Reencarnação: Memórias de outras vidas
O conceito de reencarnação está impregnado de fé e misticismo. Mas a multiplicação de relatos impressionantes de lembranças e marcas de supostas vidas passadas atrai cada vez mais o interesse da ciência
Marcos de Moura e Souza
Em uma das mais prestigiosas universidades públicas dos Estados Unidos, a Universidade de Virgínia, pesquisadores da área de saúde mental dedicam-se há décadas a desafiar os céticos. Ali são estudados, entre outros casos que ultrapassam os contornos da ciência convencional, relatos sobre reencarnação, muitos deles submetidos à checagem. Resultados conclusivos não há, mas eles são, no mínimo, intrigantes. À frente da Divisão de Estudos da Personalidade está o mais famoso pesquisador sobre o assunto, o já octogenário Ian Stevenson. Seus livros e textos em publicações científicas descrevem casos de crianças que se recordariam de vidas passadas e de pessoas com marcas de nascença que teriam sido originadas por cicatrizes de existências anteriores.
Stevenson e sua equipe avaliam casos de reencarnação da forma que consideram a mais acurada possível. Fazem entrevistas, confrontam a versão narrada com documentações, comparam descrições com fatos que só familiares da pessoa morta poderiam saber. Por tudo isso, ele se tornou um dos maiores responsáveis por ajudar a deslocar – ainda que apenas um pouco – o conceito de reencarnação do campo da fé e do misticismo para o campo da ciência.
Mas o que leva esse renomado médico, com mais de 60 anos de carreira, e tantos outros pesquisadores a encararem a reencarnação como uma hipótese válida?
Bem, são histórias como, por exemplo, a de Swarnlata Mishra, uma menina nascida em 1948 de uma rica família da Índia e que se tornou protagonista de um dos casos clássicos – digamos assim – da literatura médica sobre vidas passadas. A história é descrita em um dos livros de Stevenson, Twenty Cases Suggestive of Reincarnation (“Vinte Casos Sugestivos de Reencarnação”, sem versão brasileira), e se assemelha a outros registrados pelo mundo sobre lembranças reveladoras ocorridas, principalmente, na infância. Mas, ao contrário da maioria, não está relacionado a mortes violentas, confrontos ou traumas.
A história de Swarnlata é simples. Aos 3 anos de idade, viajava com seu pai quando, de repente, apontou uma estrada que levava à cidade de Katni e pediu ao motorista que seguisse por ela até onde estava o que chamou de “minha casa”. Lá, disse, poderiam tomar uma xícara de chá. Katni está localizada a mais de 160 quilômetros da cidade da menina, Pradesh. Logo em seguida, Swarnlata começou a descrever uma série de detalhes sobre sua suposta vida em Katni. Disse que lá seu nome fora Biya Pathak e que tivera dois filhos. Deu detalhes da casa e a localizou no distrito de Zhurkutia. O pai da menina passou a anotar as “memórias” da filha.
Recordações de mãe
Sete anos depois, em 1959, ao ouvir esses relatos, um pesquisador de fenômenos paranormais, o indiano Sri H. N. Banerjee, visitou Katni. Pegou as anotações do pai de Swarnlata e as usou como guia para entrevistar a família Pathak. Tudo o que a menina havia falado sobre Biya (morta em 1939) batia. Até então, nenhuma das duas famílias havia ouvido falar uma da outra.
Naquele mesmo ano, o viúvo de Biya, um de seus filhos e seu irmão mais velho viajaram para a cidade de Chhatarpur, onde Swarnlata morava. Chegaram sem avisar. E, sem revelar suas identidades ou intenções aos moradores da cidade, pediram que nove deles os acompanhassem à casa dos Mishra. Stevenson relata que, imediatamente, a menina reconheceu e pronunciou os nomes dos três visitantes. Ao “irmão”, chamou pelo apelido.
Semanas depois, seu pai a levou para Katni para a casa onde ela dizia ter vivido e morrido. Swarnlata, conta Stevenson, tratou pelo nome cada um dos presentes, parentes e amigos da família. Lembrou-se de episódios domésticos e tratou os filhos de Biya (então na faixa dos 30 anos) com a intimidade de mãe. Swarnlata tinha apenas 11 anos.
