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Máfia

Don Corleone morreu. O crime organizado dos chefões não existe mais. Ele agora funciona como as grandes empresas: é globalizado, comandado por acionistas e, mais do que nunca, presente na sua vida

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h04 - Publicado em 22 jan 2011, 22h00

Maurício Horta

Roberto Saviano contou 3 600 pessoas mortas nos últimos 30 anos pela Camorra – a máfia de Nápoles. E, desde que publicou seu livro Gomorra, sobre o grupo criminoso, o jovem escritor de 29 anos tem se escondido para não entrar na lista.

E foi nessa condição que ele viu Gomorra se tornar um best seller mundial. O sucesso, aliás, não é só por a Camorra ser a maior organização criminosa da Europa mas também por ela representar a nova estrutura do crime organizado. Sabe a hierarquia da Cosa Nostra, dos poderosos chefões que mandam em tudo? Ela não tem mais vez. A Camorra cresceu tanto por se organizar numa rede flexível, composta de vários núcleos e aberta a receber mais e mais clãs. O Crime Companhia Limitada virou Crime Sociedade Anônima. Eis a receita das máfias de hoje.

Essa transformação tem a ver com o que aconteceu no mundo no fim do século 20. A URSS ruiu e o liberalismo derrubou fronteiras. As comunicações ficaram mais fáceis. As viagens, mais baratas. O comércio internacional cresceu de US$ 3,7 trilhões em 1993 para US$ 13,6 trilhões em 2007. E o alcance de suas atividades estendeu-se também. Mas com ele também foi globalizada a criminalidade. Nunca o crime organizado atravessou tantas fronteiras nem movimentou tanto dinheiro – 20% da economia mundial, segundo o venezuelano Moisés Naím, ex-diretor do Banco Mundial e autor do livro Ilícito. “Quando um traficante de drogas nepalês opera na Tailândia em nome de grupos nigerianos que refinam um produto em Lagos antes de exportá-lo para os EUA em bagagens de mulheres europeias, é quase certo que alguns dos envolvidos nessa sequência estejam igualmente negociando outros bens – talvez peles de animas exóticos do Sudeste Asiático, cds piratas ou mão-de-obra infantil”, escreve Naím.

A desregulamentação do comércio não apenas fortaleceu os criminosos como enfraqueceu os que deveriam combatê-los. O lado B do fim da Guerra Fria são o tráfico de seres humanos, o de drogas e o de armas.

Mas o crime organizado foi além do submundo e se infiltrou na economia legal. Seja numa roupa de grife, num cigarro, num xarope contra a tosse seja num caminhão de lixo, a Máfia S.A. já pode ter chegado até você.

“Serviços públicos”
As máfias do século 21 lucram com a ecologia, removendo lixo tóxico de indústrias, só que de um jeito especial. Saúde pública também está no pacote. E a venda de armas, outro serviço do crime, dá mais lucros do que nunca – e permitiu uma aberração: um país oficialmente governado pela máfia.

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Ecomáfia O Triângulo da Morte está a poucos quilômetros de Nápoles. Lá, meninas mens-truam aos 7 anos, ovelhas nascem com olhos abaixo da boca e as taxas de câncer são as mais altas da Itália. Graças à indústria do lixo industrial dominada pela Camorra. Em 1988, a máfia forçou pela primeira vez caminhoneiros que transportavam lixo tóxico a Nápoles a pagar por proteção. Bom lucro, mas logo a Camorra sacou que ganharia muito mais controlando esse setor que o extorquindo. Então abriu empresas de lixo. Enquanto uma de verdade cobrava US$ 1 para coletar cada quilo de tóxicos, a máfia, mascarada com nomes como Ecoverde, cobraria apenas US$ 0,10. Ela só não precisaria informar que o caminhão ficaria numa usina de tratamento apenas pelo tempo suficiente para falsificar documentos. E logo despejaria o lixo como não-tóxico em aterros sanitários – ou no mar, rios e campos próximos a plantações e pastos. Bom para a indústria, bom para a máfia – mas péssimo para quem come a mussarela de búfala. Depois de pastarem em áreas contaminadas com dioxina, búfalas produzem leite tóxico. O consumo de queijo caiu 40% na Itália e países como Japão e Coreia do Sul barraram sua importação. A máfia trouxe tanto lixo do resto da Europa que, no Natal de 2007, Nápoles declarou seus aterros sanitários cheios. Cem toneladas dos restos das ceias de Natal e do Ano-Novo viraram por semanas banquete fétido para ratos e insetos nas ruas da cidade.

