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Cosme

Um conto inédito de Samir Machado de Machado

Por Samir Machado de Machado
Atualizado em 26 out 2020, 16h46 - Publicado em 16 Maio 2017, 18h17

(Breno Macedo/Superinteressante)

Canto-vos do mui altivo e nobre alferes Licurgo, o do Coração Direito, o de muitas vidas, que, ao raiar deste mês de fevereiro de 1757, espera que o novo ano venha menos carregado em desgraças que o anterior. Veste seu uniforme gasto dos dragões de cavalaria do Forte de Rio Pardo, tendo como bagagem apenas seu par de sabres, seu rifle, sua pistola e, nas costas, seu violão. Minto: leva também deliciosas rapaduras manjar-divino, néctar de deuses, as quais compartilha comigo em sua generosidade quando de mim espera que me supere em esforço. Leva pólvora e balas para a pistola, leva algum dinheiro, leva caneca de latão para esquentar a água e os equipamentos para fazer fogareiro, se digo que leva é por força de expressão, esta tralha toda quem carrega sou eu.

Quanto a mim, sabei vós desde já que não é com um qualquer que estais a tratar. Não deis ouvidos à ralé invejosa que chama aos meus de rafeiros ordinários – que sabem estes janotas empetecados no conforto de seus estábulos? Pois que a minha ascendência é das mais nobres. Em minhas veias corre o sangue dos primeiros de meu povo a chegar neste continente: os mais belos e altivos andaluzes que, por sua vez, descendem do mais puro-sangue dos árabes, e minha velha mãe, que o bom Eqüus a tenha, traçava nossa ascendência do grande Bucéfalo até o valoroso Babieca. Por dois séculos após nossa chegada, corremos soltos por estas terras até nos tornarmos parte dela – crioulos, como aqui se diz – e agora somos tão naturais deste continente quanto os próprios índios. E minha cor avermelhada de canela, esta cor alazã que herdei de meus pais e legarei a meus filhos, é o próprio emblema régio de minha nobre raça. Mas, por favor, não se deixe intimidar por minha excelsa nobreza.

Chamai-me Cosme.

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Que fazemos nós cá, atravessando estas tijucas pantanosas, subindo e descendo estas serras altíssimas, de trilhas escorregadias e estreitas, cruzando rios e caudais de águas frigidíssimas? Pois que Licurgo está a trabalho. Um amigo seu, que se intitula naturalista, ficou tão impressionado com os relatos de viajantes que se pôs a colecionar das coisas exóticas que abundam aqui nesta terra que os portugueses batizaram com nome de pau, dito Brasil. Assim, incumbiu Licurgo de arranjar-lhe um exemplar específico e muy raro desta fauna, fosse morto e conservado num barril de sal, ou vivo numa jaula – mas espero que morto, assim dá menos trabalho carregar. Não estamos sós, claro, pois Licurgo não é louco de atravessar sozinho terras tão inóspitas como São Paulo: outros dois nos acompanham. O primeiro é Merivaldo, um ex-bandeirante paulista que nos foi garantido ser hábil conhecedor destas terras. Como todo paulista, não sabe uma palavra de português e só fala nheengatu, a língua-geral do Brasil. De modo que contratou-se também o índio Cauã. Educado por jesuítas, Cauã conhece e fala bem o português, tanto quanto seu tupi nativo.

– Vossa mercê fala português melhor que muitos que conheço – notou Licurgo.

– Obrigado – agradeceu Cauã. – É que, hoje em dia, saber uma língua estrangeira é fundamental.

Cada um vem montado no seu próprio cavalo, e se não vos digo os nomes destes companheiros é porque esta história é minha; se eles quiserem, que cantem as suas. Ao anoitecer do décimo dia de nossa viagem, montamos nosso acampamento e fizemos uma fogueira. Quando o dia nasceu, Merivaldo encontrou sinais e pegadas nos arredores, e determinou: cá chegamos, na terra dos raros macacos-do-pé-virado, também chamados de mico-papagaio-paulista, cujos avistamentos são tão raros que muitos os creem extintos – e mesmo há quem os julgue meras lendas ou delírio de viajantes. Mas como então pretende meu amo atrair uma criaturinha tão arisca e traiçoeira? Pois que recursos não faltam a Licurgo, e já diz o ditado: “a sedução tem a forma de um violão”. Tirou o seu das costas e dedilhou e cantou uma modinha que estava muito popular no Rio de Janeiro, composta por seu amigo Domingos Caldas Barbosa, o Lereno:

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Homens errados e loucos / Homens errados e loucos

Em que amor / em que amor vos engolfais?

Da gostosa liberdade / muito pouco vos lembrais

Liberdade! Liberdade e nada mais!

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Mal terminou a canção e escutamos um farfalhar nas folhas de árvores ao nosso redor. Licurgo olhou para cima e já o viu, cutucando Cauã para que preparasse a armadilha. Pois como muito acontece nas vilas, em que moças há que se deixam enganar por um violão bem tocado, também assim acontece por vezes na natureza. E o que víamos ali era uma espécie de macaquinho do tamanho de um sagui: um mico cujo pelo formava como que uma juba ao redor da cabeça, tal qual num leão, mas de cor muito vermelha, da cor do rubi. Seus olhos negros não tinham pupilas e, o mais curioso, tinha os pés virados para trás, com os calcanhares à frente. Quando nos viu, abriu a boca e fez uma imitação perfeita da voz de Licurgo: “…e nada mais!”. Merivaldo virou o rosto, nervoso, preocupado em procurar de onde vinha aquela voz que outra vez repetiu: “…nada mais!”. Cauã o cutucou apontando o macaquinho, indicando-lhe pelo nome que lhe davam em tupi-guarani: kuru’pir.

– Kuru’pir! – repetiu o paulista, apavorado.

E mal viu onde estava o sagui, incorreu no ato reflexo da gente de sua terra: atirou primeiro, perguntou depois. O sagui caiu morto do galho ao chão. Licurgo levou as mãos à cabeça, enquanto Cauã balançava o rosto, irritado. Mas então ouviu-se novamente a imitação da voz de Licurgo, vinda do topo das árvores: “…nada mais!”. Olhei para cima: veja só que curioso, há outro ali. “Nada mais!”. E, hum, mais dois acolá. Talvez cinco. “Nada mais!”. E ali estão outros dez. E mais dez. Quando meu amo olhou para cima, disse aos demais:

– Agora, devagar… não façam nenhum movimento brusco.

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(Breno Macedo/Superinteressante)

A árvore estava apinhada com mais de cinquenta daqueles saguis de pelo vermelho e pés-virados, a gritar em coro, bestiais: nadamais, nadamais. Já não era a imitação da voz de meu amo, mas um grunhido cada vez mais animalesco. Licurgo se aproximou de mim devagar, pôs a mão no alforje e dali tirou uma rapadura, que me deu na boca – por Eqüus seja abençoado, ó mui digno e honrado Licurgo! Manjar divino, néctar de deuses! Quê? Como assim, vamos fugir? Já flui por minhas veias a alegria e a vontade açucarada de sair correndo, vejo que meu bom e generoso mestre monta em minhas costas, também Cauã recua até seu cavalo. Também o paulista monta no seu, enquanto os micos se amontoam mais e mais e já passam dos oitenta no topo das árvores, que estão mais vermelhas que verdes, enquanto soltam gritos guturais: nadamais, nadamais.

Então corremos, e aquela horda de micos rubros avançou. Nadamais, nadamais, gritavam os saguis, saltando pelas arvores de galho em galho e de cipó em cipó como uma onda vermelha. A saliva desses micos, soube depois, é usada pelos caingangues da região para envenenar a ponta de suas flechas. Uma única mordida põe um homem adulto a dormir, duas já bastam para se ganhar uma viagem sem volta às eternas Montanhas do Açúcar-Cande. E, saltando entre as árvores, no nosso encalço com uma assustadora agilidade, os demoniozinhos atiravam-nos pinhas e sementes, um ou outro cagando na mão e arremessando, como é típico dos macacos – minha Santa Epona, que bicho mais imundo! Para sorte de Licurgo, erraram o alvo; para azar o meu, acertaram em mim, que coisa indigna em um nobre de tão Alta Cavalice como eu; mas antes perder a dignidade que a vida. Um saltou dos galhos ao meu pescoço e agarrou-se em minha crina – arre, vai-te embora, coisinha nojenta!–, mas Licurgo, em um safanão, o arremessou longe. Outro saltou à cabeça de meu amo, mas caiu levando-lhe embora o chapéu. Dois saltaram às costas de Merivaldo, e o morderam várias vezes antes que o pobre coitado conseguisse deles se desvencilhar. Dito e feito: caiu do cavalo ao chão. Licurgo olhou para trás a tempo de só ver aquela multidão peluda e vermelha atirar-se ao corpo do pobre bandeirante em berros guturais: nadamais, nadamais! Dali a poucas horas, só ficariam roupa e ossos.

Por fim cruzamos o vau de um rio, sendo a água barreira natural para estes saguis desgraçados. Deixamos aquela região das Serras Gerais para nunca mais voltar, se assim o bom Eqüus quiser.

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– Bem já disse meu irmão: um homem não vai caminhando simplesmente por São Paulo adentro – falou Licurgo. – Mas agora voltaremos de mãos vazias.

Eis que Cauã sorriu e mostrou o que havia no saco que trazia em seu cavalo: o corpo daquele primeiro sagui, felizmente já defunto e pronto para ser conservado num barril de sal grosso. Que meu São Agro das causas perdidas o abençoe pela presença de espírito!

– Agora o lugar disso é um gabinete de curiosidades – sentenciou Licurgo.

Seu amigo naturalista ficará satisfeito. E, quem sabe assim, movido por seu sucesso, meu mui digno amo pare de perder tempo com estas enrascadas e se dedique, em vez de caçar micos endiabrados, a perseguir a grandeza que tenho certeza que está no nosso destino de cavalo e cavaleiro. Pois este, vos digo com orgulho, é meu mestre, o mui digno e altivo Licurgo, o do Coração Direito, senhor de muitas-vidas; e cuja história somente eu, seu mais fiel amigo, descendente do glorioso Babieca e do grande Bucéfalo, fui autorizado a contar. Permita que eu aqui vos narre destes nossos maravilhosos dias, os Dias da Mais Alta Aventura. Mas, por favor, não deixeis que minha beleza e excelsa nobreza o intimide.

Chamai-me somente Cosme.

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