As duas famílias se aproximaram e passaram a trocar visitas – aceitando o caso como reencarnação. O próprio Stevenson testemunhou um desses encontros, em 1961. Ao contrário de muitos casos de memórias relatadas como de vidas passadas, as da menina continuaram acompanhando-a na fase adulta – quando Swarnlata já estava casada e formada em Botânica.
Assim como esse, há milhares de outros episódios intrigantes, alguns mais e outros menos verificáveis. Somente na Universidade da Virgínia há registros de mais de 2500 casos desse gênero. Acontece que, para a ciência, a ocorrência de casos isolados, ainda que numerosos, não prova nada. Os céticos atribuem essas histórias a fraudes, coincidências ou auto-induções às vezes bem intencionadas.
Mas, embora a ciência duvide da reencarnação, a humanidade convive com a crença nela faz tempo. De acordo com algumas versões, o conceito de reencarnação chegou ao Ocidente pelas mãos do matemático grego Pitágoras. Durante uma viagem que fizera ao Egito, ele teria ouvido diversas histórias e assistido a cerimônias em que espíritos afirmavam que vinham mais de uma vez à Terra, em corpos humanos ou de animais. O mesmo conceito – com variações aqui e ali – marcou religiões orientais, como o bramanismo e o hinduísmo (e, mais tarde, o budismo), e também religiões africanas e de povos indígenas, segundo Fernando Altmeier, professor de Teologia da PUC de São Paulo. Na verdade, “a reencarnação nasce quase ao mesmo tempo que a idéia religiosa tanto no Ocidente quanto no Oriente, com os egípcios, os gregos, os africanos e os indígenas”, diz Altmeier. A idéia, porém, não deixou traços – pelo menos não com a mesma força – nas três religiões surgidas de Abraão: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.
No século 19, o francês Hippolyte Leon Denizard Rivail – ou Allan Kardec – e outros estudiosos dedicaram-se a um tema então em voga na Europa: os fenômenos das mesas giratórias, em que os sensitivos alegavam que espíritos se manifestavam com o mundo dos vivos. Kardec escreveu uma série de livros sobre as experiências mediúnicas que observou e, tendo como base a idéia da reencarnação, fundou a doutrina espírita. Para os espíritas, reencarnação é um ponto pacífico. Mas muitos deles preferem dar crédito a relatos embasados no cientificismo. “Dirijo a área de assistência espiritual na Federação Espírita do Estado de São Paulo, por onde passam 200 mil pessoas por mês, mas, no que diz respeito à fenomenologia, sou mais pé no chão, sou muito rigoroso”, afirma o advogado Wlademir Lisso, de 58 anos.
Terapias e evidências
Nas aulas que dá na federação sobre espiritismo e ciência, Lisso – que é autor de três livros – se baseia, sobretudo, nas pesquisas feitas por universidades estrangeiras, que considera mais confiáveis. Lisso diz que já perdeu as contas das vezes que ouviu pessoas lhe dizendo que tinham lembranças de outras vidas, algumas, talvez, por meio das chamadas terapias de vidas passadas. “Terapias, por si só, não provam nada”, diz Lisso, referindo-se a uma prática que supostamente leva a pessoa a escarafunchar memórias tão remotas quanto as de duas, três encarnações anteriores. Os espíritas não recomendam a experiência. “Até os anos 50, flashes ou outras manifestações eram considerados distúrbios mentais”, diz Lisso. Com o tempo, ganhou eco a explicação de que muitos desses sintomas poderiam ser evidências de existências passadas.
No Brasil, um dos poucos que seguiram a linha da investigação mais científica foi Hernani Guimarães Andrade, que morreu há quase dois anos. Autor de diversos livros, entre eles Reencarnações no Brasil (O Clarim, sem data), Andrade conta o caso de uma menina paulistana, identificada apenas como Simone. Nos anos 60, quando tinha então pouco mais de 1 ano, ela começou a pronunciar palavras em italiano, sem que ninguém a tivesse ensinado. Passou também a relatar lembranças que remontavam à Segunda Guerra Mundial. Seu relato era tão vívido que familiares se renderam à idéia de que fragmentos de uma encarnação passada ainda pairavam em sua mente. A avó da menina registrou, em um diário, mais de 30 palavras em italiano pronunciadas pela neta e histórias de explosões, médicos, ferimentos e morte. As recordações pararam de jorrar quando a menina tinha por volta de 3 anos.
