Conflito entre católicos e protestantes é pano de fundo de “Belfast”, indicado ao Oscar
Ao longo de 30 anos, mais de três mil pessoas morreram na guerra civil que dividiu a Irlanda do Norte. Entenda por quê.
Indicado a sete categorias no Oscar deste ano, incluindo Melhor Filme, Belfast chegou aos cinemas brasileiros na última quinta-feira (10). O filme foi dirigido e escrito por Kenneth Branagh (Thor, Cinderela, Morte no Nilo), que conta aqui uma história autobiográfica: suas lembranças de infância são a base para o enredo do longa, que explora um tenso momento social da Irlanda do Norte.
O filme se passa em Belfast, capital do país (e terra natal de Branagh) em agosto de 1969. O jovem Buddy (Jude Hill) vive com a mãe (Caitriona Balfe), os avós (Judi Dench e Ciarán Hinds) e o irmão mais velho (Lewis McAskie) – o pai (Jamie Dornan) trabalha na Inglaterra, e volta de vez em quando para ver a família.
As coisas se complicam quando, de repente, Buddy se vê no meio de uma furiosa manifestação de norte-irlandeses protestantes, que tomaram as ruas do bairro e incendiaram casas à procura de católicos. O filme, então, mescla o cotidiano de Buddy e sua família, com diversas referências à cultura dos anos 1960, e a violenta guerra civil que eclodiu naquele período.
Mas, afinal, quais as raízes desse conflito?
Passado conturbado
Essa história começa no século 12, quando o monarca inglês Henrique II iniciou o processo de anexação da ilha da Irlanda ao seu reinado. Henrique nomeou o filho, o príncipe João, Senhorio da Irlanda, mas a dominação não veio de imediato. Por séculos, a ilha contou com terras controladas por irlandeses.
Isso mudou a partir do século 17, quando a Coroa britânica iniciou um largo processo de ocupação da Irlanda. Milhares de colonos da Inglaterra, Escócia e País de Gales (de maioria protestante) passaram a viver em terras antes ocupadas por irlandeses, de maioria católica.
Assim, o mesmo território passou a ser ocupado por dois grupos hostis, um acreditando que suas terras haviam sido usurpadas e o outro temendo rebeliões. Entre as várias províncias da ilha, a de nome Ulster, ao norte, concentrou a maior parte dos imigrantes britânicos.
Ao longo do século 19, a região de Ulster se industrializou e se urbanizou mais rápido que o sul do país, ainda dependente da agricultura, aumentando as diferenças econômicas entre os dois lados. Em 1920, o parlamento inglês criou duas regiões com autogoverno limitado na ilha: a de Ulster (ou Irlanda do Norte) com predomínio de protestantes, e a dos condados restantes (a Irlanda) com maioria católica.
Em 1921, a Irlanda se tornou totalmente independente do Reino Unido, e assim permanece até hoje. A Irlanda do Norte, por outro lado, integra o bloco de países, junto a Inglaterra, Escócia e País de Gales.
Protestos – e mais conflitos
Na Irlanda do Norte, de maioria protestante, ser católico foi se tornando um problema com o passar das décadas. O preconceito influenciava na distribuição de empregos, moradia e em outros aspectos da sociedade.
Em Belfast, por exemplo, o maior empregador era o estaleiro – por lá, 95% dos trabalhadores eram protestantes. “Mesmo em cidades de maioria católica, como Derry (dois terços da população se diziam católicos), os distritos eleitorais foram tão administrados que permaneceram sob controle de partidos protestantes por 50 anos”, explicou ao History James Smyth, professor de história da Universidade de Notre Dame.
Não demorou para que a sociedade se dividisse. Os nacionalistas (ou republicanos) eram norte-irlandeses de maioria católica que prezavam pela soberania do país. Já os unionistas (ou lealistas) eram, sobretudo, protestantes e defendiam a permanência no Reino Unido.
Nos anos 1960, inspirados pelo movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, grupos e lideranças locais começaram a se organizar para combater a discriminação contra a minoria católica no país. Um dos resultados disso foi a criação, em 1967, do NICRA (Associação dos Direitos Civis da Irlanda do Norte, em inglês), formado por membros de diversas religiões e vertentes políticas.