Outra máfia do sul da Itália, a ‘Ndrangheta, foi acusada em 2007 de traficar lixo nuclear de Itália, Suíça, França, Alemanha e EUA nos anos 80 e 90. Por amor a sua terra, os mafiosos teriam preferido enviar o lixo para a Somália a enterrar na Calábria. Segundo o Programa Ambiental da ONU, são inúmeros os carregamentos de lixo tóxico e nuclear que as praias da Somália recebem. E os barris enferrujados expõem o povo à radiação.

O sinistro país dos gângsteres
Alguns países exportam petróleo; outros, bananas. Já a Transnístria é especializada em bombas, metralhadoras, lançadores de foguetes, minas, mísseis antiaéreos – alguns remanescentes dos tempos soviéticos, outros produzidos localmente por fábricas sem fiscalização. Após a queda da URSS, o 14º Exército russo permaneceu como uma força de paz na Transnístria – uma estreita faixa industrializada da miserável Moldávia localizada ao longo da fronteira com a Ucrânia. Em 1992, ela se autodeclarou independente. E, mesmo sem ser reconhecida por país algum, a protorrepública se apoderou de 42 mil peças do armamento soviético. Na Transnístria, “O Estado é a empresa criminosa, e vice-versa”, diz Naím. O presidente do lugar, Igor Smirnoff, está no cargo desde a independência, enquanto seu filho Vladimir Orloff (quer dizer, Smirnoff), fundou o principal time de futebol da Moldávia, o Sheriff FC. Para ele, bancou dois luxos: um belo estádio mais 3 jogadores brasileiros.

Xarope de radiador de carro
Outra ocasião em que o crime afetou a saúde pública foi em 2006 e 2007, quando120 pessoas morreram no Panamá depois de tomar xarope contra tosse. Tudo porque a Fábrica de Glicerina Taixing, localizada na China, vendia como glicerina uma solução de dietileno glicol, solvente industrial tóxico utilizado como anticongelante em automóveis. Enquanto a glicerina custava cerca de US$ 1 800, a solução adulterada saía por US$ 800. E foi ela que serviu de base para o xarope.

O senhor das armas

Viktor Bout é o típico empresário bem- sucedido da globalização. Nascido no Tajiquistão (parte da ex-URSS), fala inglês, francês, português, uzbeque e várias línguas africanas – e sabe aproveitar oportunidades quando lhe aparecem. Seu ramo? Entregas. Era o mais versátil office-boy do mundo. Frango congelado, tanques de guerra, flores, ajuda humanitária e Kalashnikovs. Sua rede logística, com traficantes, empresas de transporte, financiadores e produtores de armas, que abasteceu guerras das selvas colombianas até o Iraque, rendeu a Bout centenas de milhões de dólares por mais de 15 anos, até ele ser preso na Tailândia.

Essa história tinha começado em 1991, quando Bout, formado em letras, foi parar em Angola como tradutor do Exército soviético. No mesmo ano, a URSS entrou em colapso, e ele ficou desempregado. Mas por pouco tempo. Ainda aos 25 anos, arranjou seus primeiros aviões de carga – 3 Antonovs velhos. O antigo bloco soviético estava cheio de arsenais abandonados, prontos para ele comprar e revender a governos instáveis, ditadores e guerrilhas pelo mundo.

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Só na África, forneceria armas para ao menos 15 países. Na guerra civil de Angola, o fato de ser aliado do governo não o impediu de entregar 20 mil bombas, 6 300 foguetes antitanques, 790 AK-47, 1 000 lançadores de foguetes e 15 milhões de cartuchos de munição aos rebeldes da Unita. Já no ex-Zaire, mandou um avião resgatar o ditador Mobutu Sese Seko, que fugia de rebeldes armados pelo próprio Bout. Mas espera aí: se o contrabando sempre fez parte do mundo das armas, o que há de novo nisso? Tudo, afirma Moisés Naím. “O comércio de armamentos antes era dominado por governos que compravam de outros governos. Agora é dirigido por diversas redes de intermediários. Não se trata mais de um pequeno clube de trapaceiros, mas de uma ampla comunidade global.”

