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Estamos na merda porque nos recusamos a falar da merda

Perdoe o linguajar, mas foi por querer. Precisamos perder o medo de falar sobre a merda - ou o Brasil jamais vai sair de dentro dela

Por Denis Russo Burgierman
Atualizado em 8 mar 2024, 15h34 - Publicado em 7 dez 2015, 17h00

Merda não é um palavrão. Na verdade, é uma palavra clássica, do latim, que viajou intacta até nós desde a Roma Antiga. Sempre significou excremento: as sobras de nutrientes que o corpo não consegue processar, diluídos em 75% de água. Não tem nada de feio na palavra, ela é praticamente feita de mármore. Feio é o significado dela. Não gostamos de ouvir a palavra “merda” pelo mesmo motivo que não gostamos de sentir o cheiro dela, ou de avistar na calçada um encaracolado toroço marrom: a ideia nos causa repulsa. Graças a essa repulsa estamos vivos. Se nossos ancestrais não se incomodassem com cocô espalhado pela caverna, as bactérias teriam chacinado todos eles. Mas, agora, esse velho hábito de negar a merda está matando o Brasil. Merda não é ofensa, é uma realidade da vida. O papa Francisco caga, assim como Gisele Bündchen. Lula e FHC cagam. Cago eu e – por favor me perdoe a indiscrição – você também. Certeza. Cada humano dá à luz 55 quilos de malcheiroso barro por ano.

Por sorte, nascemos num planeta que veio com sistema autolimpante. O nome desse sistema é ciclo da água. Como se fosse uma gigantesca lava-louças esférica, nossa atmosfera fica cheia d’água, que é esguichada para lá e para cá por jatos de calor. Água gasosa, flutuando pelos céus, água sólida, escorregando de geleiras e, principalmente, água líquida, rolando em rios e enchendo a imensa piscina oceânica que dá cor à Terra. Água é uma tecnologia incrível. Tem a propriedade de dissolver as coisas: é o tal “solvente universal”. Por isso vai carregando tudo enquanto a lava-louças funciona. Graças a ela, os quase 400 milhões de toneladas de cocô que a humanidade produz ao ano não ficam empilhados na frente da sua casa.

É não falo só de fezes. Não são só as pessoas que excretam – as máquinas, as casas, as fábricas, as cidades também soltam seus maldigeridos excedentes para a água levar embora, solvente universal que é. É a merda industrial.

Nós no Brasil somos muito limpos e educados. Segundo pesquisa do Euromonitor que a SUPER publicou mês passado, lideramos fácil o ranking mundial de banhos: tomamos impressionantes 12 por semana, mais que o dobro de ingleses, japoneses e franceses. E evitamos falar a palavra “merda” – que grosseria. Mas, enquanto não falamos, tampouco lidamos com ela.

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Veja o caso de São Paulo, orgulhosa metrópole cosmopolita, que no entanto julgou ser boa ideia erguer seu distrito empresarial às margens de um grande lago de merda. Sim, lago de merda – é o que o Rio Pinheiros é. Deixou de ser um rio nos anos 1990, quando parou de correr, para evitar que o cocô se espalhasse pelo mundo (nem os moradores da Represa Billings nem as cidades do vale do Tietê queriam lidar com o esgoto que escorria viscoso da megalópole). Hoje um megaprojeto hidráulico mantém a água suja quase parada, movendo-a só um tiquinho para cá, um tiquinho para lá, para reduzir o risco de enchente.

São Paulo não é caso isolado. Quase todos os brasileiros, literalmente do Oiapoque ao Chuí, estabeleceram uma relação doentia com as águas de sua cidade. As matas que cercam as margens são arrancadas, o fundo se enche de areia, resíduos industriais são despejados. Paramos de nadar nos rios, negando a nós mesmos um dos maiores prazeres que a evolução nos legou, e paramos de navegá-los, atravancando a economia. Pântanos e manguezais, os sistemas naturais de limpar água, são destruídos. Em seguida vem o esgoto, muito esgoto – inclusive provavelmente o seu (já que só um terço é tratado no Brasil). Aí, como não gostamos de ver merda, a cidade vira as costas para seus rios – e tentamos parar de pensar neles.

Isso é grave. Ainda mais se lembrarmos que o Brasil depende de água. Quer dizer, todo mundo depende, mas o Brasil mais que os outros. Somos a maior potência global em termos de água doce – uma a cada oito gotas do mundo pinga aqui. Por causa disso, o Brasil vive de água. A Unesco estima que exportamos todos os anos 112 trilhões de litros de água doce para o exterior – água que escoa para fora do País embutida na carne, na soja, no alumínio, no café. São 3,5 milhões de litros d’água exportados a cada segundo – para comparar: a população do Brasil consome 2,4 milhões de litros por segundo.

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Enfim, para resumir: nosso sistema autolimpante está entupido de cocô e vazando a cântaros. O resultado é fácil de perceber: o Brasil está imundo. É uma máquina emperrada, que fica pingando uma nojenta água marrom. Não é de se estranhar que as coisas aqui estejam cheirando tão mal.

O Brasil está na merda, como sabemos. A economia parou, o emprego evapora, a infraestrutura esfarela, as cidades travaram, o custo de tudo alto demais, a crise hídrica ameaçando todos. A política virou luta de vale-tudo, com grupos rivais que não concordam em nada chafurdando na corrupção financiada pelas construtoras. Uma “crise de tudo” vai nos devorando.

Pois talvez haja resposta para cada um desses problemas onde menos se espera: na merda. Se o País se engajasse de verdade num imenso projeto coletivo de limpar a merda da água, veríamos os efeitos em todos os lados. É simples: basta usar o nutriente, tirar a merda industrial e deixar a água fluir limpa, movendo tudo. Teríamos que reflorestar as margens, refazer pântanos e manguezais, em todos os leitos de todos os rios de todas as cidades.

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Com isso, nossa lava-louças funcionaria, o que aqueceria a economia e refrescaria o clima. Nosso nó logístico desataria e as cidades destravariam, com rios fazendo o trabalho de estradas e avenidas de maneira muito mais rápida, barata e segura. A terra valorizaria, enriquecendo todos. Teríamos mais para beber e mais para exportar. As crianças teriam onde nadar. Seria o tipo de projeto capaz de dar agenda comum para correntes políticas rivais, ocupação a milhares de brasileiros e uma obra útil para as construtoras realizarem em troca do dinheiro que já tomam de nós.

Mas, primeiro, precisamos ter coragem de falar sobre merda. E a palavra é essa mesma. Não é cocô – termo infantil, indigno das possibilidades escondidas nele. Não é fezes – palavra técnica, que soa como se nada tivesse a ver conosco. A merda é de cada um de nós. Chegou a hora de arregaçar as mangas e meter as mãos nela.

Leia mais:
A gota que faltava
A crise da água tem solução?

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