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Será que vozes da pré-história ficaram gravadas em potes de cerâmica?

A ideia de que recipientes de argila pré-históricos foram os primeiros LPs está por toda a cultura pop – e é uma viagem às origens da indústria musical

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h37 - Publicado em 21 Maio 2018, 17h02

Em 30 de abril de 1877, a carta mais importante da história da música saiu do escritório do inventor Charles Cros rumo à Academia de Ciências de Paris. Ela continha as instruções para fabricar o paleophone (neologismo de raiz grega que significa “voz do passado”), a primeira máquina capaz de gravar e reproduzir som. Como a engenhoca não pôde ser construída na prática, o francês não entrou para a história como fundador da indústria fonográfica – as láureas ficaram para o norte-americano Thomas Edison, mais famoso pela invenção da lâmpada.

Não importa: hoje sabemos que o paleófono de Cros – tomei a liberdade de aportuguesar o nome –, caso tivesse saído do papel, teria funcionado razoavelmente bem. Ele consistia em uma membrana sensível, uma haste e algo próximo de uma lâmina de estilete. A haste conectava a lâmina à membrana. A lâmina ficava em contato com um disco giratório cuja superfície tivesse sido amolecida pelo fogo.

“Se a membrana estiver em repouso, a lâmina traçará uma simples espiral [no disco aquecido]. Já se a membrana estiver vibrando, a espiral ondulará, e essas ondulações serão representações exatas de todos os movimentos de ida e vinda da membrana, com suas durações e intensidades”, lê-se na carta de Cros. E assim ocorre a gravação. É como uma versão analógica do equipamento que lê nossos batimentos cardíacos e os transforma em um gráfico: quando a pessoa está morta, a linha fica reta. Se o coração bate, aparecem picos e vales.

Para ouvir a música depois, basta seguir o processo oposto: posicionar a lâmina no sulco e deixá-la correr – exatamente como seria feito com os LPs décadas depois. Conforme a lâmina passa pelas imperfeições, ela vibra. A vibração é transmitida pela haste para a membrana, que nada mais é que um alto falante rudimentar. Bingo. Hoje, estamos tão acostumados a ouvir músicas gravadas em outras décadas que é difícil entender o quanto esse era um fenômeno fantasmagórico para alguém do século 19. Uma voz do passado. Uma tecnologia capaz de dar voz a pessoas mortas.

Spotify da Antiguidade

Esse princípio básico pelo qual o som pode ganhar forma física – ser transformado em uma espécie de escultura de baixo relevo em um disco – se tornou uma pulga atrás da orelha de alguns arqueólogos de imaginação mais fértil. Afinal, uma das matérias-primas mais usadas pelo ser humano desde a pré-história, a cerâmica, tem várias características de um bom suporte de gravação: de início, é maleável, mas depois enrijece na forma desejada pelo artesão. Também é comum que vasos de argila sejam fabricados com ajuda de um suporte giratório – técnica, ao que tudo indica, foi inventada pelos sumérios há mais de 5 mil anos.

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Se um artesão dessa época cantasse ou conversasse enquanto moldasse vasos, há uma probabilidade mínima de que fragmentos de sua voz, de alguma forma, ficassem gravados na cerâmica e tivessem sido preservados até hoje. Essa ideia fascinante foi considerada seriamente pela primeira vez em 1969, em um artigo científico de um certo Richard Woodbridge – sobre o qual, em uma pesquisa rápida, não consegui encontrar mais informações. O pesquisador afirma, em um texto breve e inconclusivo, ter sido capaz de ouvir sulcos que ele próprio criou em um fragmento de cerâmica.

De lá até aqui, a ideia circulou por todos os cantos, sempre com mais imaginação que rigor. Esta página dá um resumo de suas aparições – que incluem um conto de ficção científica de 1979 intitulado Time Shards, de Gregory Benford, um episódio de X-Files e um de CSI. A hipótese dos vasos falantes também foi tema de uma notícia falsa veiculada de brincadeira por uma TV belga em 1º de abril. No final das contas, porém, o consenso científico é que os vasos falantes pertencem mesmo à ficção. E só a ela.

Pé-no-chão

Não fique triste. A arqueologia acústica não é bagunça, é claro. Embora ela tenha essa face com jeitinho de teoria da conspiração (ou de episódio do Mythbusters), há maneiras comprovadamente eficientes de usar o som para estudar o passado da espécie humana. Em fevereiro deste ano, por exemplo, o linguista Shigeru Miyagawa, do MIT, publicou um artigo científico em que associa a posição de pinturas pré-históricas em paredes de cavernas com o comportamento do som lá dentro. Ao que tudo indica, os primeiros artistas plásticos pintavam animais mais ruidosos nos cantos das câmaras em que as vozes deles ressoavam com mais intensidade – uma associação clara entre som e sentido que indica o quanto a capacidade cognitiva de nossos ancestrais já era elevada.

Muitos outros pesquisadores se dedicam a recriar os primeiros instrumentos musicais ou a compreender a acústica de lugares como o Stonehenge. Avançando um pouco no tempo, há inclusive análises detalhadas da reverberação do som em anfiteatros do período clássico e reconstituições sonoras da música contida em partituras da Grécia Antiga. Quem se interessa pelos barulhos do mundo pré-fonógrafo, em resumo, tem um prato cheio de evidências silenciosas. Tocar vaso em vitrola, só em último caso.

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