O “Cacique Cobra Coral” gringo que inundou San Diego em 1916
Charles Hatfield cobrava de fazendeiros e prefeituras para fazer chover. Até que um dia ele fez chover... demais. E arrebentou uma represa.
Charles Mallory Hatfield nasceu em Fort Scott, uma cidade de 8 mil habitantes no estado do Kansas, nos EUA, em 1875. Ainda criança, se mudou para a Califórnia com a família. Na adolescência, conseguiu o primeiro emprego: caminhar pelos subúrbios de Los Angeles vendendo máquinas de costura, que exibia em um pesado mostruário. Era talentoso na tarefa; talvez o mais talentoso à serviço da New Home Sewing Machine Company. Mas sabia que o ofício não dava futuro. Ele podia tornar sua malandragem mais lucrativa se vendesse outra coisa.
Que tal vender chuva?
Hatfield foi à biblioteca.
Lá descobriu que, em 1558, Felipe II, rei da Espanha, enviou uma esquadra com 160 embarcações e 30 mil homens para invadir a Inglaterra. Após alguns embates acirrados – os ingleses chegaram a atear fogo aos próprios barcos para lançá-los como projéteis, sem tripulantes – uma tempestade homérica estraçalhou a frota dos espanhóis. 43 naus não voltaram. Alguns pensadores da época palpitaram que a tempestade teria sido desencadeada de alguma forma pelo fogo e o ruído retumbante dos canhões. Que a Natureza, com N maiúsculo, teria uma espécie de detector de incêndios – e tomasse providências para apagá-los.
Plutarco, o historiador grego, escreveu que “chuvas extraordinárias geralmente caem após grandes batalhas; seja porque algum poder divino deseja limpar o solo poluído com as duchas do firmamento, seja porque a umidade e as evaporações, que exalam do sangue e da corrupção, engrossam o ar.” Essa foi uma ideia popular até o século 19. Napoleão pensava ter perdido a batalha nos campos alagados de Waterloo, em 1815, pelo mesmo motivo. Em 1891, o Congresso dos EUA ainda colocava dinheiro em experimentos com bombas destinados a gerar chuvas artificiais em regiões agrícolas abatidas pelas secas.
Hatfield viu aí uma oportunidade: se tornar uma espécie de Cacique Cobra Coral do velho oeste. Um vigarista que arrancasse alguns dólares de fazendeiros desesperados em troca da promessa de fazer chover em suas plantações.
Relembrando: a Fundação Cacique Cobra Coral é um grupo de esotéricos brasileiros que fecha contratos remunerados com prefeituras de metrópoles com a promessa de afastar a chuva em grandes eventos, como os desfiles de Carnaval.
Em 2009, a prefeitura de São Paulo apelou para a FCCC seis vezes. Não há, obviamente, nenhuma evidência da eficácia dessa dança da chuva ao contrário. É pura crendice. “Manejamos o vento para que ele levasse a chuva embora e trouxesse o frio”, justificou a médium Adelaide Scritori à Veja São Paulo naquele ano, quando o papa Bento XVI visitou a capital paulista. “Cumpro ordens do astral, a quem respondo”.
Até onde se sabe, Hatfield acreditava na validade científica de seu trabalho. Com a ajuda de seu irmão, batia um coquetel secreto de 23 substâncias em um tanque. Depois, a dupla erguia essa caixa d’água turbinada em andaimes de madeira a dez metros de altura, para deixar o conteúdo evaporar. Eles fizeram dezenas de testes, com dezenas de poções. Nem sempre dava certo, mas quando dava, Hatfield atribuía o resultado a seu método inovador – e não a divindades. Na Europa protestante e nos EUA, o final do século 19 foi uma época de grande valorização do avanço científico-tecnológico. Não pegaria bem enfiar Deus no meio.
Hatfield cobrava US$ 50 por fazenda – mais ou menos US$ 1,5 mil em valores de hoje. Era honesto na medida do possível: se não houvesse nuvens no céu de antemão, ele sequer começava o trabalho. O rainmaker considerava-se capaz de forçar as nuvens que já estavam lá a soltar água – mas não prometia gerar nuvens novas onde não havia nenhuma. Em busca de um nome Polishop para vender a si próprio nos jornais, tornou-se “O Acelerador de Umidade”. Uma entrevista com sua mãe, orgulhosa, saiu no Los Angeles Times.
Em 1915, a carreira de Hatfield chegou ao auge. Ele foi contratado pela prefeitura da cidade de San Diego, na fronteira com o México, para encher a represa de Morena. Sua intenção era cobrar US$ 1 mil por cada polegada (aproximadamente 2,5 centímetros) que o nível do reservatório subisse. O conselho da cidade, algo equivalente à câmara de vereadores, não gostou e quis pagar US$ 10 mil pelo serviço completo – independentemente de quanta água caísse do céu. Na virada para o ano de 1916, Hatfield armou seu andaime de madeira às margens de Morena. Em 5 de janeiro de 1916, a chuva caiu.
E caiu. E caiu. E caiu. Por um mês. Pontes desabaram, as linhas de telefone foram varridas, trens foram descarrilados pelas enchentes. Centenas de casas e plantações foram destruídas, duas outras represas transbordaram, uma se rompeu. 20 pessoas morreram, outras tantas estão desaparecidas até hoje. Os prejuízos alcançaram US$ 3,5 milhões – fora os US$ 10 mil combinados com Charlie.
Hatfield insistiu que queria ser pago. A prefeitura disse que não. Ele disse que sim. Alguns processos correram, os juízes consideraram os estragos fruto de um “ato de Deus”. E então a prefeitura propôs: tudo bem. Nós vamos pagar. Mas só se você for lá fora e contar para as pessoas desabrigadas que o culpado pela chuva não foi Deus, e sim você. Assim, Hatfield foi embora. Sem nada no bolso.
(Este texto foi baseado em uma das histórias do livro O Palácio da Memória, lançado no Brasil pela editora Todavia. O livro é uma coletânea de casos curiosos contadas pelo jornalista Nate DiMeo em um podcast com o mesmo título do livro. Todas são tão boas quanto esta – vale a pena ler).