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Os médicos de verdade por trás do roteiro de House

Quem são os doutores que, bem longe das câmeras, propõem (e solucionam) os enigmas do seriado de TV

Por Marcel Nadale
Atualizado em 24 jan 2019, 18h38 - Publicado em 15 abr 2011, 22h00

[Esta matéria foi escrita na época em que a série estava no auge. Divirta-se com o flashback]

Uma modelo de 15 anos dá entrada no hospital. Ela sofreu uma crise de cataplexia (um “desmaio acordado”) em plena passarela. Internada, começa a apresentar também espasmos musculares e problemas neurológicos. Ninguém sabe o que está causando esses sintomas. Pode ser um tumor, mas os exames não mostram nada suspeito. Quem mata a charada é o rabugento Dr. Gregory House: a paciente, na verdade, é um pseudo-hermafrodita masculino. O tumor está em seus testículos, que nunca “desceram”.

Telespectadores no mundo inteiro se acostumaram a doses semanais de genialidade do protagonista de House, a série mais assistida na TV paga brasileira, segundos dados do Ibope. É exibida às quintas, às 23 horas, no Universal Channel. O que ninguém imagina é que, assim como a modelo com cromossomos XY, Gregory House também é uma anomalia médica. Ele é um homem com 4 cérebros. Mais especificamente, os cérebros de Harley Liker, Lisa Sanders, John Sotos e David Foster, os doutores de verdade que trabalham nos bastidores do programa.

Foster é o único que trabalha como roteirista. Liker, Sotos e Sanders Foster é o único que trabalha como roteirista. Liker, Sotos e Sanders são apenas consultores técnicos da série. Apenas não. São eles que garantem a veracidade de todos os casos médicos, que ajudam a amarrar um sintoma comum a outro improvável ou ajeitam as peças para que os mais estranhos desejos dos roteiristas se concretizem. “Uma vez quiseram saber como seria possível fazer o cérebro do personagem parar de funcionar por um longo período e depois voltar ao normal”, conta Liker. Depois de muita pesquisa, ele descobriu que o milagre da ressuscitação era, sim, possível.

Consultores médicos são relativamente recentes na TV. “Nos anos 60, os produtores não se preocupavam tanto com verossimilhança porque o público não era capaz de perceber os erros”, afirma Sotos. A mudança veio na década de 1990, quando ER (no Brasil, Plantão Médico) se tornou o drama mais assistido na TV americana exatamente por causa da atenção aos detalhes. “Agora o público exige realismo”, diz Foster.

Em House também se busca realizar corretamente os procedimentos de resgate – uma enfermeira no set ajuda atores a manusear injeções e sacos de soro intravenoso. Mas a grande estrela da série é a doença, não os médicos. Não é incomum a equipe do Dr. House passar mais tempo discutindo possíveis diagnósticos do que interagindo com o paciente. E é por isso que o papel dos consultores é fundamental.

A cada 10 dias, eles recebem 65 páginas de roteiro para revisar e completar as lacunas relacionadas ao caso médico e seus possíveis diagnósticos. Depois de 6 temporadas, as dúvidas têm vindo cada vez mais cabeludas: que tipos de erro um exame de sangue computadorizado pode cometer? É possível que um câncer cause lesões gigantes na pele? Quais doenças podem fazer alguém chorar lágrimas de sangue? “Para mim, o mais complicado é quando eles têm o ponto A e o ponto C e pedem para eu encontrar o B”, diz John Sotos. “Um dia desses, queriam que um problema neurológico causasse alterações cardíacas. Acabei descobrindo que uma ativação assimétrica de uma parte do cérebro pode provocar arritmia.”

Para chegar a soluções como essa, os consultores exploram uma ferramenta quase esquecida na série: os livros. O passo seguinte é pesquisar sites médicos na internet. Se nada dá certo, apela-se para os colegas de profissão. “Às vezes, uma ligação de 8 minutos pode poupar 8 horas na biblioteca”, diz Sotos.

