua atração.

O que o LIGO – o instrumento científico terráqueo – faz é detectar quando dois monstros desses batem um no outro. O que, a julgar pelas descrições acima, é uma pancada homérica, para ninguém botar defeito. Esses acidentes de trânsito, que acontecem bem longe daqui, geram as tais ondas gravitacionais – perturbações discretas do tecido do cosmos que só um laser hipersensível consegue pegar.

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Paparazzi estelar

Impressionante. Mas a astrônoma brasileira quer ir além. A ideia dela é apontar uma câmera fotográfica de 570 megapixels (as últimas versões do iPhone e do Galaxy, da Samsung, tem 12) para o céu no momento do impacto – e ver se dá para fazer um clique. Um radar fotográfico cósmico – ou, em termos técnicos, uma maneira de captar ondas eletromagnéticas, e não só as gravitacionais. “Se a gente olhar no lugar certo e na hora certa, temos a chance de observá-las.”

Não dá para comprar uma câmera dessas no mercado. Sem problema: em seu pós-doutorado, Marcelle construiu uma em parceria com seus colegas, a DECam, e foi isso que lhe rendeu o prêmio de 2014, chamado Alvin Tollestrup. Hoje o equipamento está instalado em um telescópio no Chile, onde o céu limpo do deserto do Atacama e dos Andes permite observações de cair o queixo. “Ontem mesmo eu estava analisando dados produzidos por ela aqui de Chicago. É muito legal ver um equipamento que você construiu gerar dados de última geração.”

E põe última geração nisso. “O que você cobre com ela em uma foto, em termos de área do céu, é o equivalente a 15 luas cheias. Isso significa que conseguimos ver objetos que estão a distâncias de bilhões de anos-luz. São objetos tão distantes que, na época em que a luz que hoje nos alcança foi emitida por eles, o universo tinha um terço ou metade do tamanho que tem hoje. São 5 bilhões de anos de história do universo.”

Até aqui, tudo lindo. Mas ainda há um problema: não adianta fotografar fenômenos que não produzem luz. E nem tudo que o LIGO detecta produz. “São três possibilidades: dois buracos negros, um buraco negro com estrela de nêutrons e duas estrelas de nêutrons”, listou a brasileira. “E os exemplos que foram observados até agora envolvem só buracos negros.”

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Buracos negros têm o incômodo hábito de “engolir” tudo, até a própria luz. O que significa que eles são justamente o único tipo de choque, entre os três possíveis, que não produz ondas eletromagnéticas que possam alcançar a Terra junto com as gravitacionais. Marcelle, portanto, precisa esperar o LIGO detectar impactos que possam ser fotografados – o que pode acontecer amanhã ou demorar muito tempo. É impossível saber.

“É mais difícil detectar os outros dois tipos porque eles não são tão grandes. Pode ser que essa emissão seja tão fraquinha que a gente nem consiga observar, mas tem que ter emissão eletromagnética. O choque vai aquecer o sistema e produzir radiação.”

A câmera de Marcelle, portanto, é multiuso. Pode tanto dar uma força para o LIGO como se manter em sua função original: fotografar o universo em HD, e descobrir de outras formas porque ele não para mais de crescer. É uma das metas mais ambiciosas da física contemporânea. Para que apostar mais baixo do que isso?

“Se tem uma coisa que a gente aprendeu nos últimos 50 ou 100 anos é que a ciência tem muito potencial para pegar coisas aparentemente incompreensíveis e então explorá-las até conseguirmos manipular o fenômeno”, afirma a pesquisadora. “Foi isso que permitiu que, hoje, a gente converse por telefone a 5 mil quilômetros de distância um do outro.”

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