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De onde vem a violência

Os cientistas entram em conflito: o homem é violento por natureza ou a sociedade é que o faz assim?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 30 nov 1988, 22h00

O sangue é expelido com vigor em direção aos locais onde é mais necessário — o cérebro, para o raciocínio rápido, e os músculos, que devem trabalhar a plena capacidade. Não falta energia para o combate, pois o fígado passa a sintetizar mais açúcar. Também se aceleram os processos de coagulação, reduzindo as conseqüências de possíveis perdas de sangue. Estas são as reações de qualquer mamífero, incluindo o homem, quando numa situação de luta. Instintivamente, o corpo se prepara para o ataque, diante de qualquer ameaça — real ou imaginária. Essa vontade de brigar tem raízes biológicas? Eis uma grave questão, que coloca os cientistas em conflito, prontos para reagir agressivamente. Como qualquer ser humano, eles estão dispostos a defender vigorosamente suas posições, neste caso de maneira inglória — pois a rigor ninguém sabe ao certo por que se dá um soco. Um modo de tentar saber é olhar os bichos. Existem, entre os animais, diversos tipos de agressividade. A mais conhecida é a predatória, que faz um carnívoro matar para comer. Em algumas espécies que vivem em grupo, como os elefantes, brigas feias também surgem na defesa do território de cada um. Além disso, a agressividade pode aparecer na disputa pela fêmea — garanhões trocam coices e patadas por uma bela égua, por exemplo.

Existe ainda a agressividade dominante, imposta por um líder justamente para evitar desentendimentos entre os liderados. Nos ratos, há sempre um indivíduo que domina o grupo: diante de qualquer desordem, ele se aproxima e faz gestos ameaçadores, como se fosse atacar. Nunca chega às vias de fato, mas a encenação inibe os animais que desejam brigar entre si. “A mais intensa agressividade é a da mãe na defesa dos filhotes. Devido a mudanças hormonais após o parto, qualquer fêmea vira uma leoa”, acredita o professor Frederico Graeff, da Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto, um dos raros especialistas brasileiros num ramo relativamente novo da ciência, a Psicobiologia.

Há quase vinte anos, Graeff estuda as reações biológicas da agressividade. Fica difícil, contudo, comparar uma mulher a uma leoa. “O potencial biológico da agressão existe no ser humano”, ele sustenta, “mas esse potencial mudou bastante durante a evolução. principalmente desde que o homem saiu de seu ambiente natural e passou a construir seu habitat — a selva de pedra das cidades.” Essa mudança de ambiente, para o psicobiólogo, teve séries conseqüências. Numa briga entre lobos, para comparar, o perdedor oferece o pescoço. O gesto é suficiente para desencadear automaticamente uma série de reações fisiológicas no vencedor que aplacam a sua ira.

Nos animais de uma mesma espécie, a expressão de medo e submissão costuma provocar esse efeito calmante. Mas os homens, como se sabe, são capazes de matar sem se abalar pelo olhar de súplica de suas vitimas. “Seria ingenuidade afirmar que isso é instinto biológico, pois aí o que agiu foi a cultura”, opina Graeff. A idéia de que o homem tem uma fera dentro de si, ou seja, possui uma incorrigível tendência biológica a agir agressivamente, não é nova, mas virou moda no final da década de 60, com as teorias do austríaco Konrad Lorenz, um dos criadores da Etologia, ciência que compara o comportamento dos animais. Para Lorenz, a agressão é desencadeada quando o animal observa algumas características – chave de um rival potencial. Isso seria suficiente para provocar um ataque cego, mesmo que o outro seja mais forte. Se por algum motivo o ataque não se consumar, a raiva se acumulará como numa espécie de reservatório, até que algo ou alguém sirva de gota d’água, fazendo transbordar de uma só vez a agressividade reprimida. Se assim fosse, o homem nunca deveria reprimir seus impulsos agressivos. Seria ruim para ele e pior para os outros — porque sua violência ficaria ainda maior a longo prazo.