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Tudo isso pode. Só não pode trocar ideias com outro consultor. Os escritores preferem receber avaliações independentes de cada um dos conselheiros e, assim, promover uma “concorrência amigável”, para ver quem melhor soluciona o desafio. “Médicos são naturalmente competitivos”, brinca Lisa.

Sem glamour
Como é roteirista, David Foster é o único dos 4 médicos que é pago para aplicar os casos clínicos dentro de um roteiro dramático. Mas isso não impede que outros também sugiram histórias baseadas na literatura científica ou em seus próprios pacientes (confira alguns casos na página 82). E não importa que a doença seja raríssima. “Se já houve algum caso ou é possível acontecer, pode entrar na série”, explica Liker. Mas o mais importante é que ela tenha sintomas confusos, que possibilitem muitos diagnósticos. “As melhores doenças são como mágicos: chamam a atenção para um ponto do corpo, enquanto o verdadeiro truque está acontecendo em outro lugar”, diz Lisa.

Humildes, os consultores fazem questão de dar o mérito do sucesso de House aos roteiristas. “Transformar um caso médico em uma trama completa é um esforço gigantesco”, admite Foster. Um script leva cerca de 7 semanas para ser escrito. Os consultores não dedicam mais que 8 horas semanais à série.

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No resto do tempo, eles mantêm seus trabalhos habituais. Sotos é funcionário de uma empresa de aparatos médicos. Lisa e Harley mantêm seus consultórios e atendem pacientes regularmente. Nenhum deles revela o cachê, mas, segundo Sotos, “é improvável que alguém ganhe a vida só como conselheiro para a TV”. Eles ainda garantem que o programa não aumenta o movimento de pacientes. “Até hoje, só 3 ou 4 reconheceram meu nome no crédito da série”, diz Lisa. E nem lhes abriu a porta de Hollywood: Lisa, que vive na costa leste dos EUA, só consegue visitar o set de filmagens uma vez por ano; Harley, cujo consultório fica em Beverly Hills, comparece apenas no começo de cada temporada, quando organiza palestras de especialistas para a equipe e o elenco do show; e o tímido Sotos prefere evitar os estúdios completamente.

Muito trabalho, cobranças frequentes, pouca grana e nenhuma chance de tomar uma cerveja com o protagonista Hugh Laurie. Por que, então, continuam no emprego? “Boa pergunta”, ri Sotos. “Acho que o que me estimula é mesmo o desafio.”

É seriado, não documentário
Os consultores se esforçam e mandam bem: é muito raro aparecer um erro ou uma incoerência nos casos médicos da série. Mas, apesar de todo o cuidado, eles sabem que não podem querer de um programa o mesmo rigor científico da vida real. E, para ser consultor de House, é preciso entender o espírito da coisa. “Certa vez, os roteiristas queriam diagnosticar um paciente com ‘vaginose bacterial na boca’. Eu disse que, se era na boca, não podia ser vaginal”, conta Lisa Sanders. “Mas eles queriam deixar assim, porque era mais engraçado. E quer saber? Vi o episódio e realmente era!”

As adaptações vão além de “licenças poéticas” com a terminologia médica. “Medicina é um trabalho coletivo. No universo House, porém, não há enfermeiras nem técnicos de exame. A mesma equipe que dá banho em velhinhos faz complexas ressonâncias magnéticas”, comenta Lisa. O tempo é outro fator a ser relevado: sintomas que levariam muitos dias para aparecer surgem em poucas horas. Mas nada se compara às críticas ao comportamento insensível e pouco ético que caracteriza o personagem de House. “O estilo de tratamento agressivo que ele emprega é um péssimo exemplo, porque pode causar mais danos do que benefícios ao paciente”, diz o jornalista Andrew Holtz, autor do livro A Ciência Médica de House (editora Best Seller).

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É. Tem especialista que reclama. Mas a maioria concorda que, se não fosse assim, a série não teria a mesma graça e ainda vê no programa um aspecto educacional importante, ao mostrar, em detalhes, o sistema de tentativa e erro conhecido como diagnóstico diferencial. “Nos outros shows, o longo processo de diagnóstico às vezes é resumido em uma única frase: ‘Você tem câncer’. Na vida real, não é bem assim que funciona”, ressalva Holtz.