Venda de remédios falsos
1% nos países desenvolvidos
10% nos países em desenvolvimento
20% nos países da ex-URSS
30% nos subdesenvolvidos
50% na internet
520 empresas na Itália mandam seu lixo tóxico

– US$ 75 bilhões É o que a venda de remédios falsos deve render em 2010. O dobro de 2005.

– 4 vacas é o preço de um fuzil Kalashnikov contrabandeado no Quênia. A oferta cresceu tanto que, há 20 anos, ele valia 15 vacas.

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– 6 mil vacas foram sacrificadas na região italiana da Campânia em 2003 porque seu leite estava tóxico. Os pastos ficavam próximos a aterros clandestinos dominados pela máfia.

Cigarros e drogas
As máfias fazem dinheiro com drogas legalizadas também. Elas compram carregamentos de cigarros das multinacionais e revendem sem pagar impostos – embolsando o que deveria ir para o Estado. Para completar, essa tramoia ajuda a abrir novas rotas para o tráfico de cocaína e heroína.

Tragadas
Nenhum produto de consumo é mais contrabandeado que o cigarro, segundo a OMS. É fácil de transportar, tem custo de produção baixo e a maior parte do preço de venda é de impostos. É só tirar o governo da parada para ganhar uma fortuna. No Reino Unido, onde um maço custa aproximadamente US$ 10, contrabandistas ganham US$ 2 milhões a cada contêiner que entra no país.

O tráfico de cigarro surgiu como uma das atividades ilegais mais lucrativas e generalizadas nos países da ex-Iugoslávia nos anos 90. Fábricas legais nos EUA ou UE fabricavam cigarros para exportação – logo, sem pagar os altos impostos. De lá, iam a zonas de livre comércio na Holanda ou na Suíça. Lá eram vendidos a países com altos níveis de corrupção, como o Egito e o Uzbequistão, de onde sindicatos distribuíam a outras regiões.

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Para abastecer o mercado europeu, aviões traziam o produto até Montenegro. Do porto de Bar, no sul do país balcânico, partiam todas as noites centenas de lanchas carregadas com cartelas de cigarro até Bari, no sul da Itália, onde a máfia continuava a distribuição local. Mesmo com cada atravessador ganhando uma fatia do preço, os pacotes chegavam ao mercado negro europeu 50% mais baratos que os que pagavam impostos. Esse esquema chegou a ser responsável por 60% do PIB de Montenegro nos anos 90. O contrabando de cigarro pode parecer café pequeno comparado ao tráfico de drogas. Mas quase 700 zonas de livre comércio do mundo são usadas como portos seguros para o armazenamento e transporte de cigarros contrabandeados. E, uma vez que a rota é estabelecida (com os devidos subornos já acertados com as autoridades locais), as portas ficam escancaradas para outras atividades. Em 2007, por exemplo, a polícia da Macedônia encontrou 483 quilos de cocaína pura num caminhão que cruzava a fronteira com Kosovo. Vindo da Venezuela, o pó tinha entrado nos Bálcãs pelo porto de Bar, em Montenegro, e seguiria até a Grécia para ganhar o mercado da União Europeia. Na Sérvia, a empresa proprietária desses caminhões era fornecedora de cigarro e álcool para lojas duty-free.

Cocaína

Na década de 1980, os jovens americanos que passaram seus 20 anos protestando contra a Guerra no Vietnã deram um chega pra lá no paz e amor e tomaram gosto pelo dinheiro. Eram os yuppies – executivos cheios da grana que deixaram de ter filhos para dirigir sedãs alemães e viver à noite o glamour regado a champanhe – e polvilhado a cocaína, antes exclusiva aos obscenamente ricos.

Com vizinhos produtores tradicionais da coca, conhecimento técnico para processá-la em cocaína e redes de distribuição estabelecidas (fornecia maconha antes de os americanos começarem a produzir sua própria nos anos 60), a Colômbia viu nessa demanda estratosférica uma oportunidade de ouro. Formaram-se dois cartéis em Medellín e outro em Cali que, em 1982, se reuniram e dividiram o mercado americano entre si: Nova York era dos irmãos Rodríguez Orejuela (Cali), enquanto Los Angeles era de Ochoas e Miami de Pablo Escobar, ambos de Medellín.