Mas as supostas memórias de crianças como Simone e Swarnlata não são os únicos sinais que chamam a atenção dos estudiosos. Em várias universidades ao redor do mundo, os pesquisadores passaram a examinar também marcas de nascença – associadas a lembranças – como possíveis evidências de reencarnação. O mesmo Stevenson reuniu um punhado desses casos num estudo divulgado em 1992. Segundo o levantamento feito com 210 crianças que alegavam ter lembranças de outras vidas, cerca de 35% apresentavam marcas de nascimento na pele. Em 49 casos, foi possível obter um documento médico, geralmente um laudo de necropsia, das pessoas que as crianças haviam supostamente sido em outra encarnação. A correspondência entre o ferimento que causara a morte e a marca de nascença foi considerada, no mínimo, satisfatória em 43 casos (88%), segundo Stevenson.
Um exemplo citado por ele é o de uma criança da antiga Birmânia que dizia se lembrar da vida de uma tia que morrera durante uma cirurgia para corrigir um problema cardíaco congênito. Essa menina tinha uma longa linha vertical hipopigmentada no alto do abdome. A marca correspondia à incisão cirúrgica da tia. Stevenson recorre a uma frase do escritor francês Stendhal para se referir a casos de memórias e de marcas que, às vezes, podem passar despercebidos: “Originalidade e verdade são encontradas somente nos detalhes”.
Tinta fresca
Para pesquisador, há fortes indícios de que muitas crianças conseguem se lembrar de suas vidas anteriores
O professor Jim B. Tucker, da Divisão de Estudos da Personalidade do Departamento de Psiquiatria da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, estuda e atende casos de depressão e outros distúrbios em crianças e adolescentes. Tem especial interesse por casos de crianças que alegam ter lembranças de vidas passadas. Nesta entrevista, concedida por e-mail à SUPER, Tucker fala das características mais freqüentes desses relatos e de fatos que mais o impressionaram.
Quantos casos de crianças que alegam lembrar de vidas passadas o senhor já observou?
Temos mais de 2 500 casos registrados em nossos arquivos. Eu, pessoalmente, vi vários.
Quais são as principais características desses casos?
Os casos geralmente envolvem crianças pequenas que dizem se lembrar de uma vida passada. Elas podem descrever a vida de um membro falecido da família ou um amigo da família ou podem descrever a vida de um estranho num outro local. Outros fatos incluem marcas de nascença que combinam com os ferimentos no corpo da pessoa falecida e comportamentos que parecem ligados à vida anterior.
Há uma explicação para o fato de as lembranças ocorrerem principalmente durante a infância?
As crianças começam a fazer seus relatos numa idade precoce, logo que começam a falar. Isso faz sentido, porque parecem ser memórias que elas carregam consigo desde a vida anterior.
Quais tipos de evidências mais impressionaram o senhor?
Ainda acho que a mais forte evidência envolve declarações documentadas que alguma criança tenha feito e que se provaram verdadeiras em relação a uma pessoa que viveu a uma distância significativa. O dr. Jünger Keil (pesquisador da Universidade de Tasmânia, na Austrália) investigou um caso na Turquia no qual um garoto deu muitos detalhes sobre um homem que tinha vivido a 850 quilômetros e morrido 50 anos antes de o menino ter nascido.
Como médico, o senhor considera possível explicar esses relatos de uma perspectiva científica?
Nenhum desses casos é “prova” da reencarnação, e um cético pode sempre encontrar um ponto fraco em um caso ou, como objetivo de desacreditá-lo, em qualquer estudo médico. Entretanto, como um todo, os casos mais significativos constituem um forte argumento de que algumas crianças parecem, sim, possuir memórias de vidas anteriores.