Ocorre, porém, que justamente a capacidade de governar suas emoções — boas ou más — é que distingue o homem dos outros animais e permite, apesar de tudo, a vida em sociedade. O etólogo austríaco diz que não é preciso ensinar um animal a brigar. Mas parece que não é bem assim. Cientistas ingleses descobriram que galinhas criadas isoladas umas das outras não adquiriram a noção de perigo: em vez de fugir, passaram a atacar inimigos muito mais potentes, como cachorros. E macacas também criadas em isolamento atacaram os machos da própria espécie, sem permitir maiores aproximações. Segundo os cientistas, isso mostra que Lorenz tinha razão ao afirmar que a agressividade é instintiva, pois ninguém perde a oportunidade de brigar; mas errou ao negar a importância do aprendizado. “Ao que consta, é o meio que modula a agressividade e ensina os seres a usá-la dentro do contexto”, acredita o psicólogo Luiz Cláudio Figueiredo, da Universidade de São Paulo. Especialista em comportamento, ele também discorda de Lorenz quanto à possibilidade de se acumular a agressividade na pessoa. Existem até experiências negando a teoria de que a agressividade se acumula. Peixes mantidos em isolamento — logo, impedidos de brigar — tornam-se mais pacíficos, o que indica que não há reservatório biológico algum acumulando gotas de ira. Se existisse, os peixes estariam transbordando de raiva, pois isolados não podem dar vazão à agressividade.

Por outro lado, as pesquisas apóiam Lorenz quando ele relaciona os impulsos agressivos a mudanças hormonais. O nível de hormônios do estresse — que preparam o corpo para grandes esforços — aumenta até 400 vezes em ratos, durante uma briga. Os hormônios sexuais masculinos também parecem ter grande importância para as espécies em que a propagação passa necessariamente pela competição sexual. Ratos castrados, por exemplo, perdem quase toda a agressividade. Mas os hormônios não se acumulam e depois se dispersam, como supõe o cientista austríaco. “Estou convencido de que a agressividade tem muitos aspectos biológicos”, admite o psicólogo Luiz Cláudio Figueiredo. “Em laboratório, faço ratinhos brigar por comida e assim seleciono sucessivamente os vencedores. Os filhotes destes costumam ser bem mais agressivos”, conta. “Da mesma maneira, observo que existem pessoas naturalmente mais agressivas do que outras, embora tenham recebido a mesma educação e as mesmas influências do ambiente.”

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“De fato, há uma predisposição genética para a agressividade”, confirma o geneticista Oswaldo Frota-Pessoa, da Universidade de São Paulo, conhecido por investigar em que medida o comportamento humano é herança biológica. Mas ele adverte: “Não existe um gene que seja única e exclusivamente responsável por uma crise de cólera”. Segundo Frota-Pessoa, durante a evolução, os genes dos indivíduos de qualquer espécie que agiram mais adequadamente em relação ao meio foram perpetuados. “Por isso, como a maioria das características físicas e comportamentais normais, a predisposição para a agressividade também é transmitida por um grupo de genes.” Ou seja, estes apenas determinam a probabilidade de a pessoa ser agressiva. O resto é com a vida.

“Alguém com alta predisposição para a violência e que vive num meio violento é claro que terá maiores oportunidades de agir com agressividade, exemplifica o geneticista.Mas uma educação ultrapacífica diminui as chances de qualquer um ser agressivo. O ambiente e a biologia interagem.” A idéia de interação é partilhada com a antropóloga paulista Carmem Cinira Macedo, que pesquisa a questão da violência. “Nos últimos anos, houve uma tendência a tratar a violência como um fato natural”, analisa. “Assim é cômodo pensar que bandido é bandido e não vale a pena tentar corrigi-lo.”

Ela cita um trabalho clássico da antropóloga americana Margareth Mead (1901-1978), que se preocupou em verificar se de fato o homem é mais agressivo do que a mulher. A antropóloga estudou três sociedades primitivas africanas: na primeira, tanto homens quanto mulheres eram muito agressivos; na segunda, ambos os sexos eram extremamente dóceis; na última, as mulheres eram bem mais agressivas. “Logo, os padrões de agressividade são dados pela cultura”, conclui Carmem. “Para ser aceito pelo grupo, o indivíduo tende ou a reprimir ou a exacerbar os impulsos agressivos, sempre conforme os valores vigentes. O controle da sociedade parece ser a única forma eficaz de conter a agressividade, sejam quais forem as suas raízes”. observa.

Para o sociólogo paulista Sérgio Adorno, que há catorze anos pesquisa a marginalidade, “as pessoas sempre agirão agressivamente. A questão é fazer com que essa agressividade permaneça num nível tolerável. O preço de viver em sociedade é controlar os impulsos”. Em alguns países, como na Inglaterra, tenta – se deliberadamente desestimular o suposto instinto agressivo dos seres humanos. As crianças inglesas não encontram revólveres nas prateleiras de lojas de brinquedos nem assistem a filmes e desenhos de super – heróis que fazem justiça com muito sangue.

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Isso certamente não faz dos ingleses modelos de pacifismo, como bem sabem os torcedores de futebol de toda a Europa. De todo modo, o desestímulo à violência como forma de resolver as diferenças entre as pessoas deve fazer-se acompanhar de alternativas inofensivas ao exercício da agressividade, pois o homem é o único animal capaz de dar um sentido positivo a seus impulsos agressivos. Segundo os psicólogos, quando se participa de competições esportivas ou mesmo quando se trabalha com afinco, é a agressividade que está sendo colocada para fora.

Só o homem também é capaz de deixar para amanhã o que não deve fazer hoje — agredir o próximo. Mas a capacidade de dissimular acaba às vezes revestindo a agressividade humana de sua pior forma — a vingança minuciosamente planejada. Um animal irracional pronto para agredir não disfarça — rosna, mostra garras e dentes afiados. O homem, ao contrário, pode pronunciar palavras ásperas com voz doce e mansa. Tudo isso, para os cientistas, torna muito complicado definir o comportamento agressivo humano exclusivamente a partir de uma de suas duas heranças — a genética ou a cultural. Uma coisa é certa, pelo menos para nós, humanos da era atômica: a lei do mais forte, Ievada até o fim, pode cobrar um preço que a espécie não terá jamais como pagar.

Para saber mais:

Por favor, leia este texto

(SUPER número 6, ano 2)

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Drogas: uma viagem pelo corpo

(SUPER número 3, ano 6)

Fuga do beco sem saída

(SUPER número 4, ano 6)

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Os sexos se confundem

(SUPER número 7, ano 7)

O que os genes podem explicar

(SUPER número 12, ano 7)

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O caso do Y a mais

Para alívio das mulheres, no final da década de 60 cientistas americanos levantaram a hipótese de que a tendência à violência era herdada no cromossomo Y, que só os homens têm. A teoria surgiu após os exames em um policial americano que, sem motivo aparente, entrou no alojamento de um hospital, em julho de 1966, e matou oito enfermeiros. Os pesquisadores imaginaram ter encontrado uma justificativa genética para o crime, pois o policial era um homem com XYY, ou seja, enquanto um homem normal tem apenas um par de cromossomos XY (os outros 22 pares seriam XX), o assassino tinha dois pares; A descoberta estimulou – exames presidiários — e de fato surgiram mais casos de XYY. Parecia estar nisso a chave para explicar por que algumas pessoas são extremamente agressivas.

Recentemente, porém, a hipótese foi derrubada. Estudos realizados em pessoas comuns mostraram que um cromossomo Y adicional torna o homem mais alto, desengonçado e inseguro, mas não necessariamente mais agressivo. Comenta o geneticista Carlos Alberto Moreira, do Instituto de Ciências Biomédicas de São Paulo: “Com uma amostragem apenas de presidiários, é claro que qualquer um que fosse encontrado por lá — XY ou XYY — tenderia a ser muito agressivo”.

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