Enquanto Escobar, 7o homem mais rico do mundo em 89, ficou conhecido por sua brutalidade, os irmãos Orejuela conseguiram transformar seu cartel numa atividade altamente profissional. Tinham 700 aeronaves, controlavam o aeroporto, a telefonia e os táxis de Cali, compraram bancos, proteção do governo e uma rede de farmácias inteira – Drogas La Rebaja – para poder adquirir produtos químicos usados no refino. Em 1993, Escobar foi morto pelas autoridades colombianas. Dois anos depois, 7 chefes do cartel de Cali foram presos. Mas, acéfalos, esses cartéis se fragmentaram e deram espaço a outros menores. Com isso, o fornecimento se manteve e os preços caíram pela metade.

Sem conseguir combater o tráfico, os EUA decidiram atacar a produção. Entre 2000 e 2006, gastaram US$ 5 bilhões com o Plano Colômbia, com objetivo de reduzir pela metade a produção de narcóticos. Resultado? Ela cresceu 15% no período, justamente por causa da sofisticação do tráfico: hoje os colombianos usam minissubmarinos de 10 metros de comprimento, difíceis de ser detectados pelas guardas costeiras. Cada um com capacidade para 7 toneladas de cocaína.

Cocaína
Na década de 1980, os jovens americanos que passaram seus 20 anos protestando contra a Guerra no Vietnã deram um chega pra lá no paz e amor e tomaram gosto pelo dinheiro. Eram os yuppies – executivos cheios da grana que deixaram de ter filhos para dirigir sedãs alemães e viver à noite o glamour regado a champanhe – e polvilhado a cocaína, antes exclusiva aos obscenamente ricos.

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Com vizinhos produtores tradicionais da coca, conhecimento técnico para processá-la em cocaína e redes de distribuição estabelecidas (fornecia maconha antes de os americanos começarem a produzir sua própria nos anos 60), a Colômbia viu nessa demanda estratosférica uma oportunidade de ouro. Formaram-se dois cartéis em Medellín e outro em Cali que, em 1982, se reuniram e dividiram o mercado americano entre si: Nova York era dos irmãos Rodríguez Orejuela (Cali), enquanto Los Angeles era de Ochoas e Miami de Pablo Escobar, ambos de Medellín.

Enquanto Escobar, 7o homem mais rico do mundo em 89, ficou conhecido por sua brutalidade, os irmãos Orejuela conseguiram transformar seu cartel numa atividade altamente profissional. Tinham 700 aeronaves, controlavam o aeroporto, a telefonia e os táxis de Cali, compraram bancos, proteção do governo e uma rede de farmácias inteira – Drogas La Rebaja – para poder adquirir produtos químicos usados no refino. Em 1993, Escobar foi morto pelas autoridades colombianas. Dois anos depois, 7 chefes do cartel de Cali foram presos. Mas, acéfalos, esses cartéis se fragmentaram e deram espaço a outros menores. Com isso, o fornecimento se manteve e os preços caíram pela metade.

Sem conseguir combater o tráfico, os EUA decidiram atacar a produção. Entre 2000 e 2006, gastaram US$ 5 bilhões com o Plano Colômbia, com objetivo de reduzir pela metade a produção de narcóticos. Resultado? Ela cresceu 15% no período, justamente por causa da sofisticação do tráfico: hoje os colombianos usam minissubmarinos de 10 metros de comprimento, difíceis de ser detectados pelas guardas costeiras. Cada um com capacidade para 7 toneladas de cocaína.

Maconha

A maconha é a droga mais consumida, com 165,5 milhões de usuários, e mais produzida – 41,2 mil toneladas por ano. No entanto, com a produção pulverizada em 172 países que a distribuem localmente, ela não passa por rotas internacionais parecidas com as da cocaína e da heroína. A melhor maconha do mundo é a BC Bud, do Canadá, cuja produção move US$ 6 bilhões anuais e emprega 100 mil pessoas.

De onde vem a cocaína
Colômbia: 55%
Peru: 30%
Bolívia: 15%

E a heroína
Afeganistão: 92%
Outros: 8%
Quantidade de cigarros ilegais fumados no mundo:

– Dos 5,8 trilhões de cigarros consumidos por ano, 600 bilhões são ilegais.

– 700 zonas de livre comércio do mundo são usadas como portos seguros para o armazenamento e transporte de cigarros contrabandeados.

– 8% do comércio mundial. É o que representa o narcotráfico.