Em 5 de outubro de 1968, na cidade de Derry, a segunda maior do país, ativistas nacionalistas organizaram uma passeata para falar sobre políticas habitacionais discriminatórias, que resultavam na segregação por motivos religiosos. O governo da Irlanda do Norte proibiu a manifestação, mas ela aconteceu mesmo assim.
A repressão foi grande. Oficiais da RUC (Royal Ulster Constabulary, a força policial da época) agrediram manifestantes com cassetetes, numa tentativa de dispersá-los. A violência foi registrada pelas câmeras de TV – e a repercussão só aumentou a tensão social no país.
“The Troubles”
Muitos especialistas dizem que a manifestação daquele 5 de outubro foi o começo do chamado The Troubles (“Os Problemas”), um período de tensão e violência com direito a carros-bomba, assassinatos e intervenção do exército que se estenderia até o final dos anos 1990. Nesse intervalo, 3,6 mil pessoas morreram e 30 mil ficaram feridas.
Por outro lado, outros argumentam que os Troubles começaram, de fato, em agosto de 1969 (o período em que Belfast se passa). No dia 12 daquele mês, um grupo unionista (protestante) organizou uma passeata em Derry para comemorar antigas vitórias militares protestantes do século 17. Era uma tradição comum em toda a Irlanda do Norte.
O problema: o desfile patriótico passou por Bogside, uma região predominantemente católica da cidade. Os nacionalistas de lá encararam isso como uma provocação e começaram a se preparar para o confronto, com barricadas na rua e coquetéis molotov.
O acontecimento ficou conhecido como a Batalha de Bogside. A polícia interveio para acabar com o conflito e também foi atacada. A batalha durou três dias e ressoou em outras regiões, como Belfast, onde uma multidão lealista incendiou 1,5 mil casas em bairros católicos.
Em meio ao caos, o presidente da Irlanda do Norte apelou para o governo britânico. Pediu para que o exército entrasse no país e ajudasse a controlar a situação. Foi o início da Ocupação Banner, operação militar que só terminaria para valer em 2007.
Domingo Sangrento
A chegada do exército britânico foi vista com bons olhos pela população católica – seria uma forma de se proteger da violência que só crescia. Mas essa concepção mudou em 1971, quando o governo norte-irlandês introduziu a lei do internamento: dali em diante, as autoridades poderiam prender qualquer pessoa sem julgamento. A justificativa foi de que essa era a única saída para restaurar a ordem no país.
Em 30 de janeiro de 1972, 15 mil pessoas (a maioria nacionalistas católicos) se reuniram em Derry para protestar contra a nova lei. A marcha, que culminaria no centro da cidade, foi organizada pela NICRA.
No entanto, o exército montou barricadas que bloquearam os manifestantes, que responderam com pedras. As autoridades responderam com balas de borracha, gás lacrimogênio e canhões d’água. Alguns membros da marcha foram presos.
Uma hora depois do início do confronto, 21 soldados britânicos dispararam balas de verdade. 13 pessoas morreram e 17 ficaram feridas naquele que ficou conhecido como o Domingo Sangrento (“Bloody Sunday”, que veio a inspirar a música “Sunday Bloody Sunday”, do grupo irlandês U2, lançada em 1983.).
Em Dublin, capital da Irlanda, uma multidão enfurecida incendiou a embaixada britânica em resposta ao Domingo Sangrento. No dia seguinte, o governo anunciou a abertura de um inquérito para investigar o caso, mas não deu em nada: os soldados foram absolvidos e o Exército não recebeu nenhuma punição, o que só aumentou a insatisfação popular. O caso foi reaberto em 1998 e até hoje não foi concluído.
Nas décadas de 1970 e 1980, a Irlanda e a Irlanda do Norte sofreram diversos atentados terroristas de organizações paramilitares. O IRA (Exército Republicano Irlandês) era separatista – defendia a independência total da Irlanda do Norte ante o Reino Unido, além de condenar qualquer resquício de influência britânica na Irlanda. A sua contraparte era a Força Voluntária do Ulster, que pregava o oposto (mais aproximação com o Reino Unido).
Os conflitos só terminaram em 1998, com a assinatura do Acordo de Belfast (ou Acordo da Sexta-Feira Santa). Os governos britânico e irlandês, apoiados por partidos políticos da Irlanda do Norte, definiram as relações entre as três partes. O Reino Unido, por exemplo, concedeu maior autonomia para a Irlanda do Norte, o que acalmou a causa separatista.