Uma viagem das drogas pelo corpo humano
Nos órgãos em que fazem escala, elas sempre ameaçam criar confusão. Mas bagunça, para valer, é o que se nota, quando chegam ao cérebro.
Lúcia Helena de Oliveira e Paulo Roberto Pepe. Colaborou Lúcia Camargo
As passageiras comuns vão aos portões de embarque da boca e das narinas.Mas algumas têm direito a um tratamento vip, embarcando mais rápido, direto na veia.
Uma vez acomodadas no sangue, as drogas iniciam a sua viagem pelo corpo humano. A circulação, propulsionada pela turbina do coração, é um transporte a jato, percorrendo cerca de 100 quilômetros de vasos, com conexões para toda parte. A eventual escala no fígado, porém, pode barrar parte das viajantes. Para essa víscera, com função de um policial de fronteira, as drogas não têm visto de entrada no organismo. Afinal, como qualquer substância tóxica, elas acabam causando muita destruição por onde passam. Mas, enquanto as células hepáticas fiscais prendem e liqüidam algumas dessas moléculas criadoras de encrenca, a maioria das turistas baderneiras termina escapando e seguindo em frente — ou melhor, para o alto, em direção ao cérebro. E é ali que causam a maior confusão.
Trata-se, afinal de contas, de um órgão especialíssimo. Da dor de um beliscão à alegria de encontrar um amigo, da imagem de um rosto ao som de uma música, das recordações à imaginação, da fome de comida à sede de conhecimento — a pessoa só sente o que passa pelo cérebro. Para este, por sua vez, emoção, sensação ou razão, tudo é pura eletricidade. Pois suas células, os neurônios, se comunicam através de impulsos nervosos, que nada mais são do que correntes elétricas. Mas para que haja a transmissão de uma mensagem qualquer, é preciso que as células cerebrais secretem as chamadas substâncias neurotransmissoras. “Os neurônios nunca encostam um no outro” descreve o neurologista Esper Cavalheiro, da Escola Paulista de Medicina. “Os neurotransmissores, então, saltam de um neurônio para o outro, passando o impulso elétrico para a frente.” A produção dessas substâncias, porém, tem de acontecer na dose exata — se faltam neurotransmissores, a mensagem nervosa se perde no meio do caminho; em compensação, em excesso, são capazes de fazer uma informação ficar reverberando. As drogas, no caso, alteram o comportamento de seus usuários, justamente porque suas moléculas, clandestinas no sistema nervoso, conseguem mexer no nível dos neurotransmissores.
Algumas fazem as substâncias mensageiras jorrar a tal ponto que os impulsos se multiplicam ou começam a trafegar mais depressa. Outras agem de modo inverso: fecham as torneiras dos neurotransmissores nos neurônios, que desse modo passam a trabalhar em câmera lenta. Finalmente, há também as farsantes, que se encaixam nos receptores das células cerebrais, fingindo trazer uma mensagem que, na realidade, não existe. É por isso que os especialistas costumam dividir os milhares de substâncias rotuladas como drogas em três grandes grupos: estimulantes, depressoras e alucinógenas. “Usando essas táticas, as drogas podem induzir todo tipo de sensação”, diz Cavalheiro. “No entanto, muitas vezes fica difícil saber detalhes do que aprontam. Em primeiro lugar, porque seu campo de ação, o cérebro, ainda não é completamente conhecido pelos cientistas”, admite o pesquisador.
” Além disso a cada dia descobrimos novas funções para determinados neurotransmissores. Portanto, seguindo esse raciocínio, as drogas que interferem nessas substâncias podem provocar efeitos que, antes, não imaginávamos.”Existem, contudo, rastros que permitem aos cientistas presumir ao menos parte do percurso das drogas. Ainda em meados dos anos 50, nos Estados Unidos, certos pesquisadores realizaram uma experiência que acabou se tornando clássica: eles implantaram eletrodos em áreas diferentes do cérebro de cobaias; assim, toda vez que os animais pisavam numa pequena plataforma, os eletrodos aplicavam um levíssimo choque. Em determinadas regiões cerebrais, esse estímulo elétrico parecia ser agradável, pois as cobaias passavam a repetir, cada vez com mais freqüência, as visitas a esse canto especial das gaiolas. Além disso, a tendência era ficarem ali mais tempo, perpetuando o estímulo. A partir daí, alguns cientistas começaram a suspeitar da existência do que chamariam centros de prazer, espalhados pelo sistema nervoso dos quais o mais sensível seria o hipotálamo, na base do cérebro. Certamente, em sua viagem, as drogas devem fazer escalas mais demoradas nessas regiões.