– US$ 50 bilhões É o que os governos perdem em impostos a cada ano com o contrabando de cigarros.


Tráfico de gente

A escravidão não acabou: mafiosos internacionais contrabandeiam mulheres e as forçam a trabalhar como prostitutas. Além do comércio de pessoas, também há o de pedaços de pessoas: é o mercado negro da venda de órgãos.

Mercadoria viva
O crime organizado globalizou a prostituição. Hoje, 80% das profissionais de Londres, por exemplo, foram trazidas do exterior por traficantes – parte delas, involuntariamente. E isso se repete por outras cidades de países desenvolvidos. A maioria das vítimas do tráfico de seres humanos é recrutada em países do ex-bloco soviético, África Ocidental e Sudeste Asiático. Lá são abordadas pessoalmente tanto em baladas e bares quanto por conhecidos da família ou de amigos, com promessas de trabalho em países ricos. Às vezes escondidas em porta-malas de carros e contêineres de navio, às vezes aportam às claras mesmo, seja com documentos verdadeiros, seja com falsos. No país de destino, são vendidas à indústria da prostituição. Sem grana, documentos, parentes ou conhecimento da língua, endividadas e ameaçadas, as vítimas dependem completamente dos cafetões, que tiram de US$ 5 mil a US$ 10 mil mensais por mulher nos bordéis.

Mas a prostituição é apenas uma das faces do comércio de seres humanos. Há também o contrabando de imigrantes ilegais, em que o cliente paga o contrabandista por sua travessia. Ao fim da jornada, pode passar um período de servidão para acertar sua dívida. É o trabalho dos shetou (“cabeças de serpente”) chineses, que cobram em média US$ 20 mil para trazer um camponês da China a cidades como Londres e Nova York. Não pense nos mafiosos dos filmes de Hong Kong, mas, sim, em agentes de viagem que incluem no serviço a entrada ilegal no país de destino. Para milhares de chineses que lotam cidades da Europa e da América do Norte, esses contrabandistas não são bandidos, mas heróis.

Comércio de órgãos

Em 2003, o vigilante recifense Alberty J. da Silva, então aos 38, desempregado, morador de favela e filho de “uma mulher que vendia sua carne”, foi parar na África do Sul para comercializar um de seus rins por US$ 6 mil. Quem o abordou foram Gedalya Tauber, ex-policial israelense, e Ivan Bonifácio da Silva, ex-capitão da PM de Pernambuco, que pagaram exames médicos, arranjaram passaportes e compraram passagens aéreas. Enquanto isso, em Nova York, o marido de uma mulher de 48 anos – 15 deles fazendo hemodiálise – entrava em contato com amigos de Israel que lhe falaram de um grupo que traficava rins. Comandado por Ilan Peri, o grupo já tinha organizado a transferência de órgãos para pelo menos 100 israelenses. A coisa soava estranha, mas era a única saída para sua mulher.

Alberty da Silva e a paciente encontraram-se no Hospital St. Augustine, em Durban, África do Sul. Ele só sacou que havia algo de ilegal quando assinou um papel dizendo que seu rim iria para um primo. “A maioria das vítimas de tráfico de rins é coagida pela necessidade, e não pela força física”, diz a antropóloga Nancy Scheper-Hughes, uma especialista no assunto da Universidade da Califórnia. Pacientes compram órgãos de doadores desesperadamente miseráveis. O receptor paga uma fortuna, e o doador recebe uma mixaria. A diferença de preços alimenta redes internacionais que envolvem não só criminosos profissionais mas também médicos, administradores de hospitais e agentes de viagem.

Mas o que há de errado nisso? Em geral, as vítimas desse tipo de tráfico doam os órgãos com consentimento. Essa foi a justificativa do governo chinês quando a Sociedade Britânica de Transplantes denunciou a venda de órgãos de milhares de presos executados na China (antes de morrer, eles teriam permitido a remoção, diz o governo). Só tem um problema: os traficantes não avisam sobre as conse-quências da falta do órgão, claro.

Diário de uma escrava
“Você vai adorar. Consegui um emprego. O trabalho é fácil, o salário é bom e é superdivertido”, disse Victória, com uma arma apontada na cabeça em Israel. Do outro lado da linha estava sua amiga Ludmila Balbinova, em Tiraspol, na Moldávia. Sol e mar em Israel, trabalhando como garçonete. Por que não? A moça topou. Só não sabia que acabava de ser mais um peixe a cair na rede do tráfico de mulheres para prostituição.