Mas a cumplicidade da classe médica não alivia a pressão sobre os consultores. Sotos, por exemplo, ainda se angustia ao se lembrar de uma vez que descobriu um erro crasso em um script prestes a ser filmado (não adianta, ele não revela qual foi – segundo ele, para não prejudicar os roteiristas responsáveis). “Não havia tempo para mudar. Alertei os produtores, mas eles decidiram rodar o roteiro do jeito que estava. Me senti péssimo”, relembra. Tempos depois, uma reviravolta. “Encontrei um artigo sobre a mesma doença do episódio e descobri que o roteiro não estava errado! Uma nova descoberta permitia que aquilo que havíamos escrito realmente acontecesse na vida real.” Esse House é mesmo imbatível…

Quem é quem nos bastidores
Lisa Sanders, 53 anos, consultoraGraduou-se em Yale, em 1997. É clínica geral e responsável pela seção “Diagnóstico” no jornal The New York Times, que, além de inspirar a criação de House, rendeu um livro. Atende pacientes em seu consultório e também coordena o programa de treinamento de Yale no Hospital Waterbury, em Connecticut.John Sotos, “50 e poucos”, consultor
Cardiologista, é o mais novo membro da equipe de consultores: passou a assessorar os roteiristas de House depois que lhes enviou uma cópia de seu livro sobre curiosidades médicas.Formou-se na Universidade John Hopkins e hoje trabalha para uma empresa de aparatos clínicos. Tímido, prefere não aparecer em fotos.

Harley Liker, 46 Anos, consultor

Clínico geral graduado pela Faculdade Albert Einstein, Nova York, em 1992. Começou a trabalhar com TV graças ao vizinho, o produtor David Shore, que pediu sua ajuda no primeiro episódio de House. Harley mantém uma clínica e uma consultoria de medicina em Beverly Hills, em Los Angeles.

David Foster,44 anos, roteirista
Formou-se em Harvard em 1995 e, assim como Harley e Lisa, especializou-se em clínica geral. Chegou a manter uma clínica de desintoxicação em Boston, mas sempre gostou de escrever para Hollywood. Fez dois frilas para a 1ª temporada de House e logo foi contratado. Hoje, dedica-se apenas ao show, como roteirista.

De onde vêm essas ideias?
Fotos, casos de colegas e literatura médica. Tudo pode ser inspiração para um novo episódio

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Uma pequena vida (temporada 3, episódio 17)
Em um episódio que agitou o debate sobre aborto, House opera uma grávida e o feto estende sua mãozinha para segurar o dedo do médico. “Vimos uma foto que mostrava exatamente isso. Escrevemos o episódio de trás para a frente, começando por essa cena”, afirma David Foster.

O inimigo do homem (temporada 4, episódio 3)
Quando House encontra um paciente e seu cachorro mortos, faz referência a uma pesquisa que diz que certos remédios humanos são letais para alguns cães. “Quando li esse artigo, sabia imediatamente que era o tipo de reviravolta ideal para a série”, relembra Sotos.

Descuido explosivo (temporada 5, episódio 7)
Inspirada em uma história que ouviu de amigos, Lisa sugeriu o acidente causado por um dos médicos de House durante uma cirurgia abdominal. Ao tentar cauterizar um vaso sanguíneo do paciente, ele provoca uma chama de 30 cm de altura. “A fagulha incendiou um bolsão de gás do intestino”, conta Lisa.

Como fazer seu próprio episódio
Comece com a doença-tema. Há 3 regras: ineditismo, respaldo científico e sintomas pouco específicos. Sigamos uma sugestão de Lisa Sanders: “Eu adoraria ver um episódio sobre doença de Whipple”.

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Para saber mais

Every Patient Tells a Story: Medical Mysteries and the Art of Diagnosis.
Lisa Sanders, Editora Broadway, 2009.

A Ciência Médica de House

Andrew Holtz, Best Seller, 2008.

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