Fernanda Campanelli Massarotto
Eu matei Mozart. Eu matei Mozart.” O italiano Antonio Salieri compôs dezenas de óperas, deu aulas a alguns dos maiores compositores da história e inspirou sonatas de Beethoven. Mas seu nome é lembrado por essa frase, que ninguém sabe se ele proferiu mesmo ou se não passa de um boato maldoso.
Salieri nasceu em 1750 na República de Veneza. Era um músico de talento, tanto que, aos 16 anos, foi notado pelo compositor da corte austríaca Florian Gassmann, que o levou para Viena. Em 1770, ele fez sua estréia com a ópera Le Donne Letterate. O ápice da fama chegou quatro anos depois, quando ele assumiu o cargo de Gassmann e se tornou compositor da corte do imperador José II e diretor da orquestra do Teatro Municipal de Viena.
Era um empregão. Poucos músicos tinham o privilégio de um salário – a maioria era obrigada a se contentar com encomendas dos poucos mecenas endinheirados ou com turnês caça-níqueis pelas capitais européias. Era o caso de Wolfgang Amadeus Mozart, um austríaco seis anos mais novo que o italiano. Enquanto Salieri compunha a ópera que inaugurou o fantástico Teatro della Scala, em Milão, Mozart se esfalfava tocando pela Itália. Enquanto Salieri dava aulas a alunos ilustres, como o austríaco Schubert, o húngaro Liszt e o alemão Beethoven, Mozart amargava uma malsucedida tentativa de ganhar a vida em Paris. Em 1781, Mozart mudou-se para Viena, onde fez sucesso. Mas nada que se comparasse ao estrelato de Salieri. A ópera Don Giovanni, de Mozart, por exemplo, foi ofuscada pela recepção estrondosa que o público vienense deu a Tarare, de Salieri, em 1787.
Resumindo: se um dos dois tinha motivos para invejar o outro, ao contrário do que diz a lenda, era Mozart. O fato é que os dois músicos provavelmente se davam bem. Verdade que, vez ou outra, se encontra nas cartas de Mozart uma referência despeitada ao italiano e ao seu poder. Mas jamais encontrou-se um indício qualquer de que Salieri tivesse algo contra Mozart.
No final de 1791, Mozart trabalhou muito. Produziu obras-primas como A Flauta Mágica e a interminada Requiem. Em outubro, Salieri assistiu à ópera A Flauta Mágica e derramou-se em elogios. No dia 20 de novembro, Mozart começou a sentir enjôos e dores nos braços e nas pernas. Quinze dias depois, morreu, antes de completar 36 anos. O médico Eduard Guldener von Lobes diagnosticou “febre reumático-inflamatória”.
Uma semana depois, apareceu, numa publicação alemã, o boato de que Mozart fora envenenado. Não passava disso: um boato. Não havia razão nenhuma para crer na hipótese conspiratória. Doenças rápidas como aquela eram comuns em tempos pré-penicilina. (Mozart fora tratado com sangrias feitas com instrumentos não esterilizados. Estranho seria ele sobreviver…).
Trinta anos mais tarde, na década de 1820, o Romantismo, um movimento artístico baseado na sensibilidade e no lirismo, tinha se espalhado pela Europa. Os românticos adoravam Mozart e seu estilo arrebatado e desprezavam o conservadorismo de Salieri. Surgiu então o boato de que o austríaco fora envenenado pelo italiano. Ninguém sabe onde a história nasceu. Mas é previsível que alguém inventasse um final trágico para a vida do maior músico de todos os tempos – os românticos adoravam histórias assim. Salieri continuava vivo e era atormentado pelas intrigas. A suposta confissão do crime, nunca comprovada, teria sido feita em 1823, quando o italiano estava internado em um hospício. Ele morreria dois anos depois.
Em 1830, outro gênio, o escritor russo Aleksandr Pushkin, escreveu o drama Mozart e Salieri, no qual descreve a cena em que Salieri derrama veneno na bebida de Mozart. Essa cena foi revivida várias vezes depois – primeiro na ópera Mozart e Salieri, que Rimskji-Korsakov compôs em 1898, depois na peça Amadeus, que Peter Shaffer escreveu em 1970, e, finalmente, no filme homônimo, que Milos Forman dirigiu em 1984. Ficou para a história a versão, por mais improvável que ela fosse.
Salieri deu aulas para Beethoven e fez mais sucesso que Mozart. Se um deles tinha razão para ter inveja, pasme, era Mozart