Ludmila não precisava preocupar-se com passagens: a amiga passou o contato de uma mulher que resolveria tudo. Ela foi posta num trem até Odessa, na Ucrânia, e, de lá, em outro para Moscou, com outras 10 meninas. Quando chegaram, tiveram os passaportes confiscados e foram presas num quarto por uma semana. Foi aí que a ficha começou a cair para Ludmila. Ela e mais 3 mulheres foram levadas ao aeroporto. “Você realmente sabe aonde está indo? Tem certeza de que quer fazer isso?”, perguntou-lhe um policial federal antes de carimbar sua saída no passaporte. Não, não tinha certeza, mas seu “guarda-costas” não permitiu que “fizesse nenhuma gracinha”. Em 4 horas de voo, chegariam ao Cairo. No Egito, elas ficaram presas num hotel até serem levadas de jipe a beduínos que as atravessariam pelo deserto até Israel.

Do outro lado da fronteira, as meninas foram entregues aos seus compradores: homens que falavam entre si em hebraico, mas se dirigiam a elas em russo. Eram da máfia russo-israelense.

De 1989 em diante, judeus da ex-URSS puderam arranjar a cidadania israelense. Para criminosos, o novo passaporte serviu de chave para as portas do mundo. E sindicatos russo-judeus desenvolveram a prostituição como seu principal negócio.

Ludmila acabou levada a um bordel em Tel-Aviv. Lá, atendia até 20 clientes por noite, 7 dias por semana. Quando conseguiu fugir, foi presa como imigrante ilegal. E depois deportada. De volta a seu país, descobriu que era HIV positivo.

Destino das pessoas traficadas

43% prostituição
32% trabalho forçado
25% outros:

– Remoção de órgãos e partes do corpo

– Casamento forçado

– Adoção ilícita

– Exploração no exército

– Conflitos armados

– 800 mil pessoas são traficadas por ano.

– US$ 200 mil É o quanto traficantes chegam a cobrar por um rim.

– US$ 5 mil é o que eles costumam pagar ao doador ilegal.

– 15 mil rins de doadores vivos são transplantados por ano – parte deles (não se sabe quantos) veio do tráfico de órgãos.

– US$ 31,7 bilhões É o lucro estimado das máfias no mundo com o tráfico de pessoas.


Máfia S.A.

O fim da URSS deu à luz um crime organizado mais rico e profissional. Outros grupos seguiram a receita e se infiltraram na economia planetária. E hoje as máfias estão nas roupas de grife, no mercado financeiro e nas tampas de privada.

Yakuza na bolsa

A recessão japonesa da década de 1990 pareceu um golpe para a Yakuza, principalmente com a redução dos contratos de obras públicas que alimentavam empresas aliadas à máfia. Leis mais duras também ajudaram. E, de 180 mil gângsteres 40 anos atrás, o Japão tem hoje 85 mil.

Só que os mais criativos e brutais sobreviveram e se fortaleceram. A solução foi diversificar suas atividades. Os homens dos dedos decepados e corpo coberto por tatuagens entraram na Bolsa de Valores. A operação: conseguir informações privilegiadas à força para saber onde aplicar. Hoje, sua infiltração é tamanha que a bolsa de Tóquio dá palestras à polícia sobre como lidar com crimes de colarinho-branco da Yakuza.

Tarantela global

Os mafiosos italianos hoje estão ligados mais pelo dinheiro que por laços familiares. Como diz Roberto Saviano: “Em vez de alianças diplomáticas e pactos estáveis, como antes, os clãs operam agora mais como comitês de negócios”. As máfias continuam concentradas no sul do país. Embora 35% dos italianos morem lá, a região recebe apenas 0,7% dos investimentos externos da nação. Ainda assim, o lugar está superconectado com o mundo – o mundo do crime. A Camorra domina o Porto de Nápoles, onde entram 1,6 milhão de toneladas de mercadorias chinesas registradas – e outro milhão de não registradas, que se espalham depois pelo resto da Europa. Até na alta-costura ela está metida. A China pode ter acabado com a competitividade em mercadorias de qualidade média e baixa, mas no mundo do luxo não há concorrência para os italianos. A moda desenhada em Milão muitas vezes é costurada em oficinas de 10 pessoas na pobre Nápoles, com salários entre € 500 e € 900. E a Camorra logo sacou que poderia usar essa indústria para lucrar. Ela trouxe para seu lado costureiros e negociadores de tecidos que passaram a vida trabalhando para as grandes marcas. Com os mesmos materiais e a mesma mão-de-obra, a máfia pôde produzir roupas idênticas às das marcas, mas sem seus gastos com marketing e impostos. Usando suas rotas de distribuição de drogas e comprando lojas, dominou a cadeia de produção e venda de falsificações perfeitas.

