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“O Homem do Castelo Alto” é uma distopia atual, perfeita para a quarentena

A série com pitadas de Stranger Things se passa em um mundo paralelo em que o eixo vence a 2ª Guerra, e os EUA são divididos entre Japão e Alemanha.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 12 mar 2021, 09h46 - Publicado em 25 jun 2020, 19h35

O ano é 1962. John Smith tem nome de americano, jeito de americano, sotaque de americano e mora em uma confortável casa americana com uma família tipicamente americana, no subúrbio Nova York. É um veterano condecorado da 2ª Guerra Mundial, quando lutou contra os japoneses no Pacífico. Com um detalhe: quase duas décadas após o fim do conflito, ele é um oficial de alta patente da SS, a tropa de elite de Hitler. No café da manhã, come seus ovos com bacon vestindo um uniforme repleto de insígnias nazistas; um bracelete com a suástica decora seu braço.

Todos os dias ele dirige até o um prédio de concreto mais alto que o Empire State Building, que se ergue como um monolito no local de Manhattan onde, na vida real, se localiza o prédio das Nações Unidas. Mas essa não é a vida real. No topo do prédio, uma enorme suástica de pedra vigia a Big Apple. Em um escritório de madeira escura, Smith ordena execuções e esmaga americanos rebeldes sob um retrato do führer já idoso, com cabelos brancos e olhar sereno.

O Homem do Castelo Alto, produção original mais popular do serviço de streaming da Amazon, se passa em um universo paralelo, em que o eixo esmaga os aliados na 2ª Guerra e impõe uma ditadura fascista global. Alemanha e Japão dividem os EUA ao meio, exatamente como os aliados fizeram com a Alemanha em 1945. A costa oeste, agora território nipônico, fica sob vigilância do serviço secreto japonês, a Kenpeitai, sediada em São Francisco. Os japoneses tratam os americanos como cidadãos de segunda classe, e executam cinco pessoas aleatórias para cada militar japonês que morre nas mãos de insurgentes.

Porque sim, há insurgentes. Primeiro somos apresentados a Joe Blake, um loiro bonitão e inexpressivo do Brooklyn que, descobrimos ainda na primeira temporada, não é bem o que parece. Ele dirige um caminhão até a Zona Neutra: uma faixa de território no centro dos EUA largada às traças tanto pelos nazistas quanto pelos japoneses – onde sobrevivem gays, negros e judeus, mas também caçadores de recompensa que ganham a vida fazendo limpeza étnica na periferia do Reich.

Do outro lado do país, Juliana Crain mora em um porão com seu noivo artista, Frank Frink – que é de família judia, mas consegue viver em razoável paz no território japonês, onde, nas palavras de seu amigo Ed McCarthy, “você pode fazer o que quiser, desde que seja entre quatro paredes”. A coisa desanda quando Juliana descobre que sua irmã, Trudy, é uma rebelde – e vê ela ser morta à tiros por Kido, o impiedoso inspetor-chefe da Kenpeitai.

Juliana herda de Trudy um filme – filme de rolo, mesmo, desses que eram usados no cinema na era analógica – que mostra uma realidade alternativa: a nossa realidade. Os aliados vencem a guerra, os soviéticos ocupam Berlim, os americanos plantam a bandeira na batalha de Iwo Jima, a Times Square está em festa. Ela fica inebriada com a ideia de um mundo sem dominação japonesa, e se rebela contra a ocupação militar.

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Aqui, é importante dizer que a série de TV é baseada em um romance homônimo de Philip K. Dick – um dos autores de ficção científica mais excêntricos do século 20, famoso por ter casado cinco vezes, viver de anfetaminas com shake de proteína e ter surtos psicóticos, às vezes acompanhados de visões religiosas. Dick também é o autor de Minority Report Blade Runner (cujo título original é Andróides Sonham Com Carneiros Elétricos?), que ganharam adaptações cinematográficas e se tornaram clássicos.

No livro, os personagens rebeldes têm um livro sobre a realidade alternativa com a vitória aliada – faz todo o sentido, então, que na série o livro tenha sido substituído por um filme. Juliana descobre que o tal filme deve chegar nas mãos do tal Homem do Castelo Alto, um líder misterioso da resistência antifascista que usa essas películas de outras realidades para tentar prever o futuro em sua própria realidade – e, assim, guiar os passos dos rebeldes sob a vigilância e violência dos lacaios de Hitler.

