O mundo de cabeça para baixo
Veja como os números ajudam no malabarismo de ciclistas que ousam desafiar a gravidade.
Luiz Barco
Sem planejar nem nada, me vi outro dia tomando banho de cachoeira num dos lugares mais bonitos deste país. Pena que ele seja tão pródigo de belezas naturais quanto de feiúras sociais. Estou falando da Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, que fui conhecer depois de dar um curso de pós-graduação na Universidade Federal do mesmo Estado, em Cuiabá. Adorei ver as fartas quedas-d’água e as lindas formações geológicas da região. Mas nem em meio a tão bela paisagem consegui esquecer a Matemática, que, confesso, é meu amor mais antigo. Tropecei nela, que andava junto com a Física, quando encontrei um grupo de saltimbancos. Eles prometiam saltar através de um aro metálico que suportava quase duas dezenas de facas pontiagudas e afiadas. Antes disso, porém, ocupavam-se da montagem de um looping no qual pretendiam desafiar a gravidade devidamente montados em bicicletas.
Enquanto eu observava o grupo, um jovem curioso – sempre tem um no meu caminho – quis saber qual era o truque envolvido. Não havia truque nenhum, eu disse logo. Só Física. Sabendo que ele já havia terminado o colegial, achei razoável que aceitasse o fato de que a velocidade de descida no ponto P1 (observe o desenho abaixo) fosse igual à velocidade no ponto P2, quando o ciclista fica de cabeça para baixo. É claro que assim eu estava considerando bem pouco significativas as perdas por atrito, tanto das rodas com o piso quanto da resistência do ar.
Meu amigo conhecia bem a fórmula v = 2gh . A velocidade que o ciclista atinge ao passar por P1 quando desce um plano inclinado será a raiz quadrada do produto do dobro da aceleração da gravidade (no caso 9,8 metros por segundo a cada segundo) pela medida h, que é a altura do desnível entre os pontos P1 e P0.
Eu achei muito triste que um jovem estudante ficasse procurando um fio transparente em lugar de usar seus conhecimentos. Só para provocá-lo perguntei se ele se lembrava de um fenômeno curioso: se você apanhar pela alça um balde, colocar água até certa altura, der um certo embalo e, na seqüência, girá-lo no sentido vertical com o braço esticado, a água não vai cair, parecendo contrariar a gravidade.
“Essa eu conheço. Basta que a aceleração centrípeta seja maior que a gravidade”, reagiu o garoto. Admirado, eu confirmei e insisti: “Mas como é que se calcula isso?” A resposta veio rápida. A aceleração centrípeta é dada pelo quadrado da velocidade dividido pelo raio da circunferência de giro, isto é, a = .
Oba, brinquei, então para a água – ou o ciclista – não cair deve ser verdade que ou gr.
Se usarmos a fórmula anterior v = 2gh, teremos v2 = 2gh e, portanto, 2gh gr ou 2h r ou ainda h . Viva! Basta que o h, isto é, o desnível entre o ponto P0 de saída e o ponto P1, seja maior ou igual (melhor que seja maior, não se esqueça de que desprezamos o atrito) que a metade do raio de giro ou maior que a quarta parte do diâmetro da circunferência.
A cada experiência como essa, reforço a crença em que a escola treina os alunos para passar na prova e não para que incorporem conhecimento. Quando isso mudar, ir à aula será tão bom quanto andar de bicicleta, não necessariamente de cabeça para baixo, como andam nossos currículos, mas alegremente, pelas chapadas da vida.
Luiz Barco é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo