Paulo Terron
Enquanto o mundo vasculha a internet por informações relativas aos acontecimentos estranhos da ilha de Lost, o tema principal do seriado fica em segundo plano. É nisso que acredita o professor David Lavery, da Middle Tennessee State University, autor de diversos livros sobre televisão, incluindo Unlocking the Meaning of Lost. “Com certeza a fé é o principal elemento da série”, defende. A teoria do professor é simples: os personagens não conseguiriam viver em uma ilha tão “atípica” – em uma situação extrema, com pouca comida e condições meramente básicas para a sobrevivência – caso não tivessem uma crença forte em alguma coisa. Qualquer coisa.
“Redenção, fé e esperança são temas importantes dentro de Lost, e eles aparecem o tempo todo durante as duas primeiras temporadas”, completa Lynnette Porter, parceira de Lavery nas pesquisas sobre a simbologia da série. “‘Redenção’ certamente é um tema-chave no programa. Charlie, por exemplo, luta para ter uma vida melhor, mas está sempre lidando com desafios que testam sua fé e o impedem de ser uma pessoa melhor. Esses temas todos são parte integral de Lost, tão importantes quanto qualquer mistério da ilha ou desenvolvimento do roteiro. O crescimento dos personagens é minha parte preferida do programa, e tenho certeza que os fãs concordam.”
E, apesar de alguns personagens terem religiões definidas (veja quadro na pág. 28), a espiritualidade independe desse fator. “Locke, por exemplo, tem uma espiritualidade muito forte e sofre uma crise de fé na segunda temporada.”
Quando Locke finalmente consegue abrir a escotilha, ele transfere toda a confiança que tem na ilha (ele acredita que o destino o levou até lá, onde conseguiu voltar a andar) para o controle do computador onde tem de digitar os números. Quando descobre um vídeo institucional da Iniciativa Dharma em outra estação, passa a ter dúvidas sobre a verdadeira função daquilo tudo – se é que há alguma.
Religião pós-11/9
Uma manobra arriscada dos criadores de Lost foi colocar um personagem iraquiano na trama depois da invasão do Iraque, iniciada pelos EUA logo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Mais do que isso, colocar um ex-soldado da Guarda Republicana. E muçulmano. Curiosamente, isso não gerou a hostilidade que poderia – o que só prova que a ilha tem mesmo algo de estranho. “Um dos motivos que me fizeram gostar tanto do começo da primeira temporada foi a primeira interação entre Hurley e Sayid, quando é revelado que Sayid era soldado no Iraque. Hurley não sabe como reagir porque ele gosta do iraquiano, mas também tem um amigo que lutou contra Sayid na Guerra do Golfo”, conta Lynnette. “É importante que um programa de televisão mostre perspectivas diferentes – e Lost faz isso sem pregar. A série espelha uma cultura global e faz com que os telespectadores tenham pontos de vista diferentes sobre cada evento.”
Fora esse conflito interno, outra presença constante no roteiro é a disputa entre o bem e o mal. O que não quer dizer que essas posições sejam sempre claramente definidas. Mesmo porque cada um dos personagens tem, em seu passado, alguma “mancha” da qual tenta se libertar (e aqui entra a redenção de novo). Resta saber quanto tempo essa paz vai durar.
“Na segunda temporada os personagens mostram menos tolerância, tanto entre eles quanto em relação aos Outros”, diz Lynnette. “Lost faz os telespectadores questionar a definição de ‘bem’ e ‘mal’ e mostra que mesmo as pessoas boas podem tomar decisões que levam ao mal. Por isso os personagens não são separados em categorias, todos têm falhas. A série faz um bom trabalho ao levar os fãs a reavaliar como (ou se) devem julgar alguém.” Esse respeito pela religião alheia é demonstrado e defendido pelo próprio Sayid no episódio Walkabout. Quando Jack sugere que os corpos das vítimas sejam queimados, Sayid pede para que antes tentem descobrir a crença de cada pessoa.
Jack, o pastor
A imagem do cristianismo é a mais forte dentro da série. Os túmulos dos mortos são sempre marcados com uma cruz. No episódio House of the Rising Sun, os sobreviventes encontram dois esqueletos em uma caverna e os chamam de Adão e Eva. Mr. Eko cita o Antigo Testamento em uma conversa profunda com Locke.
Mas, como os criadores de Lost costumam esconder dicas preciosas nos nomes dos perso-nagens, não dá para fugir de uma básica: o sobrenome do líder dos sobreviventes é Shephard (quase shepherd, “pastor”). Só para confirmar, o nome do pai de Jack é Christian Shephard – algo como “pastor cristão”. “Cada nome na ilha tem motivo e significado”, disse Damon Lindelof, co-criador da série. “Jack é, na prática, o líder da sociedade da ilha. Um nome apropriado. Ele guia o rebanho.”
Dize-me para quem rezas
Deus
Eko Tunde (Mr. Eko)
Católico Tornou-se padre em um esquema internacional de tráfico de drogas, mas se dedica à religião na ilha. Lida com a dor de ter perdido o irmão, que também era padre (por fé, diferentemente de Eko).
Charlie Pace Católico
Sofre ainda mais com o fato de a ilha estar coberta de estátuas da Nossa Senhora, todas recheadas de heroína. Ajuda Mr. Eko a construir uma igreja. Aparece confessando quando a banda de rock dele recebe a proposta de uma gravadora.
Claire Littleton Católica
Foi batizada, junto com o bebê, por Mr. Eko, depois de estranhar o comportamento perturbado de Charlie. Claire queria proteção divina.
Rose
Cristã, provavelmente protestante. Quando Clair e e o bebê são seqüestrados pelos Outros, é Rose quem conduz Charlie em uma oração que começa com a frase “Heavenly father” (em tradução livre, “Pai nosso, que estais no céu”).
Alá
Sayid Jarrah Muçulmano
Aparece rezando no episódio Live Together, Die Alone, o último da segunda temporada. É contra a cremação dos corpos da vítimas, já que o ato é inaceitável para a religião dele.
Dharma Budista
O grupo que comanda o experimento na ilha pode seguir o budismo. Dharma é a palavra usada para descrever os ensinamentos de Buda. O 108 de Lost pode estar ligado ao 108-bead mala, da meditação budista.
Para ler mais
Bíblia
Quando aparece: A Bíblia é o livro que mais aparece e é citado em Lost. Inspirou nomes de episódios (Exodus 1 e 2, The 23rd Psalm) e teve incontáveis referências: Adão e Eva, em House of the Rising Sun; Davi e Golias, em Adrift; Rei Josias em What Kate Did, o batismo de Jesus em Fire+Water; e o nome do filho de Claire, Aaron. O livro surge ainda quando Eko encontra um volume oco que contém um filme de orientação. Ou na biblioteca que Desmond mantém no bunker.
Sobre o que é: Conjunto de escrituras consideradas sagradas pelos cristãos.