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Seu cartão sabe tudo

Ele tornou a vida mais simples, e está no bolso de todo mundo. Mas também revela muita coisa a seu respeito. As empresas de cartão querem prever o que você vai fazer - antes que você mesmo saiba. Conheça os segredos do dinheiro de plástico.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 24 mar 2010, 22h00

Bruno Garattoni e Mariana Delfini

Pense nas 10 últimas coisas que você comprou. Várias, talvez a maioria, não foram com dinheiro nem cheque – foram com um cartão de débito ou crédito. Todo mundo tem um. Passar o cartão é tão corriqueiro quanto escovar os dentes. Mas por trás desse ato banal existe algo que você nem imagina: bancos de dados que registram todos os seus passos e sabem muito sobre você. Quer um exemplo? As empresas de cartão são capazes de prever se uma pessoa vai se divorciar. E com até dois anos de antecedência – ou seja, antes que o próprio indivíduo tenha resolvido acabar com o casamento. Suas compras dizem muito sobre você. E a maquininha está ouvindo.

Quando você passa o cartão, ela se comunica com a credenciadora (nome técnico da empresa de cartão) e com o seu banco – ambos precisam autorizar a transação. Durante os segundos em que o visor diz “processando”, muita coisa acontece. Uma bateria de computadores checa várias informações, como o valor da compra, o tipo de estabelecimento, o horário e o período entre essa compra e a anterior. Para descobrir se é você mesmo que está usando o cartão, tudo isso é comparado com o seu histórico. Já teve o cartão blo-queado ao fazer uma compra muito alta, num lugar onde nunca tinha estado, ou porque usou o cartão duas vezes em menos de uma hora? Os computadores concluíram (incorretamente) que a operação não batia com os seus padrões de consumo.

 

 

O problema é que essas regras são estáticas, ou seja, não conseguem acompanhar a evolução e a variedade de golpes, calotes e trapaças envolvendo cartões. Então as empresas resolveram partir para uma técnica muito mais sofisticada: as redes neurais. Basicamente, são programas de computador que conseguem aprender sozinhos: analisam as próprias decisões, descobrindo onde acertaram e erraram, e também são capazes de inventar novos critérios de julgamento. Enquanto você está comprando, tem um robô pensando a respeito.

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E ele sabe muito sobre você: que a sua comida preferida é a japonesa e, mais que isso, que você costuma frequentar mais as temakerias de determinado bairro. Que a sua família provavelmente acaba de comprar um animal de estimação – por causa das visitas frequentes a pet shops. Que sua irmã, prima, amiga ou até você mesma vai se casar – pelos gastos crescentes em floricultura, igreja, bufês, loja de vestidos. Que você está usando óculos, por causa das contas em oftalmologistas e óticas. É um grande estudo psicológico ou sociológico sobre a população – baseado apenas em dados.

As empresas de cartão não falam abertamente sobre o assunto, e fazem questão de ressaltar que não têm acesso ao nome dos consumidores – informação que fica no banco onde a pessoa tem conta. Elas só conseguem ver o que está no recibo, ou seja: o número do cartão, nome do estabelecimento, horário e valor da compra. Mas isso já é o bastante.

E, como as empresas de cartão têm um banco de dados monstruoso – só o computador central da MasterCard, nos EUA, armazena 652 mil gigabytes de dados (175 vezes o tamanho da Biblioteca do Congresso americano, a maior do mundo) – estão chegando a conclusões bem específicas. Ou, no mínimo, curiosas. Segundo o economista americano Ian Ayres, professor da Universidade Yale e autor do livro Supercrunchers, sobre estatística e análise de dados, elas têm como saber, com até dois anos de antecedência, se uma pessoa vai se divorciar. “A Visa já faz isso, para prever melhor o risco de atrasos no pagamento”, afirma. É que a separação desestrutura a vida financeira das pessoas, aumentando muito as chances de calote. Ayres não revela como a empresa faz isso (quais tipos de compra poderiam revelar propensão ao divórcio), mas a informação foi confirmada por uma empresa que também tem enormes bancos de dados sobre seus consumidores: o Google. “O grau de acerto é de 98%”, disse a vice-presidente do Google, Marissa Mayer. “Eles veem isso pelo padrão das suas compras.”

As empresas de cartão de crédito negam. Mas alguns critérios acabaram vazando. Por exemplo: se você muda de supermercado, tem grandes chances de estar com problemas financeiros. É o que pensa a American Express, que nos EUA rebaixou o limite de crédito de consumidores que tinham começado a frequentar o Wal-Mart – porque seus computadores apontaram que, pelo menos para os americanos, comprar lá indica queda no padrão de vida. “Segundo nossa análise, os consumidores que fazem transações com certas lojas apresentam maior probabilidade de não pagar”, declarou a Amex em nota. A medida, que também afetou quem comprava em outros estabelecimentos comerciais, deu resultado: o índice de inadimplência da empresa caiu de 4,9% para 4,4%. Ninharia? Muito pelo contrário: cada 1% a menos de calote no setor equivale a US$ 10 bilhões economizados pelas empresas de cartão. Afinal, estamos falando de uma dívida gigantesca, que só nos EUA chega a US$ 972 bilhões (mais da metade do PIB brasileiro).

O mundo está pendurado no cartão de crédito. Com a crise global e o risco de calotes em massa, as empresas resolveram apostar mais e mais em suas redes neurais. Isso levou a algumas conclusões estranhas (fazer terapia, ter um massagista ou ir a determinados bares aumenta as chances de uma pessoa não pagar o cartão) ou simplesmente engraçadas. “Ofendido é pouco. Eu fiquei com nojo”, disse à TV americana o executivo Kevin Johnson, que nunca atrasou um pagamento – mas teve seu limite de crédito reduzido de US$ 10 mil para US$ 3 mil depois que viajou com a mulher para a Jamaica. A inadimplência é o grande ponto fraco da indústria de cartões desde seu surgimento. Mesmo porque ela só começou por causa de um quase calote.

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O primeiro cartão do mundo

Se o senhor Frank McNamara andasse pela rua Teodoro Sampaio, em São Paulo, certamente ficaria orgulhoso. Lá, uma banca de camelô ostenta orgulhosamente o adesivo: “Aceito Visa”. Os cartões estão mesmo em toda parte. Taxistas, engraxates e até vendedores de praia aceitam. É o resultado de uma revolução econômica e tecnológica que começou em 1950, quando McNamara foi jantar e, na hora de pagar a conta, percebeu que sua carteira estava vazia – teve de ligar para a esposa e pedir que ela trouxesse dinheiro de casa. Ele teve a ideia de convencer 14 restaurantes de Nova York a aceitarem um cartão (que era de cartolina) como pagamento. Nascia o primeiro cartão de crédito do mundo: o Diners Club (“clube dos convivas”, em inglês). Só no primeiro ano, ele conquistou 42 mil usuários, que podiam usá-lo para pagar a conta em 330 bares, restaurantes e hotéis conveniados.

Demorou um pouco, mas outras empresas acabaram percebendo que o negócio era bom. Em 1958, foram fundadas a Visa (que na época se chamava Americard) e a American Express, que começou a dominar o mercado porque vendia uma imagem de exclusividade: sua anuidade era propositalmente mais cara que a dos outros cartões. E em 1966 surgiu a MasterCard – que hoje controla, junto com a Visa, 96% do mercado mundial de cartões. O crescimento do setor se deve muito à insistência das empresas: em 2005, enviaram pelo correio 10,2 bilhões de cartões de crédito não solicitados – 1,5 para cada mulher, homem e criança viva na Terra. Some a isso os cartões de débito, hoje em dia quase inevitáveis (todo mundo com conta em banco possui automaticamente um), e você entenderá por que o dinheiro de plástico tomou conta do mundo.

As operadoras de cartão não se importam se você atrasar um pouco os pagamentos – afinal, 40% do que elas faturam vem de juros e multas. Mas, ao distribuir bilhões de cartões para pessoas que mal conhecem, se expõem a um risco cada vez maior de calote. Daí sua mania de analisar o comportamento humano.

Mas por trás disso tudo existe uma pergunta mais profunda. Por que, afinal, tanta gente gasta mais do que deve?

A fatura está no cérebro

Dinheiro não dá em árvore. E a fatura faz questão de lembrar, todo mês, que toda ação gera uma reação. Mas às vezes não parece, quando acumulamos tíquetes amarelos no fundo da carteira, que mais uma compra não vai fazer tanta diferença? Não é irresponsabilidade: o cartão engana nosso cérebro. O neuroeconomista George Loewenstein, da Universidade Carnegie Mellon, descobriu que duas regiões no cérebro competem quando estamos pensando em comprar alguma coisa. O núcleo accumbens (NAcc), associado a sensações boas, costuma se ativar quando percebemos que vamos ganhar alguma coisa de que gostamos – comida ou dinheiro, por exemplo. Num estudo de mapeamento do cérebro, o NAcc se acendeu quando alguns produtos foram mostrados para cobaias humanas. Mas, quando os preços dos produtos eram mostrados, outra região era ativada: a ínsula, região do cérebro associada a dor e perda. Quanto mais injusto parecia o preço, mais acesa a ínsula ficava. Se sua atividade ultrapassasse determinado nível, conta Loewenstein, as pessoas não compravam o produto.

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Os cartões distorcem essa competição entre as partes do cérebro. Porque, quando você paga com eles, a ínsula fica inativa – não faz nada para conter a empolgação do NAcc. Isso também explica por que, conforme outros estudos apontaram, as pessoas gastam mais com dinheiro de plástico. “Parece que você não está gastando”, diz o professor. Verdade.

A única solução é fazer mais força para se controlar. Afinal, não há nada pior do que tomar um susto ao abrir a fatura do cartão. Como o que levou o americano Josh Muszynski, 22 anos, que recebeu da Visa a maior cobrança da história: US$ 23 quatrilhões. “Fiquei em pânico”, conta ele, que havia usado o cartão de débito para comprar um reles maço de cigarros. Foi um erro do sistema, que bloqueou o cartão e multou Josh por ter ultrapassado seu limite de gastos. Cigarro: US$ 5. Multa: US$ 15. Receber uma fatura de US$ 23 quatrilhões? Não tem preço.

 

Passando recibo

Analisamos todos os gastos que uma pessoa fez, com cartão, durante quase 20 dias. É um funcionário da SUPER. Veja o que descobrimos sobre essa pessoa

26/8 Quarta
10h24 – Posto de Serv Dinâmico – R Heitor Penteado R$ 52 [1]
Tem carro (só os proprietários pagam pelo combustível).

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27/8 Quinta
11h35 – Estacionamento Clube Pinheiros R$ 3,50 [2]

29/8 Sábado
13h36 – Ellus do Brasil R$ 309 [3]
Compra roupa de grife e paga à vista. Bom poder aquisitivo.
15h29 – Estacionamento C. Pinheiros R$ 3,50 [4]
16h23 – UO Katsu Sushi R$ 44 [5]
Sushi custa caro. Pelo valor, estava sozinho (ou não pagou a conta para o acompanhante).

31/8 Segunda
21h14 – HortiFrutti R$ 23,82 [6]

3/9 Quinta
22h42 – Pão de Açúcar – Rua Teodoro Sampaio R$ 57,61 [7]

4/9 Sexta
11h42 – Fran’s Café – Haddock Lobo R$ 10,70 [8]

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5/9 – Sábado
15h14 – Estacionamento C. Pinheiros R$ 3,50 [9]
16h19 – UO Katsu Sushi R$ 50 [10]
Mesmo padrão do último sábado. Primeiro vai ao clube, depois almoça sozinho.

6/9 Domingo
01h28 – La Tartine – R Fernando Albuquerque R$ 39 [11]
03h42 – Auto Posto Bela Cintra R$ 50 [12]
Após 10 dias, abasteceu o carro com 25 l de combustível (vide itens 1 e 12). Logo, roda em média 20 km por dia. Mora perto do trabalho.

7/9 Segunda
15h22 – Sushi Tanabe R$ 26,50 [13]
Gosta mesmo de comida japonesa. E de pagar apenas a própria conta.

8/9 Terça
20h53 – Droga Verde R$ 30,07 [14]
22h03 – Horti Frutti R$ 24,62 [15]

11/9 Sexta
11h25 – Farmácia de Manipulação R$ 37 [16]

12/9 Sábado
15h12 – Ki Peixe – R da Cantareira R$ 24 [17]
16h26 – Ki Peixe – R da Cantareira R$ 22,50 [18]
Vai muito ao clube e come bem: sushi, peixe e verduras da quitanda (vide itens 2, 4, 5, 6, 9, 10 e 15). Por isso, apesar dos recentes gastos com remédios (14, 16), terá poucos problemas de saúde na vida – e baixo risco de dar calote.

13/9 – Domingo
14h03 – Estacionamento C. Pinheiros [19] R$ 3,50

15/9 Terça
21h01 – Auto Posto Itália R$ 30 [20]
0h01 – Mercearia São Pedro R Rodésia R$ 16 [21]
0h04 – Mercearia São Pedro R Rodésia R$ 43 [22]
Duas compras no mesmo estabelecimento alimentar, com mínima diferença de tempo. Deve ter pago a conta para os amigos. Até que enfim!

16/9 Quarta
21h50 – Estacionamento C. Pinheiros R$ 3,50 [23]
Foi ao clube à noite e chegou tarde em casa. E gasta pouco em supermercado (item 7). Logo, não tem filhos.

17/9 Quinta
0h52 – Bar da Praça $ 55 [24]
Pagou toda a conta de novo. Será que ganhou um aumento?

 

 

À prova de fraudes. Será?
Cartão do futuro tem visor e teclado embutidos

Muita gente já foi vítima dos “chupacabras”: maquininhas adulteradas, que capturam o número e a senha do seu cartão e repassam para golpistas – que usam essas informações para cloná-lo. Mas a tecnologia CodeSure, que a Visa já está testando na França e na Inglaterra, promete acabar com isso. Você digita a sua senha no teclado do próprio cartão (veja acima). Ele gera uma senha temporária, exibida num pequeno visor. Aí você digita essa senha, na maquininha, para autorizar sua compra. É uma chateação, mas reduz muito o risco de fraudes: como a maquininha só tem acesso à senha temporária, não consegue clonar o cartão.

 

Para saber mais

Credit Card Nation: The Consequences of America’s Addiction to Credit

Robert D. Manning, Basic Books, 2001.

 

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