Tal como as cobaias da experiência americana os usuários de drogas também tendem a diminuir os intervalos entre as aplicações dessas substâncias. “É o fenômeno da tolerância: são necessárias quantidades cada vez maiores da substância para que ela produza o mesmíssimo efeito no organismo”, define Elisaldo Carlini; professor de Psicofarmacologia na Escola Paulista de Medicina. Ele é, com certeza, uma das maiores autoridades brasileiras no estudo das drogas. Aos 61 anos, já publicou 189 trabalhos sobre o assunto.
Se as drogas, de fato, atuam principalmente nos tais centros de prazer e saciedade do sistema nervoso—uma teoria que ainda provoca controvérsia nos meios científicos—, a passagem delas por aí é traiçoeira. Isso porque, se logo no início despertam alguma sensação agradável para a pessoa, em seguida passam a fazer chantagem: o organismo passa a implorar sua presença. É o que se chama dependência: se antes alguém tomava a droga para sentir determinado efeito, depois é obrigado a tomá-la para seu corpo continuar funcionando direito — o “barato”, como dizem os dependentes, já nem importa mais. Um organismo viciado em heroína, por exemplo, precisa da substância tanto quanto qualquer pessoa precisa de alimento. Interromper o consumo da droga é sofrer flagelos piores do que estar faminto, o que já faz, na maioria das vezes, qualquer um desistir da idéia de abandonar o vício. E, no caso, assim como se morre por inanição, insistir na interrupção do uso da heroína, sem acompanhamento médico, costuma ser fatal.
“O tormento físico relacionado ao abandono de qualquer droga é o que os especialistas conhecem por síndrome de abstinência. A da heroína só perde para a do álcool”, revela Carlini. O fenômeno acontece, mais uma vez, porque as drogas desregulam o sistema nervoso. Por exemplo, as moléculas dos chamados narcóticos — produtos derivados do ópio, como a heroina — são extremamente parecidas com as de uma família de substâncias que os neurônios fabricam para controlar a dor física e moderar emoções como o medo e a angústia. Assim, além de servirem de anestésico, os narcóticos diminuem a ansiedade e induzem o sono. Mas o uso contínuo das substâncias opiáceas leva o cérebro a poupar suas energias, deixando de produzir os neurotransmissores com moléculas similares às das drogas.O álcool pode agir de maneira semelhante. “Mas para criar tamanha dependência é preciso que uma pessoa beba, com freqüência, tremendas quantidades de bebidas alcoólicas”, diz Carlini, que absolve a ingestão cautelosa.
“Doses moderadas de uísque, especificamente, podem até combater a hipertensão”, exemplifica. O álcool é um depressor do funcionamento do sistema nervoso. O mais curioso, porém, é que ele parece agir em etapas, ao chegar ao cérebro. A primeira região a ser deprimida é aquela do comportamento voluntário, na superfície da víscera cinzenta, responsável por decisões do tipo “o que devo e o que não devo fazer”. Ou seja, em um só golpe, o álcool derruba a autocensura. Depois de alguns goles, a pessoa passa a liberar pensamentos e emoções que estavam, de alguma maneira, bloqueados—pode, assim, falar mal da sogra, cair na gargalhada, soltar o choro, mostrar o cansaço do dia e adormecer em público.
O próximo passo do álcool no sistema nervoso é ir para as áreas encarregadas da concentração e da coordenação motora. Da mesma forma que a bebida alcoólica, os remédios barbitúricos, criados a partir de 1903, deprimem o sistema nervoso. No entanto, se o cérebro passa a trabalhar em marcha lenta, o fígado fiscal, depois de quebrar as moléculas dessas substâncias, funciona como se tivesse recebido uma injeção de ânimo. Por isso, outros remédios costumam deixar de fazer efeito quando associados ao uso de calmantes — afinal, mal entram na circulação sangüínea, são arrasados pelas células hepáticas. Estas, por sua vez — na trama complexa da mistura de drogas —, são disputadas pelas moléculas de álcool e de barbitúricos, quando ambas chegam na mesma hora ao organismo. Essa briga pode ser fatal para quem engoliu os dois tipos: sem dar conta do recado, o fígado libera a passagem das drogas, que uma vez unidas no cérebro podem provocar a morte. Esse excesso é a overdose, que ao contrário do que muitos imaginam, não é um jeito suave de morrer.