Máfias russas
Toras de madeira que grupos criminosos e funcionários públicos corruptos extraem ilegalmente no extremo leste da Rússia vão parar no Japão, onde a Yakuza as troca por carros usados. Outro destino comum são fábricas chinesas que produzem assentos de privadas vendidos por todo o mundo por uma rede de hipermercados americana.

Sem saber, você pode estar sentado na rede do novo crime organizado. Como a ilegalidade se infiltrou nas cadeias de produção e comércio? Grande parte da resposta data do fim da Guerra Fria.

Nos tempos soviéticos, empresas estatais compravam metais e petróleo em minas e campos de extração a um preço baixo. Depois, vendiam a clientes estrangeiros a preços internacionais, muitas vezes mais altos. Querendo instaurar o capitalismo da noite para o dia, no início dos anos 90, o gabinete do presidente Boris Ieltsin privatizou esse setor, mas manteve os preços subsidiados na fonte. Quem se deu bem foi o grupo da nomenklatura – altos funcionários do governo. Comprando petróleo por US$ 1 na Sibéria e vendendo 30 vezes mais caro, tornaram-se uma nova classe de megabilionários: os oligarcas. Nessa terra de pouca lei, os oligarcas logo foram atrás das altas taxas de lucratividade das transações ilegais, principalmente contrabando de armas da antiga superpotência e tráfico de drogas. Na metade dos anos 90, 50% da economia russa girava em setores obscuros.

A competição se acirrou. E a pistolagem também. Para completar, a queda do comunismo tinha deixado um grupo estratégico sem emprego: oficiais da KGB, a polícia secreta soviética. Rapidamente eles sacaram um novo nicho de mercado: a segurança para os oligarcas. E criaram as “agências de proteção”, que funcionavam como polícias particulares. Os oligarcas pagavam até 30% de seu lucro a elas. E dessa união entre dinheiro farto e truculência nasceram as máfias russas.

O mesmo aconteceu em outros ex-países comunistas. E o pior foi na ex-Iugoslávia, onde guerras étnicas levaram a bloqueios econômicos internacionais. Embargados comercialmente, encontraram no tráfico e no contrabando os meios para financiar seus conflitos.

História sem fim

Algo tem sido feito contra o crime organizado? Sim. Campanhas conscientizam possíveis vítimas de tráfico humano, traficantes e contrabandistas vira e mexe são presos. Mas não adianta decapitar redes que não têm centro, como as máfias de hoje. A receita para enfraquecer o crime parece simples: aumentar o risco de cometê-lo. O problema é que, quanto mais forte é a repressão, maior o potencial de lucro do bandido. As drogas, por exemplo, são mais caras nos países onde o combate ao tráfico é mais eficiente. Vamos chamar isso de bônus da ilegalidade. Quanto maior for esse bônus, mais gente irá se arriscar atrás dele. É a lei de mercado. Uma lei que, independentemente da boa vontade de quem combata o crime, paira acima de todas as outras.

Maiores negócios da máfia italiana:
€ 59 bilhões tráfico de drogas
€ 19 bilhões depósito ilegal de lixo
€ 15 bilhões concessão de empréstimos

– 11,5 mil É o número de “agências de proteção” que havia na Rússia em 1999, auge do crime. Foi nelas que as máfias russas nasceram.

Salário dos mafiosos italianos:

€ 40 mil cargos de chefia
€ 1,5 mil soldados rasos

Quanto a máfia italiana cobra de “proteção” por mês:
€ 10 mil/mês para construções
€ 3 mil a € 5 mil/mês para supermercados
€ 200 a € 500/mês para mercearias


Para saber mais

– Ilícito
Moisés Naím, Zahar, 2006.

– Gomorra
Roberto Saviano, Bertrand Brasil, 2009.

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