Os rebeldes têm o espírito de Luke e Leia em Star Wars, encarando o pesadelo de um Darth Vader real – ao longo da série, é impossível esquecer que uma parcela razoável da Europa passou as décadas de 1930 e 1940 sob um regime tão cruel, e que as cenas a que assistimos acontecer nos EUA de mentira aconteceram de verdade na Polônia ou na Ucrânia.

Mas a série só se torna interessante para valer na segunda temporada, quando começamos a acompanhar muito de perto a vida pessoal dos oficiais nazistas e japoneses. Os atores são melhores, os personagens são mais bem construídos. John Smith e sua esposa veem a família de comercial de margarina desmanchar quando descobrem que seu filho tem uma doença congênita e deveria ser eliminado nos fornos nazistas, em cumprimento à política de higienização genética do Reich.

Tagomi, o bondoso ministro do Comércio japonês, conspira dentro de seu próprio governo para evitar um conflito com os alemães – já que, nesse mundo, a Guerra Fria é entre Japão e Alemanha, e ela está prestes a esquentar, porque só os nazistas detém a tecnologia para construir bombas atômicas. Enquanto isso, o inspertor-chefe Kido remói seu preconceito: considera os americanos um povo de cultura desrespeitosa e inferior, mas após 13 anos vivendo em São Francisco, percebe que está se tornando um deles.

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O ápice, porém, chega na terceira temporada, quando descobrimos que a série não é só uma novela da Globo que se passa em uma realidade alternativa – e sim um épico de ficção científica com elementos de Lost e Stranger Things, em que a democracia não está em jogo em apenas um universo. Não vamos dar mais detalhes, porque aí vira spoiler. Mas vale dar uma palhinha da atmosfera: sabe aquele clima de Chernobyl, em que cientistas de avental fazem coisas secretas em laboratório soviético? Pois é: uma versão nazista disso. Com o cruel Dr. Mengele.

A série tem exatamente o efeito que se espera: faz o regime de Hitler parecer ao mesmo tempo um pesadelo alienígena e algo muito próximo da realidade – tão próximo que supremacistas brancos reivindicam até hoje seus horrores nos EUA e, em menor escala, no Brasil. O Homem do Castelo Alto pode não ser uma distopia tão sufocante quanto a de 1984, nem ter a mesma qualidade literária do Admirável Mundo Novo de Huxley, mas tem uma virtude assustadora: é a que chegou mais perto de acontecer.

John Smith é uma figura paradoxal: um oprimido que se torna opressor, vira a casaca quando seu país perde a guerra e passa a colaborar com os nazistas – a tal ponto que se torna uma figura proeminente entre eles. A maioria dos americanos, de fato, parece aceitar passivamente a ocupação, e os mais jovens passam pela lavagem cerebral ariana desde cedo na escola.

Em um ensaio publicado em 1995, o célebre acadêmico italiano Umberto Eco listou 14 características do fascismo (ele é só um de muitos pensadores que tentaram fazer essa sistematização). Aqui vão elas, resumidamente. Eco afirma que elas não precisam estar todas presentes simultaneamente:

1. O culto à tradição;

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2. A rejeição do movimento modernista, sob alegação de que cultura do Ocidente está depravada;

3. O culto da ação sem reflexão intelectual prévia;

4. Discordar é trair, não cabe ao militante questionar contradições no discurso;

5. Racismo e xenofobia;

6. Apelo à clase média frustrada, que teme as aspirações de classes sociais desfavorecidas;

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7. Obsessão com teorias da conspiração;

8. Retórica que retrata as elites como decandentes e afirma que elas podem sucumbir à pressão popular;

9. A vida é uma guerra perpétua, sempre deve haver um inimigo para combater;

10. Os membros que pertencem ao grupo são considerados superiores a todos os forasteiros;

11. Culto ao sacrifício, todos são educados para se tornarem heróis e morrerem pela pátria;

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12. Machismo, desdém pela mulher e intolerância com hábitos sexuais que fogem da heteronormatividade;

13. O povo é tratado como uma entidade única, que tem aspirações únicas, sem levar em conta o ponto de vista de cada indivíduo;

14. Emprego de vocabulário empobrecido para limitar raciocínio crítico.

Assista com a lista em mente. As distopias, afinal, são os contos de fada dos adultos: lições sobre o que não fazer, e as consequências funestas de ignorá-las.

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