A primeira área do cérebro a entregar o jogo é a que controla a respiração. Resultado: a pessoa morre por asfixia. Pior, graças a um mecanismo de defesa, sempre que falta oxigênio para o organismo, a pessoa fica em estado de alerta. Ou seja, quem morre por ingestão de calmante, em vez de se desligar da vida dormindo, provavelmente fica consciente da enrascada em que se meteu. “Algumas misturas são mais perigosas do que outras”, aponta o psiquiatra Marcos da Costa Leite, do Hospital das Clínicas, em São Paulo, que se dedica a casos de alcoolismo. “Existem também vários mitos”, adverte. “O álcool não potencializa o efeito da cocaína, por exemplo.” Segundo o médico, o pó branco da família dos estimulantes não costuma ser metabolizado no fígado. “O único perigo é a pessoa alcoolizada perder a noção do que faz e usar mais cocaína do que o tolerável pelo organismo”, pondera.
“Aliás, esse tipo de observação é válido para qualquer mistura de drogas.”Normalmente, quando um neurônio libera uma microdose de neurotransmissores, para alcançar os neurônios vizinhos, essas substâncias são reabsorvidas. É justamente essa reabsorção que a cocaína impede, ao ser injetada ou inalada na forma de pó. Ou seja, todas as mensagens que transitam no cérebro, enquanto dura o efeito da droga, ficam reverberando — daí o jeito agitado e confuso do usuário. A linha cruzada de várias informações, depois de certo tempo ou conforme a quantidade da droga no organismo, provoca panes — as convulsões do cérebro, geralmente fatais. Na realidade, as anfetaminas — drogas estimulantes, vendidas em farmácia, mediante autorização médica — podem levar ao mesmo efeito, por um caminho diferente: em vez de as mensagens se repetirem, do ponto de vista químico, elas começam a passar mais depressa.
Os alucinógenos, como o LSD, são drogas peculiares, porque não costumam matar quem as consome. As moléculas de LSD enviam mensagens falsas, especialmente na área do cérebro que se encarrega de compreender aquilo que os olhos registram. Com isso, durante a viagem da substância pelo sistema nervoso, a pessoa passeia por cenários imaginários. “Existem teorias de que a droga danifica os neurônios, mas não estão muito claras”, conta o psiquiatra Leite. A maconha, outra alucinógena, também provoca controvérsias. Das mais de 400 substâncias que a compõem, só uma minoria foi isolada. Daí a dificuldade dos cientistas em afirmar que o chamado THC, um dos seus componentes, é de fato o responsável pelo relaxamento muscular e pela perda de noção de tempo, por exemplo. A maconha provoca ainda a liberação de adrenalina, o hormônio que acelera os batimentos cardíacos. O coração então chega a bater cerca de 160 vezes por minuto, quando o normal seria entre 80 e 100. Só para se ter idéia, durante um orgasmo, o músculo cardíaco pode atingir 180 batidas por minuto. Experiências mostram que ninguém morre de overdose dessa droga, cujos efeitos maléficos seriam os mesmos do cigarro de tabaco — o qual provoca dependência, síndrome de abstinência e uma série de males, como câncer de pulmão, embora não seja comercializado por traficantes nem seus usuários perseguidos pela polícia.
Para saber mais:
Heroína, o analgésico que mata
(SUPER número 2, ano 1)
(SUPER número 7, ano 3)
(SUPER número 4, ano 6)
(SUPER número 8, ano 9)
…e o que acontece quando seu consumo pára bruscamente
Síndrome de abstinência
álcool insônia, irritabilidade, tremores, distúrbios neurológicos que podem levar à morte
cocaína sono, cansaço, depressão, diminuição do apetite
tabaco ansiedade, dor de cabeça, aumento do apetite
maconha em alguns casos, insônia
heroína diarréias e vômitos fortes, provocando morte por desidrataçãoanfetaminas depressão
sedativos ansiedade e, nos casos graves, convulsões
Quando o homem vira pó
Há 5 000 anos, os povos andinos têm o hábito de mascar uma espécie de chiclete, feito com folhas de coca e cal — substância que libera o princípio ativo da folha, a cocaína. Levada para a Europa pelos conquistadores espanhóis, a coca logo ganhou espaço nos salões nobres. Só em 1857, químicos alemães conseguiram isolar a cocaína. O pó branco, então, foi encarado como um santo remédio para uma série de males — de dor de dente a resfriado — e, nessa época, era vendida livremente em farmácias e cafés. Sigmund Freud (1856-1939), um de seus fiéis consumidores, achava que a substância podia tratar casos de depressão. Outro ilustre fã da cocaína era o escritor inglês Conan Doyle (1859-1930). Em um de seus romances policiais, deixou claro que sua famosa criação, o detetive Sherlock Holmes, não conseguia viver sem a droga, que guardava em um “elegante estojo de marroquim”.
Paz em tempo de guerras
Em 1943, Albert Hoffman, um respeitado químico suíço, achou que tinha enlouquecido, ao sintetizar substâncias derivadas do ácido lisérgico. Ele só queria encontrar um remédio para a esquizofrenia e acabou tendo alucinações de toda espécie — o cientista havia sintetizado o LSD, droga que conquistaria a maioria dos jovens, vinte anos mais tarde. Nos anos 60, enquanto pela primeira vez a televisão mostrava imagens de uma guerra, transmitindo o horror do Vietnã, a juventude protestava contra a violência, num movimento cujo ponto alto foi o histórico Festival de Woodstock. Na verdade, em nenhum canto do planeta havia muita tranqüilidade: no Brasil, por exemplo, explodia o regime militar. Não foi à toa, assim, que duas drogas da moda, naquela década, eram a maconha e a heroína, capazes de apagar da mente um mundo cheio de problemas. O LSD, no entanto, foi a droga mais marcante da época, em parte por influência do americano Thimoty Leary, um ex-professor de psicologia na respeitada Universidade Harvard. Para Leary, a droga celebrava uma nova religião, cujas palavras-chave eram paz e amor.
A erva dos assassinos
Pode-se dizer que as plantas do Grupo Cannabis — onde se destacam a maconha, o haxixe e o cânhamo — têm uma tradição secular: elas são mencionadas nos mais antigos textos sagrados hindus, como ervas mágicas, capazes de afastar o perigo de catástrofes e a ira dos inimigos. Não faltam crenças semelhantes na descrição de diversos rituais religiosos primitivos.
No início do século XI a.C., o conquistador ismaelista Hassam ibn Sabbah, por exemplo, fundou uma seita em que a Cannabis era o símbolo divino. Mas, quando não se ocupavam com o espírito, refugiados numa fortaleza entre o Mar Cáspio e o planalto persa, os participantes da seita alimentavam a matéria assaltando caravanas de mercadores — estes chamavam os bandidos de fumadores de haxixe, cuja expressão em árabe é haschaschne, de que derivou a palavra assassino. Mil anos depois, as invasões árabes na África levaram a erva para esse continente; que chamavam suas folhas de makonia, foram provavelmente seus introdutores nas Américas.
O ópio do povo
Para os antigos sumérios, a papoula e a alegria eram sinônimos — ao menos, recebiam o mesmo símbolo, nas tábuas de argila inscritas há cerca de 5 000 anos. Há quem suponha, só por isso, que os habitantes da Suméria foram os primeiros consumidores de ópio, narcótico extraído da flor, capaz de proporcionar sensação de bem-estar. Os ocidentais, porém, só viriam a conhecer essa droga por volta do ano 327 a.C, quando os exércitos de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.) retornaram à Macedônia, depois de terem atravessado a Ásia Menor. A partir daí, o ópio se transformou numa coqueluche entre os europeus. Foram eles, aliás, que introduziram essa mania na China, no final do século XVII.Os chineses, até então, só usavam o ópio como medicamento. Para evitar a disseminação do vício, o imperador Yong-tcheng proibiu a importação da droga. Mas ela continuou entrando no país pelas mãos de contrabandistas ingleses, que trocavam o produto por prata ou ouro. No dia 7 de junho de 1839, ao apreenderem mais de 20 000 caixas da droga, as autoridades chinesas lançaram 1360 toneladas de ópio ao mar. Diante disso, o governo britânico declarou-lhes guerra, em nome da liberdade de comércio. Derrotada, a China teve de entregar Hong Kong aos ingleses, além de abrir seus portos ao comércio europeu. Estima-se que, no final do século XIX, existiam cerca de 120 milhões de toxicômanos nesse país.